quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O gueto inevitável por Paulinho Lencina

É duro ser negro no Brasil. Mesmo em Salvador

Paulinho Lencina, da EXAME

Cana no rolete - tradição nas festas
de largo em Salvador
Ruas de um bairro de classe média alta. Um negro é seguido de perto por um carro da Polícia Militar. Ele volta para casa com as compras que fez depois do trabalho. A viatura acompanha-o por quarteirões a fio, sempre mantendo alguns metros de distância. Parece lugar-comum de filme policial de quinta categoria. Infelizmente, a cena é real. O rapaz era eu. Os policiais militares - tão negros quanto eu - eram de verdade. E a cidade, pasme, era Salvador.
Você ficou surpreso? Eu, mais ainda. Os policiais me seguiram até o meu prédio. Depois que entrei, perguntaram ao porteiro se eu trabalhava no condomínio. Quando souberam que eu era morador, ficaram entre surpresos e indignados: não acreditavam que um negro como eles pudesse morar naquela vizinhança e naquele edifício. Eu acabara de chegar a Salvador e aprendia minha primeira lição: mesmo na Bahia, ser negro é sinal de contravenção e ser loiro de olhos azuis é garantia de boa índole.
Outras surpresas desagradáveis me aguardavam na terra dos orixás. Aos poucos percebi que existe uma guerra surda entre as, por assim dizer, matizes de pele negra: o moreno-claro julga-se superior ao moreno, que por sua vez supõe ser melhor que o moreno-escuro, que pensa estar à frente do negro. Tive um amigo que sofreu forte represália da família da namorada porque era negro. Detalhe: a menina e a sua família também eram.

A explicação mais provável para o surpreendente fato de que negro não gosta de negro também na capital da Bahia é a boa e velha introjeção do preconceito racial. Em minha ingenuidade, esperava encontrar em Salvador um santuário da cultura afro-brasileira, um ambiente de democracia racial. Nada disso. A visão danosa dos negros, corroborada em grande medida pelos próprios negros, é de fato, e tristemente, um fenômeno nacional.
Minha visão é de que tudo isso tem a ver com a ausência de referenciais positivos para os negros brasileiros. Você procura um ícone negro interessante para se espelhar, para servir de parâmetro, e não encontra - as exceções ficam por conta da música e do futebol, mas isso não basta, é preciso mais. Ser negro no Brasil, para quem não sabe, é viver com a auto-estima no pé. É viver num eterno pêndulo que oscila entre o esmagamento moral e a indignação por ser sistematicamente tirado de cena.
No fim das contas, trata-se de uma briga dupla. Uma você trava com os outros, com aquilo que as pessoas não dizem mas você lê em seus olhos. A outra é a que você trava consigo mesmo. Afinal, é difícil evitar que, com o tempo, você não introjete a imagem aviltante que vê diariamente associada aos outros negros e a você mesmo. Quando se dá conta, você está pensando que é de fato um cidadão de segunda classe. (Já sofri muito com isso. Demandou grande esforço me livrar desse pensamento torto.)
Um outro ponto interessante é perceber que os negros que superam a armadilha da auto-estima e ascendem social e economicamente sofrem de uma solidão inusitada: ser o único negro no recinto. Experimentei-a ao estudar numa faculdade de primeira linha, ao trabalhar numa grande agência de publicidade, ao morar num condomínio de classe média alta, ao parar em frente da prateleira dos vinhos importados nos melhores supermercados das cidades em que morei. Invariavelmente, as pessoas se espantavam com a minha presença, como se não me fosse dado estar ali. Mas eu estava no meio delas, ao lado delas, na frente delas. Em carne e osso. Com meu talento, meus defeitos, minhas virtudes. Uma pessoa igual a elas, feita das mesmas coisas - uma pessoa que elas infelizmente não viam como tal. (Perceba: experimento esse tipo de solidão até no fato de escrever nessa página de EXAME.)
Não é fácil viver assim. Imagino que poucos brancos segurariam a barra de ser negro no Brasil. Quanto a mim, fiquei escolado nesse tipo de solidão.Transformei isso em algo positivo: sinto um orgulho imenso em ser o único negro no recinto.
Claro que eu gostaria de estar escrevendo sobre coisas mais interessantes, coisas menos óbvias. Não queria ter de escrever um artigo com este teor. Quem quereria? É muito chato, cansativo e triste chamar a atenção para isso tudo. Mas esta é a vida. E este é o ponto: um branco batalha, faz por onde, ascende, ganha dinheiro. Como prêmio, deixa de ser discriminado, de ser minoria, portas se abrem. Um negro pode fazer a mesma coisa. Pode até fazer melhor. Continuará vivendo no gueto.
Paulinho Lencina é publicitário (lencina@uol.com.br)

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