sábado, 4 de fevereiro de 2012

Autoestima reconquistada - entrevista da Carta Capital com o Antropologo Antonio Risério

Para o antropólogo Antonio Risério, o momento é de otimismo, mas falta o Brasil acolher a região como parte integrante de um projeto nacional.
Entrevista a Lucas Callegari.

CARTACAPITAL: A partir de 2004, o Nordeste passa a apresentar avanços importantes. Houve crescimento econômico e melhora na renda. Mas como o Nordeste poderia contribuir para um projeto de desenvolvimento nacional?
ANTONIO RISÉRIO: A definição de “Nordeste” é mais histórico-política do que eco-antropológica. O oeste baiano, por exemplo, não se conecta com o agreste pernambucano ou o alto sertão de Sergipe, mas com o planalto central do país. Antropologicamente, a região não é homogênea. Mas vamos falar dela assim mesmo, como se fosse um conjunto. E este conjunto, de fato, experimentou notável desenvolvimento econômico e social nos últimos anos, com o avanço, em especial, de Pernambuco e do Ceará. Pernambuco decolou. Tem um projeto claro e consistente de desenvolvimento socioeconômico, configurando-se a partir da racionalidade administrativa e do diálogo real com a sociedade. Suape é o supersigno desse processo. E Pecém é o Suape do Ceará, que também apresenta obras e projetos como o “cinturão digital”, o “eixão das águas”, o metrô do Cariri e investimentos em saúde e educação.  Temos grandes obras de infraestrutura na região, da Transnordestina à transposição do São Francisco. Mas é claro que há pedras e pedreiras no caminho. O Nordeste tem projetos particulares, estaduais, mas não tem um projeto global de desenvolvimento, como chegou a acontecer na época de Celso Furtado – e isso fragmenta as ações e realizações. Nossos governos agem pontualmente, sem o alto grau de coordenação que poderiam alcançar, até mesmo por conta de sua proximidade política. A tal da “nova Sudene” nunca deu o ar de sua graça. Grandes empreendimentos privados ainda tendem a se implantar como enclaves na paisagem nordestina, sem uma articulação orgânica com o entorno e satisfeitos com o fato da região ser um celeiro de mão-de-obra barata. E ainda temos a ideologia das pequenas obras, a mentalidade de cisterna da Igreja Católica, por exemplo, como se ela mesma nunca tivesse construído catedrais. Agora, o Nordeste já está contribuindo, vigorosamente, para o desenvolvimento nacional. O avanço econômico e social significativo de uma região vasta e pobre tem repercussões positivas em todo o país. O que está faltando é o Brasil se convencer de que sua realização nacional plena passa pelo Nordeste. E o Nordeste se convencer, em termos objetivos, de que tem de avançar na inovação.

CC: É possível identificar alguma mudança na imagem que o nordestino tem de si mesmo, a sua autoestima mudou?
AR: Sim. Isso é muito claro em Pernambuco e no Ceará, mas é visível também em Sergipe, em muitas cidades nordestinas. O curioso é que houve uma inversão: os baianos de Salvador e do Recôncavo, que sempre foram extremamente orgulhosos e narcisistas, hoje andam de cabeça baixa. Enquanto a autoestima dos moradores do Recife, de Fortaleza ou de Aracaju está lá em cima, a dos moradores de Salvador desabou. Na verdade, a Bahia, apesar de sua posição no ranking da economia brasileira, está ficando para trás. Há não muito tempo, era ela que se industrializava, montava um pólo petroquímico, firmava-se como vanguarda cultural, etc. – e Pernambuco pouco mais era do que um engenho. O panorama mudou. Penso que o problema central de Jaques Wagner é que, por não ter um projeto claro para a Bahia, ele não sabe o que fazer com a hegemonia que conquistou. Limita-se a tocar obras federais. É por isso que digo que, hoje, a Bahia tem a faca e o queijo – mas falta a mão. E Salvador é uma cidade abandonada, suja, destruída, com o pior prefeito de sua história. Mas, de um modo geral, é evidente, para qualquer observador, que a autoestima do nordestino se elevou. E não foi pouco. Muitos, inclusive, deixam hoje o Sudeste e voltam para os seus lugares de origem, orgulhosos de que estas sejam agora terras de prosperidade e de oportunidades.

CC: E o restante do Brasil, como vê o Nordeste?
AR: Há um novo olhar, sim, mas circunscrito a pequenos segmentos da sociedade: empresários, políticos, jornalistas, cientistas, etc. Em plano de massas, não. A mudança ainda é muito pequena. A mentalidade sudestina (sim: assim como existem nordestinos, existem sudestinos), de um modo geral, ainda é povoada por velhos estereótipos e preconceitos. E esse olhar antigo se sustenta não só pelo que há de sedimentado naquela mentalidade e pela desinformação sobre o que está acontecendo atualmente no Nordeste. Mas também porque, embora o Nordeste avance, os desequilíbrios regionais brasileiros ainda são um escândalo. Ainda faz diferença, hoje, o lugar onde o brasileiro nasce. A perspectiva de futuro de um brasileiro que nasce em São Paulo ou no Rio Grande do Sul ainda é muito diversa da de um brasileiro que nasce no Piauí ou na Paraíba. É cruel, mas é verdade. De qualquer sorte, aqueles pequenos segmentos sociais, a que me referi, vão acabar influenciando, por seu próprio peso, o conjunto do mundo sudestino – e transformando o olhar das populações do centro-sul e do sul. É uma questão de tempo.

CC: Essas transformações positivas que ocorreram na região tiveram reflexo direto no resultado das duas últimas eleições presidenciais. Isto deve acontecer também nas eleições de 2014? 

AR: O Nordeste fechou com Lula e Dilma. E acredito que o voto na esquerda deve persistir. Ainda que em termos variáveis, a região continua crescendo e distribuindo renda. E tem lideranças de ponta, com ampla base social. Mas eleições dependem, também, de gestos, tendências e influxos conjunturais. Não é um jogo de cartas marcadas com muita antecedência. E não sabemos qual será exatamente a situação brasileira em 2014. As classes C e D tendem a ser conservadoras e pragmáticas. Não querem coisas espetaculares ou espetaculosas, mas prosaicas e elementares. Querem segurança, saúde, escola e o pão de cada dia – agora, com manteiga. Querem garantir o lugar que conquistaram na estrutura social e assegurar a possibilidade de continuar ascendendo. Seu voto tende a ser sério, em termos morais e administrativos. Contra a corrupção e pela eficiência. Eduardo Campos viu isso muito bem, ao atualizar o modo de gestão do governo pernambucano. Não se trata de mero racionalismo empresarial, mas de perceber a questão técnica como questão social, direcionando melhor o dinheiro público. E ele é, sem dúvida, a grande personalidade política nordestina hoje, projetando-se consistente no horizonte nacional.

CC: Ocorreram mudanças relevantes no quadro de políticos eleitos no Nordeste? Em quais estados isso ocorreu? O coronelismo ainda vive?
AR: A grande mudança política nordestina foi a guinada à esquerda. Em Sergipe, com Marcelo Déda ganhando a prefeitura e, depois, o governo do estado. Na Bahia, com Jaques Wagner, um político de habilidade extraordinária, desmantelando o “carlismo”, para depois cooptar muitos de seus quadros. No Ceará, com Cid Gomes exibindo um ótimo desempenho como gestor, Ciro rasgando a roupa de reis e reizinhos, Luizianne à frente de Fortaleza. Em Pernambuco, com Eduardo Campos, Humberto Costa no Senado, PT na prefeitura. Na Paraíba, com Ricardo Coutinho e, no Piauí, com Wilson Martins. E vemos a aprovação dada em reeleições. Hoje, para onde Eduardo Campos for, o voto de Pernambuco vai. Guinada nordestina à esquerda, como disse, porque são quadros do PSB e do PT. Esses partidos comandaram politicamente a configuração de um novo Nordeste em construção, respondem às novas realidades criadas e encarnam necessidades e desejos regionais, abrindo caminho para que se realizem. Penso que, ao somar capacidade executiva e disposição para incorporar a inclusão como peça-chave do próprio desenvolvimento, PSB e PT, principalmente o PSB, são mesmo os partidos mais preparados para tocar o barco do crescimento econômico e do avanço social do Nordeste. Já o coronelismo pertence a uma estrutura agrária e a um mundo político que não mais existem, a não ser que reste em algum grotão esconso, como os que aparecem no romance de Guimarães Rosa. A urbanização, a industrialização, a expansão do mercado, a impessoalização das relações de trabalho, o regime democrático (com sindicatos, partidos, a atuação da Igreja, etc.) e os meios de comunicação de massa fizeram do coronelismo um dado de interesse meramente arqueológico.

CC: O que ocorreu de relevante em termos culturais na região? O que ocorreu na Bahia, em Pernambuco e nos outros estados?
AR: Pernambuco, de uns tempos para cá, vem se convertendo na vanguarda do Nordeste, da arrancada industrial à criação cultural. Basta pensar na música e no cinema. Não dá para comparar axé music e mangue-beat. E é interessante porque Chico Science e o mangue-beat nascem do tropicalismo baiano. É claro que há o rap, a valorização da percussão à Olodum, a música tradicional nordestina, o rock pesado, etc., mas tudo sob o signo maior da tropicália. A Bahia, ao contrário, estacionou na banalização, na redundância, na autocomplacência desinformada. Axé music é pastel de vento, mangue-beat tem substância. De um modo geral, também o novo cinema pernambucano está alguns passos à frente. É o que há de mais interessante no atual cinema nordestino. E em ambos os casos, na música e no cinema, a moçada pernambucana encara de modo direto e crítico a realidade envolvente. Mas penso que a principal virtude pernambucana, nesse processo, é saber preservar suas tradições e, ao mesmo tempo, inovar. É manter o seu carnaval maravilhoso, seu frevo e seu maracatu, e também alimentar a inquietude estética. Isso é o que mais interessa: a dialética entre a tradição e a invenção.

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