terça-feira, 24 de abril de 2012

Carta pra Lázaro, Wagner e Alice por Sérgio Machado

Eu estou bem nas vésperas de rodar o meu próximo longa (o título provisório é Heliópolis). Os dias que antecedem uma filmagem normalmente são mais tensos (e intensos) do que a própria filmagem. Tecnicamente falando, estou bem no olho do furacão. Mesmo assim achei que não podia deixar de atender o convite de Jorge Alfredo para escrever um pequeno texto para o Caderno de Cinema.
Resolvi revisitar um email que escrevi para Lázaro, Wagner e Alice Braga nas vésperas das filmagens de Cidade Baixa. A carta, escrita há oito anos numa situação bem parecida com a que estou vivendo hoje, me fez perceber que as coisas que eu quero para o meu novo filme são muito parecidas com as que eu desejava para o Cidade Baixa.


Esse texto foi escrito em Cachoeira, numa noite de insônia, poucos dias antes de começarmos a rodar. Imagino que, para quem gosta de cinema, seja interessante entender um pouco do que o que se passa na cabeça de um diretor nos dias que antecedem uma filmagem, os desejos, as ansiedades, o medo do goleiro diante do pênalti…
Truffaut uma vez disse que o cinema é a verdade a vinte quarto quadros por segundo. É este tipo de cinema que mais me interessa.
É preciso que as pessoas acreditem no nosso filme a cada segundo – se por um momento as pessoas duvidarem de que o que estamos fazendo é verdade, a gente errou em algum lugar.
Eu me interesso mais por filmes que falam de gente e não de grandes eventos – esta história não é uma denuncia sobre as condições de vida das prostitutas ou dos malandros do cais do porto. É uma história de gente como nós, que deseja, sente, ama, sofre, tem tesão, tem medo, caga, chora, tem raiva, goza, é boa e é ruim, é violenta e é plácida…

Um dos personagens que eu mais admiro é Travis Bickle, motorista de táxi interpretado por De Niro em Táxi Driver. Gosto especialmente, de uma cena entre ele e a personagem de Cybill Shepherd. Ele entrega um disco de presente para ela que contém a música “Walking Contradiction” e ela diz que é isso o que ele é: uma contradição ambulante. Acho que a força deste (e de qualquer outro) personagem está justamente nas contradições – ele te surpreende a cada cena, é cavaleiro andante e psicopata, não é possível antecipar o que ele vai fazer. As pessoas – ao menos as mais interessantes - são assim. Santas e putas, anjos e demônios, tudo ao mesmo tempo.

Acho que a gente deve buscar a cada dia de filmagem as contradições destes personagens. Torná-los humanos, dar vida a eles. O período de ensaios vai ser fundamental para isto. O roteiro deve ser tomado como um guia de viagem (a palavra roteiro já sugere isto) – a gente deve buscar outros caminhos, encontrar atalhos ou às vezes até caminhos mais sinuosos.

É sempre melhor quando a gente consegue definir os rumos nos ensaios. A filmagem é sempre mais cheia de tensões – existe mais pressão e menos intimidade. Isso não nos impede de arriscar também durante as filmagens.

Um dos maiores riscos que a corremos é o de cair em estereótipos – A PUTA, O MALANDRO BAIANO – o problema é que este é um universo fascinante a ponto de ser uma tentação descrevê-lo – isto seria um erro. Vale repetir: o filme não é uma crônica de costumes, é uma história de pessoas.

Os personagens devem se relacionar sempre uns com os outros, nunca com o público. Naldinho só pode fazer uma piada se for para Deco rir – se o público achar graça também, vai ser ótimo – mas não deve ser esta a intenção. Karinna é sedutora para os dois e não para os espectadores do filme. Deco, Naldinho e Karinna é que devem me dizer onde colocar a câmera, eles vão mostrar a Toca como iluminá-los, a Marquinhos como deve ser o seu entorno… o filme deve ter o ritmo da batida do coração destas três pessoas.

O ambiente da malandragem e da prostituição sempre deve ser encarado como pano de fundo. O jeito de falar dos baianos, a sensualidade e a dureza da vida das putas nunca deve ser o assunto principal de cada cena. Isto pode enriquecer o filme se for mostrado na medida certa, mas nunca pode estar na frente do que nos interessa: o desejo dos personagens.

Naldinho, Deco e Karinna poderiam trabalhar em um supermercado, ser atores de um filme, bater ponto numa grande empresa ou num Shopping Center. Poderiam ter nascido na Noruega ou na Etiópia. Eles agiriam de um modo diferente, mas poderiam se amar e sofrer do mesmo modo… ou seja o que é essencial, o que nos interessa realmente se mantêm.

Eu quero buscar o Deco que existe em Lazinho, o Naldinho que existe em Wagner e a Karinna que existe em Alice.

Contar uma história bem contada já não é fácil, mas gostaria de tentar fazer mais que isto. Gostaria de falar de sentimentos que são universais, que dizem respeito a cada um de nós. Lealdade, paixão, ciúmes, inveja, coragem, medo, tesão, amizade… Isso é pular num abismo sem ter medo do que vai encontrar lá em baixo. É acreditar muito um no outro, é se permitir buscar coisas que a gente nem têm certeza que existem.

Atuar tem muito que ver com a arte de pular do trapézio – com o momento em que o trapezista larga a sua barra e tem que acreditar que o outro estará do outro lado pronto para segurá-lo.

É isso aí, por enquanto, vamos pular juntos e rezar para Deus, Oxalá e todos os Orixás nos ajudarem nesta jornada…

Beijos para todos,

Sérgio


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