quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Atemporalidade : seu papel na manutenção racista e na não construção de identidade da população brasileira


Não soa estranho, assim como carrega o nome da obra de Clóvis Moura a seguinte frase,“O negro: de bom escravo a mau cidadão?”.
Esta verdade intrínseca, exposta e solene à sociedade brasileira, tratada de maneira violada feito princípio atemporal é base deste texto.

Atemporal porque para falar da construção de identidade da população negra/afrodescendente brasileira nos dias atuais é preciso voltar no tempo. Mas o tempo não mudou. Continua emaranhado nos mesmos paradigmas e problemáticas. Atemporal.

Durante a fuga dos escravos que viviam à mercê de seus donos (dominação ideológica, física, socioeconômica, étnica, geográfica, cultural, dentre outras da supremacia caucasiana, algo negado por Gilberto Freyre, onde apaziguar – democracia racial, falso mito da mestiçagem branda de composição da população brasileira – seriam as palavras certas) enclaves no meio do nada surgiam. Estes enclaves, quilombos, simbolizavam (simbolizam ainda hoje) luta e resistência ao regime escravocrata. Era o momento em que o negro, fugido, “Era”. Ele estava fugido e buscava “Ser” fora do regime que o cercava, fomentando, alimentando, resistindo e avançando com revoltas e rebeliões pela liberdade.
Liberdade esta, nunca então alcançada.

Seria este o momento em que o – objeto de pigmentação de melanina escura -, até então dominado (de maneira física, pois continua – atemporal – dominado de várias maneiras) e sem voz passa de bom escravo a mau escravo? Nos dias atuais, mau cidadão?
Os quilombos isolados (por uma questão de necessidade, segurança e pela não posse de terras e propriedades) subalternizavam a partir dali as fronteiras geográficas visíveis entre o homem negro e o homem branco. Subalternizavam e simbolizavam elementos trazidos até hoje. Atemporal.
E este ponto considerado importante.

A letra “Rap da felicidade”, funk carioca de 1994 traz a seguinte expressão:
“Eu só quero é ser feliz,
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é.
E poder me orgulhar,
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.”
Consciência de “lugar”, criada devido à imposição que segregou, ainda nos quilombos, que passou ser lugar de negro. Negro que fugiu de todo o algoz regime escravocrata que o sequestrou do outro lado do Atlântico, obrigou a ser escravo e o matou, como um ciclo rochoso, sem fim.

E esse pensamento, o pensamento do lugar do negro, do lugar do negro isolado, inóspito, subalterno, delineado por dominação e segregação permanece na sociedade contemporânea. É a base da sustentação racista atual.

Ressignificar a história vista de dentro e mostrar ao negro o processo histórico é parte crucial da compreensão do racismo em 2015.
Após o regime escravocrata ter chego ao fim (no modo econômico-social e na democracia da cor essa é a maior mentira já contada) o período pós-colonialista deixou o Apartheid do papel de lado, no Brasil. Mas a carga de simbolismos trazidos desde o período escravocrata entre – lugares de negros e lugares de brancos – nunca deixou de existir.

O modelo de distribuição geográfica da formação espacial brasileira apresenta isso. As favelas ou ocupações irregulares assim como os/nos quilombos tinham/tem grande parte da população negra/afrodescendente, situação socioeconômica miserável e espaços geográficos subalternos, sem valor de mercado (quando a especulação atribui preços consideráveis o Capital se encarrega de fazer remoções, varrendo-os). A atemporalidade espacial-identitária permanece a mesma, o negro e seu lugar.

As fronteiras elitistas onde vemos o indivíduo caucasiano reinando também. Negros fora das representações midialistas, fora de carreiras vistas como promissoras, nas altas taxas de analfabetismo, fora das universidades, estereótipos de bandidos, subempregos, desemprego, coisificação de seus corpos, assassinados dentre outros são os mesmos paradigmas do regime escravocrata. Ou seja, o que mudou? A então sonhada liberdade buscada na fuga da Casa Grande para os quilombos fora conquistada?

A atemporalidade seja ela individualista coletivista ou social é que modela e estrutura o racismo.

Ressignificãncia histórica aos fatores de enaltecimento à luta e resistência do povo negro é mostrar-lhes os primeiros passos para o conhecimento de si. É saber que é negro. É construir identidade. Essa atemporalidade carregada de lá para cá feito o balanço das ondas do mar com elementos de dominação e segregação racial, racismo, falta de democracia racial não pode mais prevalecer. É urgente o negro brasileiro conhecer a história do negro brasileiro, sua história.

O conhecimento histórico empodera as vítimas da dominação e segregação racial. Assim, nossa vida nos quilombos atuais resistindo em busca de liberdade seria enriquecida de forma intrínseca pelo “negro que sabe”. Negro que sabe de si, que sabe que ainda hoje os elementos de simbolismos são responsáveis por sua segregação, que a violência extrapola os limites da razão… Mas, lhes é negado o conhecimento.

É urgente um marco histórico de construção de identidade no Brasil. Aquilo que não vemos (sem as fronteiras físicas a olho nu) assim como disse Estamira certa vez, existe, e é, e é além. Barrar de vez os avanços racistas só será possível através da aniquilação da ignorância social e do conhecimento racial.
 
 
Por Jaqueline Vieira via Guest Post para o Portal Geledés

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