quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Treze brasilienses vão contar como é ser negro e morar na capital do país

Nem todos nascem sabendo que são negros. No país que até hoje renega ou disfarça o preconceito racial, os de pele parda ou preta têm de aprender que pertencem a uma matriz comum, que são herdeiros de 380 anos de escravidão e de mestiçagem com o português e com o índio. Na capital dos brasileiros, os afro-descendentes são tratados de um modo singular e ao mesmo tempo perverso. A segregação é espacial. Enquanto o Plano Piloto é 70% branco, o Itapoã é 79% negro (preto + pardo) ou 64% pardo. [...]



No ano em que se comemora o centenário de nascimento do abolicionista Joaquim Nabuco, o Correio Braziliense vai contar a história de negros brasilienses, homens e mulheres, adolescentes e adultos, moradores de áreas nobres e de cidades-satélites. Relatos em primeira pessoa de quem experimenta o preconceito, as dúvidas, as angústias, os medos, a raiva, as conquistas, a dor e a delícia de ter a identidade negra.

A capital do país é mais negra do que se dá conta. A diferença entre os de pele parda ou preta e os de pele branca é de 36,8%. Em números absolutos: dos 2,4 milhões de moradores do Distrito Federal, 1,3 milhão são negros e 1 milhão são brancos, segundo dados da PNAD/2007, tabulados pelo Laeser/UFRJ. Mesmo quando se leva em conta os moradores da capital do país que se declaram pretos (179,936), os pardos ainda são flagrante maioria, 1.210.500, 17% a mais que os brancos.A distribuição espacial de brancos e negros no Distrito Federal é segregadora. Ao branco está reservado o Plano Piloto e os lagos Sul e Norte e ao negro, as cidades-satélites.

Quanto menor a renda, maior o número de habitantes de pele parda ou preta, segundo revelam dados da Codeplan. São números antigos, de 2004, que estão sendo atualizados desde 1º de setembro passado, quando 40 pesquisadores começaram a visitar 24 mil moradias de 30 regiões administrativas. Entre as perguntas que estão sendo feitas aos chefes de família entrevistados, está a de cor. São cinco as opções oferecidas: branco, pardo/mulato, negro, indígena, amarelo ou não definido. Até que se conclua, em oito meses, a nova PDAD, a pesquisa domiciliar de Brasília, o que se tem são esses dados de seis anos atrás que demonstram que a segregação espacial da capital do país é também uma segregação de raça.

“A diferença é espacial. Aqui, a pobreza está confinada na periferia. No Rio de Janeiro, por exemplo, grande parte dos pobres mora ao lado dos bairros nobres. A empregada doméstica carioca não precisa pegar ônibus às quatro da manhã para chegar ao trabalho, basta descer o morro. Aqui precisa. Mas no fundamental, infelizmente, não há nenhuma diferença de Brasília em relação ao país. Aos brancos, estão reservados os melhores lugares. Aos pretos e pardos, os piores”, diz Mário Theodoro, diretor de cooperação e desenvolvimento do IPEA, negro, morador do Lago Sul.

Morador eventual de Brasília há dois anos, o ministro da Igualdade Racial, Eloi Ferreira de Araújo, já se deu conta dessa segregação. “Nos ambientes que frequento percebo uma invisibilidade muito grande da população negra. Fui recentemente numa escola de Ceilândia e vi um montão de negros. Mas no Plano Piloto, eles são invisíveis”. Ele mesmo já foi vítima do preconceito racial na capital do país. “Há pouco tempo, eu estava com o meu terno mais bonito [risos], parado perto de um palco onde estava acontecendo um evento. Estava parado pensando se subiria no palco ou não, quando uma senhora se aproximou de mim e me perguntou, bem baixinho, carinhosamente, se eu não podia dar um jeitinho de colocar um deputado no palco. ‘Senhora, eu também não sei como subir’. Ela ficou desconcertada. Olhei em volta e vi vários homens de terno, mas ela decidiu pedir ajuda ao negão aqui. Acho que eu era um segurança.’

O Plano Piloto tinha, há seis anos, 70 mil chefes de família, dos quais 70% eram brancos, 19% eram pardos/mulatos e 6,3% eram pretos. No Lago Sul e Lago Norte, o percentual era de 80% de branco para 20% de preto, pardo, amarelo e indígena. No Itapoã, a proporção se inverte: 64% dos chefes de família são pardos/mulatos; 8% são pretos e 15% são brancos. No Recanto das Emas, os números também viram do avesso em relação às áreas nobres da cidade: dos 24 mil chefes de família entrevistados, 66% se declararam pardos/mulatos, 7%, pretos e 25% brancos.

À medida que diminui a renda média per capita dos moradores, aumenta a proporção de pardos/mulatos e pretos e diminui a de brancos. É preciso observar que a pesquisa por amostra de domicílio do GDF oferece as opções: pardo/mulato, preto, amarelo e indígena. A metodologia brasiliense optou por acrescer a opção mulata à categoria parda. A do governo federal opta pelo clássico: branco, pardo, preto, amarelo e indígena. Para conferir o número de brancos e negros nas regiões administrativas, acesse XXXXX

Preto como a Nigéria
“O Brasil é o segundo país mais negro do mundo. Só perde para a Nigéria, nação mais populosa da África”. Assim, o professor Marcelo Paixão, coordenador do Laeser, começou palestra a ativistas do movimento negro e jornalistas latino-americanos, em Manágua, no mês passado. Dito assim, parece um delírio, mas há uma verdade númerica e cultural na afirmação. De antemão, é preciso ressaltar que o meio acadêmico, o ativismo negro e os formuladores das políticas públicas reconhecem como sendo de cor negra todos os brasileiros que se autodeclaram pretos e pardos. Ou cor de café, chocolate, escurinho, mestiço, cor de burro fugido, quase-negro, queimado, roxo, mulatinho, tostado, retinto, como os entrevistados pela PNAD de 1976 se designaram, quando lhes foi perguntada a cor da pele. Naquela época, o IBGE ainda não apresentava as opções de escolha dos censos mais recentes: branco, pardo, preto, amarelo, indígena.

Estimativas que devem se comprovar com a tabulação do Censo 2010 indicam que o Brasil já é mais negro (preto + pardo) que branco. Tabulações feitas pelo Laeser/UFRJ a partir de dados do PNAD/2007, revelaindicam que são 93,7 milhões os brasileiros de pele clara e 94,4 milhões os de pele escura ou cor de canela, ou moreno-jambo ou negrota ou cabocla ou cabo verde ou bugrezinha escura. diferença numérica entre brancos e negros é bem pequena, de 0,7%, mas pode aumentar.

Desde 2008, que o IPEA já trabalha com a perspectiva de que os negros são maioria no país. A expectativa agora é de que, divulgados os dados do censo, se constate que essa hegemonia é absoluta, ou seja que pretos e pardos, juntos, compõem mais de 50% da população brasileira, ou seja, mais que a soma de brancos, índios e amarelos.

O consenso nos meios acadêmicos, governamental e ativista de que negro é igual a preto + pardo deve-se a uma constatação. “Já se comprovou, do ponto de vista estatístico, que as populações pretas e pardas têm características muito parecidas em indicadores de renda, de educação, saúde, saneamento básico, nível de emprego. É um grupo homogêneo”, explica Mário Theodoro, diretor de cooperação e desenvolvimento do Ipea.. O que significa dizer que ter a pele um pouco mais clara, amorenada, cor de café, corada, bronze ou pouco-clara não abre caminho no mundo mais bem servido dos brancos.

Por que o número de negros tem aumentado no Brasil? São vários os fatores, entre os quais a valorização estética, social cultural da afro-descendência. Como explicou Marcelo Paixão, em texto publicado pelo PNUD sobre o aumento da população negra: “A redução da taxa de fecundidade das mulheres brancas se produziu a um ritmo superior ao verificado entre as mulheres pretas e pardas, uma maior intensidade da redução da mortalidade infantil e na infância entre os filhos de mulheres prestas e pardas e uma redução das desigualdades entre as esperanças de vida ao nascer da população branca e as da população preta e parda”. Somam-se a eles, o avanço do movimento negro e as políticas públicas para a promoção da cidadania afro-descendente que deixaram o brasileiro mais à vontade para reconhecer a ascendência africana em seus traços físicos, na textura do cabelo, na genealogia da família e na cor da pele.

Vista no mapa, a tonalidade da pele brasileira se distribui geograficamente de modo concentrado: o Sul, o Sudeste e parte do Centro-Oeste é branco, com a exceção de nichos de negritude, no Rio, São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. O Norte e o Nordeste e parte do Centro-Oeste é negro (preto + pardo). É o que demonstra o mapa da distribuição espacial da população segundo cor ou raça, pretos e pardos, feito em 2000 pelo IBGE em convênio com a Seppir. O Distrito Federal está incrustrado numa região de razoável concentração de população negra. Há uma explicação histórica: as minas de ouro de Goiás trouxeram para o Estado, entre os séculos 17 e 18, considerável leva de escravos. O historiador goiano Gelmires Reis (1893/1979) escreveu num de seus 28 livros sobre a história de Luziânia que, em 1763, havia 13 mil escravos no município, para uma população de 16 mil habitantes. Tanto assim que a população negra goiana é 45% maior que a branca.

GLOSSÁRIO
IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA — Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LAESER — Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
PDAD — Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio
PNAD — Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
PNUD —Programa das Nações Unidas para o DesenvolvimentoIPEA —- Instituto Brasileiro de Economia Aplicada
Livro onde consta o texto de Marcelo Paixão — Derechos de La población afrodescendiente de América Latina: desafios para su implentación

Fonte: http://www2.correiobraziliense.com.br/negrabrasilia/

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