segunda-feira, 3 de setembro de 2012

As armas e as cotas - A batalha adiada da igualdade racial nas Forças Armadas por Luiz Felipe de Alencastro

"A Batalha dos Guararapes" (1879), de Vítor Meireles, narra a
formação mítica de um Exército multirracial que lutou contra os
holandeses em 1648-49

Impermeáveis às políticas afirmativas do governo Dilma,
as Forças Armadas não promovem a formação de altos
comandantes cujo rosto espelhe o da população brasileira. Índia,
África do Sul e EUA (que destacaram oficial negro para comandar
frota no Atlântico Sul) dão valor estratégico à questão racial nas
elites militares.
Nas vésperas do Sete de Setembro, cabe lembrar as perspectivas
sobre as Forças Armadas inscritas no "Livro Branco da Defesa
Nacional" (LBDN), apresentado em junho à presidente da
República e ao Congresso.
Organizado pelo ministro da Defesa, Celso Amorim, o Livro Branco
constitui uma iniciativa original. Tanto na forma quanto no seu
conteúdo. Faltou, na imprensa e nos meios políticos e universitários,
um debate à altura das análises elaboradas no LBDN. Pela primeira
vez, a reflexão sobre as Forças Armadas e a diplomacia estão
associadas num documento governamental que analisa as relações
de força no mundo atual.
Resta que o LBDN não aborda um problema importante de

repercussão nacional e internacional, que Amorim ajudou a

começar a resolver no Itamaraty. Problema com o qual ele e seus

sucessores no atual ministério também terão que lidar: a

discriminação racial não escrita que exclui negros e mulatos do alto

oficialato das Três Armas.

No Itamaraty, o assunto foi abafado durante muito tempo. Entrou

pela primeira vez em pauta quando o presidente Jânio Quadros, em

1961, na época da independência das colônias africanas, nomeou o

escritor Raimundo Souza Dantas (1923-2002) embaixador em

Gana.
Primeiro e único embaixador negro desde a Independência, Souza
Dantas escreveu "África Difícil, Missão Condenada: Diário" (1965),
que narra a discriminação de que foi vítima, por parte de intelectuais
e diplomatas brasileiros, no seu posto na África. Quando o livro
saiu, a ditadura já sufocava o debate sobre esse e outros assuntos.
Agindo como pau-mandado do colonialismo português, o Itamaraty
perseguiu o então diplomata e futuro dicionarista Antônio Houaiss
(1915-99). Membro da Comissão de Descolonização da ONU,
Houaiss dialogava com os movimentos independentistas da África
lusófona. Como narra o embaixador Ovídio de Andrade Melo, em
seu livro "Recordações de um Removedor de Mofo no Itamaraty"
(2009), a pedido de setores salazaristas, Houaiss foi cassado e
demitido do Itamaraty, acusado de ser "inimigo de Portugal".
No entanto, cada vez que o governo abria uma embaixada na
África, inclusive nos países lusófonos, já escaldados pela
colaboração de Gilberto Freyre (1900-87)com o colonialismo
salazarista, escancarava-se um paradoxo: como acreditar que o
Brasil era uma "democracia racial" se todos os diplomatas, e até os
contínuos da embaixada, eram brancos? A branquidade encenada
pelos diplomatas brasileiros entravava a política do Brasil na África.
Com a redemocratização, o debate voltou à ordem do dia. Em
2002, iniciou-se o programa Bolsa Prêmio de Vocação para a
Diplomacia. Implementado pelo Itamaraty, o programa concede a
afrodescendentes bolsas de preparação ao concurso à carreira
diplomática.
A necessidade de aproximar o rosto interno do rosto externo do
país foi sublinhada pelo então presidente Fernando Henrique, em
dezembro de 2001: "Precisamos ter um conjunto de diplomatas 
temos poucos- que sejam o reflexo da nossa sociedade, que é

muliticolorida e não tem cabimento que ela seja representada pelo

mundo afora como se fosse uma sociedade branca, porque não é".

Sob a presidência de Lula, o processo se consolidou. Em julho de

2008, em Brasília, o então chanceler Celso Amorim enfatizou que a

democracia é "incompatível" com a discriminação, acrescentando:

"Acreditávamos que éramos uma democracia racial. Hoje sabemos

que isso não é verdade".

AJUSTE Contudo, o ajuste entre o rosto interno e o rosto externo

do país é longo e difícil. No último dia 18 de agosto, reportagem de

Flávia Foreque na Folha revelou que, dentre as 40 novas

embaixadas abertas na África, 35 têm um corpo de diplomatas

inferior ao previsto. Por quê? Porque alguns itamaratecas, que se

acham, evitam as embaixadas africanas, acreditando que tais postos
rebaixam suas carreiras.

Celso Amorim deixou o Itamaraty e, depois de uma pausa, assumiu

o ministério da Defesa. Graças à sua iniciativa, redigiu-se o "Livro

Branco". Com 270 páginas, o documento contou com o aporte de

vários ministérios e duas centenas de colaboradores.

De saída, o LBDN salienta as bases da geopolítica nacional: "O

Brasil dá ênfase a seu entorno geopolítico imediato, constituído pela

América do Sul, o Atlântico Sul e a costa ocidental da África". Mais

adiante, a importância do espaço oceânico é reiterada, porquanto o

Brasil é o "país com maior costa atlântica do mundo".

Citado no texto introdutório da presidente Dilma Rousseff, o pré-sal

é objeto de mais quatro referências no LBDN. A posse da Zona

Econômica Exclusiva de 200 milhas marítimas (onde está o pré-sal)

garantida pela Convenção da ONU de 1994, que foi assinada por

152 países, é destacada.

Mas o documento também observa que nem todos países aderiram

à convenção, "inclusive grandes potências", circunstância que "pode

se tornar, no futuro, uma fonte de contenciosos". O que o LBDN

não diz, mas está nos jornais, é que a única das "grandes potências"

não aderente à convenção de 1994 é os Estados Unidos.

4ª FROTA O tom diplomático do texto evita ainda referências a

uma novidade que reconfigura o Atlântico Sul, a volta da 4ª Frota

americana. Estabelecida em 1943, durante a Segunda Guerra

Mundial (1939-45), a 4ª Frota foi desmembrada em 1950. Em

2008, foi restabelecida para operar no Caribe e nos mares da

América Central, América do Sul e África Ocidental.

Seu renascimento foi saudado pelo "Navy Times", jornal da marinha

de guerra americana: "Quase 60 anos depois de ter fechado, a 4ª

Frota, que conduziu a caçada aos submarinos alemães no Atlântico

Sul, está de volta. Desta vez, para caçar traficantes de drogas no

Caribe".

Na América Central e na América do Sul, pouca gente acreditou

nessa fita da caça aos piratas do Caribe. O governo argentino

discutiu o assunto com o governo americano. Mas a reação mais

incisiva veio do Brasil. Respondendo a jornalistas argentinos, em

setembro de 2008, o presidente Lula declarou: "Estou preocupado

com a 4ª Frota americana, porque ela vai exatamente para o lugar

onde nós achamos petróleo".

Tal armada de porta-aviões, cruzadores e submarinos é comandada

por um ilustre oficial negro, o contra-almirante Sinclair M. Harris.

Feliz coincidência para o prestígio do contra-almirante Harris e para

o lustre da U.S. Navy, sua poderosa esquadra singra entre a costa

atlântica africana e o país americano que conta com o maior número

de afrodescentes.

Neste contexto apenas subentendido no LBDN, a Zona de Paz e

Cooperação do Atlântico Sul ganha todo o seu relevo. Instaurado

pela ONU em 1986, esse tratado abrange o Brasil, Argentina,

Uruguai e 21 países africanos. Programas de colaboração militar

estão em curso nesses países, com destaque para a Namíbia -cuja

costa situa-se em latitudes idênticas à faixa do litoral brasileiro

contendo o pré-sal-, a qual envia boa parte dos oficiais de sua

Marinha de Guerra para se formarem no Brasil.

O LBDN assinala uma cooperação mais direta com a África do Sul,

no intercâmbio de oficiais e no desenvolvimento do míssil A-Darte e,

mais além, com a Índia, no avião de transporte Embraer 145,

dotado de radar indiano.

A colaboração com a África do Sul e a Índia é reforçada pelo

Fórum Ibas, reunindo o Brasil aos dois países. Fundado em 2003,

sob o impulso do então chanceler Celso Amorim, o Ibas é definido

como "um mecanismo de coordenação entre três países emergentes,

três democracias multiétnicas e multiculturais, que estão

determinados a redefinir seu lugar na comunidade de nações".

Efetivamente, o Brasil, a África do Sul e a Índia constituem um

grupo exemplar de democracias multiétnicas e multiculturais. Não há

quem duvide disso, quando percorre as ruas das grandes cidades

desses países.

Salvo em algumas altas instâncias, como as Academias Militares.

Ali, o rosto dos cadetes, dos futuros oficiais superiores brasileiros,

predominantemente branca, destoa da igualdade étnica e

multicultural do oficialato das Forças Armadas da África do Sul e da

Índia. Destoa, sobretudo, da sociedade brasileira.

Graças aos avanços constitucionais do país, as Forças Armadas têm

evoluído. Mulheres passaram a ser admitidas nas Três Armas,

embora suas funções sejam geralmente restritas aos serviços

administrativos e de saúde.

Também é certo que há, desde o século 19, certo número de oficiais

afrodescendentes e que as escolas militares não vetam mais certas

categorias da população.

Assim, como revelou o historiador Fernando Rodrigues, da UFRJ,

na reportagem de Leonencio Nossa, no jornal "O Estado de S.

Paulo", em 12 de março de 2011, até o final da Segunda Guerra

Mundial (1939-45), as escolas militares barravam formalmente a

entrada de negros, judeus, islâmicos, filhos de pais separados e

filhos de estrangeiros.

SAITO Muita coisa mudou para melhor. Em 2007, a comunidade

nipo-brasileira saudou a nomeação no comando da Aeronáutica do

brigadeiro Juniti Saito, nascido em Pompeia (SP) e filho de

imigrantes japoneses. No ano seguinte, viajando a Tóquio como

convidado especial do governo japonês, o comandante foi recebido

pelo Imperador Akihito.

Saito visitou também uma escola de filhos de imigrantes brasileiros.

Segundo o site nikkeypedia.org.br, ele declarou na saída: "Eu me

identifiquei com aquelas crianças porque passei o mesmo que elas

quando cheguei ao Brasil. Até os cinco anos de idade, só falava

japonês dentro de casa". A menos que tenha sido o resultado de um

erro de transcrição, o lapso do brigadeiro Saito ("quando cheguei ao

Brasil") é significativo.

Mostra o estranhamento e a emoção da "chegada" à escolinha

paulista, e dá mais força ao seu mérito e à competência da Escola

Militar na condução de sua trajetória até a chefia da Aeronáutica.

Da mesma forma que a carreira do contra-almirante Harris

impressiona os oficiais africanos e brasileiros, o dinamismo social e

democrático que impulsionou a carreira do comandante Saito deve

ter impressionado os oficiais do Japão. No Extremo Oriente, o

retrato do oficialato brasileiro, apresentado como um corpo militar

multiétnico, ganhou foros de verossimilhança. No Extremo Ocidente

é outra história.

GUARARAPES Sabe-se que a hierarquia militar sempre afirmou

sua consonância com o colorido da sociedade. Como outros

documentos oficiais, o LBDN se refere à primeira Batalha de

Guararapes (1648), palco da vitória icônica das Forças Armadas:

"Foi o evento histórico considerado gênese do Exército, nessa

ocasião as forças que lutaram contra os invasores foram formadas

genuinamente por brasileiros (brancos, negros e ameríndios)".

Depois disso, os holandeses se renderam, a população indígena

declinou, chegaram muito mais africanos, mais portugueses, outros

europeus, e também os levantinos e os asiáticos que formaram a

atual sociedade brasileira.

As Forças Armadas mudaram, mas a sociedade mudou mais rápido.

A referência encantatória às forças brasileiras na Batalha de

Guararapes, pintadas como um exército multiétnico, não cola à

realidade. Não é preciso fazer um desenho para mostrar que há um

desequilíbrio gritante no escalonamento hierárquico das Três Armas.

Como em outros setores governamentais, os brancos sempre

dominaram as patentes mais elevadas, em detrimento da presença

dos afrodescendentes, que compõem atualmente a maioria dos

recrutas e da população do país. Para retomar a análise do então

presidente FHC, trata-se de uma situação que "não tem cabimento".

A doutrina constitucional e a dinâmica democrática tem tornado a

sociedade brasileira mais justa. Desse modo, a Constituição decreta

que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer

natureza" (art. 5°), e completa o preceito com as políticas

afirmativas, determinando a "proteção do mercado de trabalho da

mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei" (art. 7° §

20).

Consoantemente, a presidente Dilma Rousseff promove a nomeação

de mulheres nos altos cargos, numa política pública para ninguém

botar defeito.

De seu lado, o Judiciário e o Legislativo têm procurado corrigir as

desigualdades herdadas do passado para reforçar a democracia. No

mês de abril, o Supremo Tribunal Federal decidiu, unanimemente,

que as cotas raciais nas Universidades estavam em conformidade

com a Constituição.

Como é notório, o STF é raras vezes unânime em seus julgamentos.

A concordância dos ministros sobre matéria tão controversa, e

combatida pela grande maioria dos editorialistas, conferiu mais peso

ainda à decisão, que tornou-se jurisprudência.

Após longo estudo, o STF reconheceu que existe no Brasil

discriminação étnica estrutural -embora não inscrita nas leis-, que as

universidades públicas tem o direito constitucional de combater.

universidades públicas tem o direito constitucional de combater.

Na sequência, o Congresso aprovou a lei que reserva 50% das

vagas das universidades federais para estudantes de escolas

públicas. Metade das cotas, ou 25% das vagas, vai para estudantes

cujas famílias tenham renda até 1,5 salário mínimo. Os outros 25%

das vagas são reservados aos estudantes negros, pardos ou

indígenas. Persistem dúvidas sobre a aplicação da lei no Instituto

Tecnológico da Aeronáutica (ITA), que depende do Ministério da

Defesa.

Independentemente das Academias Militares, os oficiais superiores

estão cada vez mais envolvidos na política externa. Aliás, o LBDN

registra a frequente "participação articulada de militares e diplomatas

em fóruns internacionais [...] na tarefa de defender, no exterior, os

interesses brasileiros".

Cedo ou tarde a branquidade do oficialato entravará o papel

internacional das Forças Armadas. O acomodamento nacional -tão

bem resumido na frase "Imagina na Copa!"- pode continuar

esperando que as coisas, na hierarquia militar e alhures, evoluam a

partir de críticas externas.

A frase citada acima, e seu complemento carioca "Imagina na

Olimpíada!", tem duplo sentido. O significado imediato mostra que

se está apreensivo com a chegada de tanta gente de outros países.

Menos óbvio, o segundo sentido deixa entender que se espera uma

melhoria nos serviços públicos, na telefonia celular, nos aeroportos.

Assim, o bordão "Imagina na Copa!" revela também um

comportamento acomodado e subalterno: já que os cidadãos

(brasileiros) não impõem respeito, vamos tirar proveito do respeito

imposto pelos consumidores (estrangeiros).

Como sucedeu no Itamaraty, o apelo à representação multiétnica, à

aproximação entre o rosto multicolorido dos recrutas e o rosto dos

oficiais superiores, poderá também vir de fora para dentro, das

parcerias militares desenvolvidas com países do Caribe e da África,

e até com a 4ª Frota americana.

Não obstante, no seu discurso de posse, Celso Amorim fez uma

afirmação que indicava sua intenção de não aceitar acomodamentos

e subalternidades.

De fato, na sua fala, Amorim propôs uma gestão mais democrática

no Ministério da Defesa: "Devemos valorizar a discussão de temas

como direitos humanos, desenvolvimento sustentável e igualdade de

raça, gênero e crença". Tais temas não sofrem contestação nas

Forças Armadas.

Salvo a discussão do tema da igualdade de raça. Tão presente na

sociedade brasileira, tão ausente no "Livro Branco da Defesa

Nacional".

O "Livro Branco da Defesa Nacional" não aborda um problema

importante: a discriminação racial não escrita que exclui negros

e mulatos do alto oficialato

No Extremo Oriente, o retrato do oficialato brasileiro,

apresentado como um corpo militar multiétnico, ganhou

verossimilhança. No Extremo Ocidente é outra história

Cedo ou tarde a branquidade do oficialato entravará o papel

internacional das Forças Armadas. Como no Itamaraty, o apelo

poderá vir de fora para dentro

Fonte : Empresa Folha da Manhã S/A.

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