segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Consciente coletivo - Viver em grupo sem sacrificar ‘a vontade de existir individualmente’ foi a lição dos Novos Baianos nos anos 1970

Quem haveria de dizer, quatro décadas depois, que um novo tipo de vivência coletiva se transformaria em polêmica encarniçada nas redes sociais essa semana? A discussão em torno da rede Fora do Eixo, encabeçada pelo ativista Pablo Capilé, teve muito pouco do paz e amor que caracterizavam a cultura hippie-tropicalista que de alguma maneira a inspirou. Ex-moradores de algumas das 18 casas do grupo espalhadas pelo Brasil lançaram via Facebook acusações de autoritarismo, fanatismo e exploração de trabalho nos locais onde jovens de 20 a 35 anos convivem em regime de compartilhamento total – de roteador a guarda-roupa.
Na entrevista a seguir, o cantor e compositor Moraes Moreira, relembra as alegrias e as agruras da vida em grupo no Cantinho do Vovô. E reflete sobre dilemas que também assolam a novíssima cultura digital de hoje, do embate entre a coletividade e o indivíduo ao antagonismo até então não resolvido entre o livre compartilhamento e o direito autoral.

Viver em comunidade como os Novos Baianos nos anos 1970 parece ter voltado à moda em coletivos digitais como o Fora do Eixo. A experiência faz sentido hoje?
Olhe, eu não tenho condições de opinar sobre o que acontece ali, seria preciso mergulhar no assunto. Mas o tema da criação compartilhada sempre me agradou. Está na origem da minha história com os Novos Baianos. E, no nosso caso, com um comprometimento muito sério: resolvemos formar um grupo em que todos não só cantassem juntos, mas morassem juntos e dividissem tudo, em total desapego. Acho que a história do Fora do Eixo não chega nem perto de como vivia a nossa família, de um jeito muito original na época.
Era uma família ou uma crítica à família?
Uma nova família, baseada não em laços de sangue, mas de ideias e ideais. Eu, como o Galvão, o Paulinho, os principais Novos Baianos, vínhamos de famílias tradicionais do interior da Bahia e, de repente, nos vimos num lugar onde ninguém oprimia ninguém – e podíamos criar os filhos como amigos, não daquele jeito rígido como fomos criados. Ninguém era dono de nada e todo mundo era dono de tudo.
Quando lembra daqueles anos qual é a imagem mais forte que vem a sua cabeça?
A lembrança maravilhosa que eu tenho é de quando João Gilberto chegou ao Brasil nos anos 1970, vindo dos Estados Unidos e com todo aquele sucesso da bossa nova, e quis nos visitar. O Galvão, que é da terra dele, Juazeiro da Bahia, o encontrou e contou a ele do nosso projeto musical e de vida. João respondeu: “Eu sempre sonhei em ter um grupo em que todo mundo morasse junto e nunca consegui”. Então ele se aproximou da gente, passava noites tocando violão conosco, tomava café da manhã no sítio... Inclusive, quando a gente não tinha dinheiro, era ele quem comprava o café. Foi uma presença muito marcante. Tanto que o disco Acabou Chorare foi totalmente influenciado por ele.
'Acabou Chorare' é considerado um dos álbuns mais importantes da música popular brasileira. De que maneira o ambiente em que vocês viviam impregnou o disco?
Ficou impregnado por tudo. Até das frases que a gente dizia: “Eu vou mostrando como sou e vou sendo como posso”, “deixando um pouco e levando um tanto”, essa capacidade de doar e de receber que havia ali. E o título do disco saiu de uma história que o João Gilberto contou para a gente: de quando eles moravam no México e a Bebel Gilberto, que era pequenininha, caiu no chão, se machucou, mas logo disse: “Papai, acabou chorare”. Misturando as línguas que ouvia em todas aquelas viagens. Aquilo nos fez pensar no Brasil, tão sofrido debaixo de uma ditadura, que apesar disso estava despontando no mundo todo. O começo da letra fala do dia que ia amanhecer, a gente ia acordar e tudo ia ficar lindo. Era um novo Brasil, sonhado por nós. O Brasil da democracia. João nos trouxe uma certa visão de brasilidade, que se somou à cultura musical que já tínhamos, muito influenciada pelo rock dos anos 1970. E fez que a gente olhasse também para Assis Valente, Herivelto Martins, Noel Rosa, o samba e o batuque deste Brasil lindo, musical.
A história mostra que a vida em comunidade é complicada. No século 19, a Colônia Cecília, formada por imigrantes anarquistas no Paraná que produziam coletivamente e viviam uma espécie de amor livre, terminou em conflitos. Como vocês lidavam com eles?
A gente adotou o futebol como uma coisa muito importante. Éramos literalmente um time de futebol, onde cada um tinha a sua posição, mas jogava pelo time, e assim era na vida também. Quem sabia cozinhar, cozinhava. Quem não sabia, lavava prato. A gente se alimentava mesmo era de poesia, música e futebol. Já essa coisa de amor livre... a gente não entrou muito nessa de suruba, não. Ninguém era assexuado, a gente se sentia muito livre, mas não tinha essa promiscuidade que muita gente imagina. Agora, tinha dificuldades que, com o passar do tempo, foram aumentando. Com a chegada dos filhos, a coisa já não era mais tão fácil. Você tinha que guardar o leite para as crianças e vigiar, senão os malucos vinham e bebiam tudo (risos). Quando rolava uma discussão na casa e a gente ia jogar futebol à tarde, a coisa aparecia. Aqueles caras que não estavam se dando bem, na hora do futebol entravam mais forte.
A pelada era um tipo de terapia coletiva?
É. Dava para ver claramente como estava a relação do grupo na hora do jogo. Mas uma coisa que não soubemos fazer foi nos organizar para ter uma vida se não “normal”, minimamente organizada em termos de dinheiro. Por exemplo, nunca compramos o sítio, que naquela época custava barato. Simplesmente não tivemos essa iniciativa e continuamos pagando aluguel até o fim. Também chegou um ponto em que não havia mais estrutura para se criar as crianças. Ninguém teve a capacidade de discernir isso. Éramos tão radicais nessa coisa do desapego que não tivemos o equilíbrio para construir uma coisa mais sólida.
Foi aí que o grupo começou a se desfazer?
Assim como no Brasil a abertura começou, de leve, no meio da década de 1970, aquela mentalidade de grupo radical que a gente tinha também sofreu uma espécie de relaxamento. Eu resolvi sair também porque a vontade de existir individualmente começou a rolar. Quando você se sente o tempo todo parte de uma coisa, chega uma hora em que quer autonomia. 
Dos seis filhos de Baby e Pepeu que viveram ali, alguns mantém uma certa aura rebelde e outros se tornaram evangélicos.

De que forma a experiência afetou as crianças?
Duas coisas que não fiz foi colocar nomes estranhos nos meus. Mas veja que um virou um grande músico, o Davi (Moraes), e a irmã dele, a Ciça, psicanalista. Mas uma psicanalista que viveu na pele um estilo de vida que muitos colegas dela nem conhecem, entendeu? Então ela carrega isso na vida. Uma coisa em comum que todos que cresceram lá têm é uma veia artística expressiva. Porque, apesar de toda aquela loucura, a gente tinha um compromisso com a arte muito sério. Hoje vejo que isso nos segurou, evitou que a gente se perdesse como tanta gente da nossa geração. A música foi nosso porto seguro.
Há um debate reforçado na era da cultura digital sobre até que ponto a criação artística se dá em nível individual ou é fruto da interação de um grupo ou geração. O que acha?
Cara, até hoje eu sou muito Novos Baianos. Sou um sujeito gregário, amigo dos meus músicos, quero que eles apareçam. Não tenho aquela postura de estrela, que quer que sua banda fique no escuro, no fundo do palco. E também na parte da grana procuro ser solidário, jogo aberto, tudo claro. É algo que me ficou daquela época. Mas quando se fala de criação tem outro ponto, que é forte. Uma vez lá no sítio estávamos tocando uma música e o João Gilberto perguntou de quem era. Dissemos: “É nossa”. E ele rebateu: “Nossa de quem?”. Aí dissemos que era nossa, de Moraes e Galvão – que somos os compositores da maior parte delas. Já outras são de Pepeu, Paulinho e assim por diante. Entendeu o recado do João? É a valorização do autor. Até hoje, tudo o que vem para desvalorizar o autor eu sou contra.
É contra também a ideia de copyleft, o movimento que questiona a noção de propriedade intelectual na rede?
Para mim, o autor deve desfrutar de sua autoria em todos os sentidos. Os compositores antigamente não faziam shows, entregavam as músicas para os intérpretes. Hoje em dia muitos estão decidindo cantar, pois só se ganha grana na estrada, fazendo show. E os que não são cantores? A partir do momento que a internet chega querendo compartilhar tudo, liberar geral, desconsiderando os direitos do autor, sou contra. O mundo é capitalista: internet tem que pagar, canal a cabo tem que pagar, novela tem que pagar.
E o argumento de que a informação e a cultura deveriam ser acessíveis a todos?
Nós estamos vivendo um momento de indefinição, em que praticamente acabaram os suportes físicos. Mas o autor continua, e tem que ser reconhecido. Sei que isso ainda não está resolvido, é preciso buscar novas formas de remuneração, mas desvalorizar a autoria, não. Pessoalmente, como artista, nem gosto de vender uma música isolada. Prefiro trabalhar uma ideia, um conceito. Um disco conta melhor a história do seu momento como artista.
No pano de fundo das manifestações que ocorrem desde junho no País está uma discussão sobre direitos coletivos versus individuais. O que achou dos protestos?
Muito positivos. Gosto da imagem do gigante que acordou. Há uma sensação de que o modelo político do toma lá dá cá, que está aí há tanto tempo, não se sustenta mais. Ainda que esses movimentos pareçam assim meio caóticos, sem lideranças ou propostas, a coisa vai funcionando. Tanto que a gente vê os políticos brasileiros totalmente acuados. A própria internet é algo que vem para o bem e para o mal: basta ver o tanto de gente que fala merda lá. Mas acho que já dá para ver os sinais de uma nova humanidade, composta por indivíduos menos egoístas, mais integrados e que supere essa coisa tacanha que o ser humano às vezes é.

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