Mais do que uma festa do audiovisual, o lançamento da versão impressa do CADERNO DE CINEMA foi uma celebração da cultura baiana, com direito à presença e a intervenções do teatro, da dança e da música.
Identificado com Lina Bo Bardi, o espaço do Gregório de Mattos viu e ouviu versos de cineastas, o abre alas de Gerônimo, desenhos de Araripe. E trouxe os Liberatos, o resgate de Guido, Bertrand interagiu com o Caderno, tivemos uma ideia do que será o próximo filme de Henrique, vimos o documentário de Waltinho sobre Rogério Duarte. Tivemos um belo esquete de Aicha sobre o cinema mudo, a dança de Lia repetiu o que fizera na Bienal e, por fim, Edgard e uma trupe apresentaram uma apoteose felliniana.
Fruto da iniciativa e da dedicação de Jorge Alfredo, o Caderno iniciou virtual e já disponibilizou mais de 600 opções de leitura que até agora tiveram mais de 330 mil acessos. Contemplada pelo Projeto Editais Arte em Toda Parte, da FGM, a versão impressa é primorosa e nela você encontra artigos e entrevistas sobre as diferentes facetas do cinema e do audiovisual. E o melhor: virão outras, o CADERNO impresso continuará vindo à luz.
Testemunhei o nascimento do CADERNO DE CINEMA, ideia lançada por Jorge Alfredo nas reuniões da APC-BA (Associação de Produtores e Cineastas da Bahia), associação que há alguns anos consegue a façanha de ser talvez a única entidade brasileira do audiovisual a fazer reuniões com tamanha regularidade: mais de duas mensais.
O cinema e o audiovisual da Bahia vivem hoje um período de grande vitalidade que não tem tido a projeção que merece e precisa. O boom do audiovisual não é especificidade baiana, pernambucana ou seja o que for: é uma mudança mais profunda e irreversível que acontece num mundo que não é mais o que era há dez anos. Não estamos vivendo uma moda nova, mas o inicio da civilização da imagem. O verbo continuará porque é uma característica dos seres humanos, mas o meio socialmente predominante agora é outro. E cada vez mais.
Seja nas reuniões sociais, seja em casa ou nos lugares públicos, cada dia se fala menos e se disponibilizam mais imagens pelos celulares. O texto é cada vez mais um auxiliar da imagem. Vovó não manda mais telegramas, nem posa para o selfie da netinha: ela mesma fotografa o seu bolo de aniversário e posta no WatsApp. O celular não é mais um telefone, é um equipamento audiovisual que permite a você também telefonar e está hoje está disponível nas ruas e paradas de ônibus
E no campo da produção audiovisual a revolução é ainda mais profunda. Se antes precisávamos buscar pessoal e equipamentos profissionais pra fazer um curta, agora os amigos se reúnem e logo estão produzindo. Nascemos num ambiente em que poucas pessoas criavam mensagens audiovisuais e os outros – vale dizer a quase totalidade da sociedade – eram espectadores, consumidores, público enfim. Hoje não há mais o limite entre produtores e receptores de mensagens porque todos são as duas coisas ao mesmo tempo.
No bojo dessa reviravolta, os núcleos de produtores audiovisuais têm outra configuração. Há dez ou quinze anos a Bahia e outros estados brasileiros produziam raros filmes longas e alguns documentários. Nos últimos dez/doze anos, fizemos aqui mais de 25 longas e centenas de documentários sem contar a produção de núcleos espalhados pelos bairros, escolas, comunidades, que antes eram assunto de filmes e hoje são autores de suas próprias histórias.
Três fatores principais dispararam esse revertério: a tecnologia digital, a internet e os apoios públicos. O digital barateou e simplificou equipamentos e processos; a internet universaliza o acesso a informações e a disseminação de sons e imagens; o apoio público – ainda que suficiente e compartimentado – multiplicou as fontes, estimulou iniciativas. E hoje elas ocorrem nas várias instâncias do poder e cada vez abrangem mais formatos.
Até há pouco falávamos em telos e telinhas, hoje são as multitelas. No Brasil, a ANCINE – sim, essa mesma que a grande midia e muita gente importante escolheu para ser a Gení do audiovisual – abriu portas e janelas para nossos filmes na caixa preta da televisão – e multiplicou aritmeticamente os recursos disponíveis.
Mas nenhum desses fatores teria produzido nada se as pessoas não tivessem se lançado a campo para captar imagens e sons, contar histórias, resgatar memórias. É a vitalidade dessas pessoas que traz essa atividade ao ponto a que chegamos: como um formigueiro, a atividade audiovisual se espalhou espontaneamente por todos os cantos e nichos. Hoje, ela abrange tudo, fazemos longas para o mercado convencional e web séries, testamos alternativas, a animação tornou-se uma força enorme, o crescimento do documentário é impossível de ser acompanhado, nem sabemos o que o vizinho ao lado está produzindo. Mas os programas de apoio continuam pontuais, como são pontuais as nossas discussões. Não temos políticas públicas sistêmicas, mas providências localizadas que deixam buracos na cadeia produtiva. Imagens podem ser vistas pelo território afora, mas nossos filmes não são vistos pelo povo baiano. Cada produtor precisa sair por aí definindo um circuitozinho para mostrar seu trabalho e assim o documentário que passou em Feira não chegou a Lençóis. Pior, nosso controle de exibições continua escravo dos critérios do mercado, não sabemos quantas pessoas viram os filmes. Pior: o produtor ganha um edital de produção e quando a obra está pronta precisa se submeter a uma comissão que vai selecionar quais os que receberão apoio para a comercialização. Ou seja: investe-se num filme que depois pode não ter como ser exibido. O resultado disso é que cada um acaba definindo um ou outro nicho, alguns espaços onde o projeto dele ser á visto.
Se somarmos os públicos dos cineclubes com os dos pontos de cultura, os projetos nas escolas e universidades e outros espaços de exibição, teremos um belo público, maior do que o frequentador das salas de shoppings.
Não estamos mais tão isolados uns dos outros, já somos tantos que nos encontramos cada dia mais por aí.
O fato é que chegamos a um ponto de crescimento que é preciso e urgente dar sistematização à produção e à difusão do que se faz na Bahia. Os nichos continuarão existindo e se multiplicando, mas é preciso criar canais para obras que tenham potencial mais abrangente, é preciso compartilhar amplamente nossas experiências. Nossa identidade está aí, nas multitelas e isso é importante inclusive como instrumento de sustentabilidade, com perdão da má palavra, temos “um mercado”.
A APCBA e as demais associações são os nossos pontos naturais de encontro. E temos hoje o CADERNO DE CINEMA, belíssimo veículo de debates e informações.
Cada dia mais se fala na necessidade de uma BAHIA FILME. Seja o que for, o Estado em todas as instâncias e o povo do audiovisual precisam sentar-se à mesa e decidir se vão potencializar o que a Bahia já faz ou vão esperar que um Cinemark da vida abra um multiplex em cada território de identidade.
fotos de Hans Harold
por Geraldo Moraes - Caderno de Cinema
Nenhum comentário:
Postar um comentário