terça-feira, 11 de setembro de 2012

Por uma educação multiculturalista - Vilma Homero



 Divulgação
      
         Em atividade recente, crianças dançam jongo, para
          valorizar aspectos de sua tradição afrodescendente
"Quem foi Zumbi dos Palmares?" A pergunta, feita na sala de aula de uma escola da rede pública, ressoou no silêncio. Ninguém sabia responder. Embora a situação seja hipotética, ela não está muito longe do que acontece no colégio que funciona no Campinho da Independência, em Paraty. Com um agravante: trata-se de uma comunidade de remanescentes de quilombo. Pelo que percebeu a mestranda Dayse Ângela do Nascimento Azevedo, bolsista de mestrado Nota 10, da FAPERJ, do programa de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) – que esteve lá entre 2008 e 2011 –, as crianças da região, embora sejam em sua grande maioria afrodescendentes, não têm sentido de identidade, nem de pertencimento a sua própria cultura, a afrobrasileira.
"Vi que, embora vivendo em uma área reconhecida como quilombo, aquelas crianças vivenciavam os mesmos problemas de qualquer comunidade de baixa renda de periferia", afirma a pesquisadora. Em outras palavras, ela não percebeu na escola local iniciativas para valorizar a cultura afrobrasileira. "Pelo contrário, na visão das crianças, tudo o que era considerado melhor era a cultura do branco, o que estava fora do quilombo, o que era urbano."

Segundo Dayse, suas observações foram semelhantes às registradas em tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo (USP) pela pesquisadora Neusa Mendes de Gusmão, intitulada Terra de Pretos, Terra de Mulheres, publicada em 1995 pela Fundação Cultural Palmares, por ocasião dos 300 anos de Zumbi. "Segundo Neusa, ao analisar os desenhos das crianças, era possível perceber que elas não se desenhavam com características tipicamente negras. Era como uma espécie de negação em relação à sua própria identidade racial. Um problema de baixa autoestima que persiste ainda hoje", afirma Dayse.
Tudo isso motivou a pesquisadora a empreender um projeto em que procurava mapear e entender como estava sendo implantada ali a lei Lei 10.639/03 que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afrobrasileira". "Queria, de alguma forma, contribuir com esse processo", afirma. Para isso, ela entrevistou os vários professores da escola do quilombo. "As queixas mais frequentes eram com relação ao fato de que as leis eram criadas, mas que não se tinha condições de cumpri-las: faltava formação, material e uma preparação dos professores para isso."
Dayse também percebeu que, na ausência de uma educação diferenciada – já que por ali se seguiam os moldes clássicos do ensino tradicional –, somada à pouca valorização da cultura afrobrasileira, a situação contribuía para que os alunos deixassem de ter um maior contato com sua própria cultura. "A questão é que essa história se desenrola em um percurso de educação monocultural, desigual e excludente em relação à cultura afro e à cultura indígena no país. Uma situação que ainda permanece no Brasil."
Mapeados os problemas, a partir da análise das entrevistas com os professores, o próximo passo para a pesquisadora foi apresentar uma proposta metodológica de ensino-aprendizagem a partir das artes cênicas. "Acredito que podemos tratar essa questão pelo ponto de vista da própria cultura. Pretendemos partir da valorização das diferenças, por meio de uma mediação artístico-cultural, para diminuir os problemas de baixa autoestima e, com eles, várias dificuldades de aprendizado daqueles alunos", afirma Dayse.
Em um primeiro momento do trabalho, o foco foi identificar atividades artísticas e culturais locais, desenvolvidas no interior da escola em consonância com o projeto político pedagógico. "Não percebendo este perfil, parti para o segundo passo, o de criar estratégias metodológicas de mediação entre a escola e a comunidade – e vice-versa – em cursos de educação diferenciada e continuada", explica Dayse. Como forma de contribuir com o preparo de alunos das escolas de formação de professores e profissionais de ensino em exercício, eles também incluirão grupos de mediadores culturais, como contadores de história e artistas da dança, da música e do teatro.
"A ideia é desenvolvermos atividades lúdicas, artísticas e culturais com este enfoque. Será uma forma de colocar em discussão vários temas, como identidade, discriminação, violência, cultura africana, corpo, imagem e memória", explica. Tudo isso será desenvolvido em laboratórios de 40 horas, divididos em quatro módulos de 10 horas cada. No final de cada módulo, haverá palestras, oficinas e workshops com convidados, artistas profissionais que dominam cada técnica, seja música ou dança. "Para isso, já estou contatando mestres e doutores da UniRio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), bem como mediadores culturais, em especial, os de Paraty", acrescenta.
Para Dayse, o aspecto que talvez seja o mais importante de seu projeto é a conscientização através do corpo e do movimento, ou seja, a dança. Atriz e dançarina, com formação em dança pela Escola Angel Vianna, diplomada em teatro-arte-performance pela Universidade La Sapienza di Roma, nos 17 anos que passou na Itália, ela desenvolveu oficinas-laboratório de teatro nas escolas para divulgar e valorizar a cultura brasileira,. "A técnica de pedagogia teatral que sigo é a organicidade do corpo, no espaço (tempo – ritmo)."
Divulgação 
            
Para Dayse Nascimento, as práticas artísticas podem  
contribuir para a valorização das diferentes culturas
Segundo a mestranda, isso significa que, muitas vezes, num modelo de educação não democrático e excludente, a imagem do corpo que não segue o modelo estereotipado é rejeitada. "Acreditamos que, a partir de práticas artísticas e culturais envolvendo as habilidades naturais do ser humano, se adquira uma maior facilidade em assumir as próprias especificidades físicas. E, com isso, ter uma maior aceitação de si mesmo e do outro em suas diferentes formas de ser, sentir e de estar no mundo." Para Dayse Ângela, perceber e aceitar essas diferenças, deixando de desejar ser como o outro, no caso, ser como o branco, o indivíduo passa a ter tanto maior consciência de suas próprias necessidades quanto de suas habilidades naturais. "Saber do que seu corpo é capaz, estar consciente de suas habilidades específicas como indivíduo o tornam mais potente. Como consequência, isso também facilita a relação com o outro."
Para o orientador da pesquisa, o professor Adilson Florentino da Silva, o projeto expressa o processo de investigação que acontece em torno da pedagogia teatral contemporânea, especificamente de raízes afrobrasileiras. "O tema constitui uma lacuna no campo do teatro no Brasil, que Dayse procura preencher de forma crítica e reflexiva", afirma.
Paralelamente, a pesquisadora procura implementar outras ações. Uma delas é desenvolver atividades que incluam tanto a tradição da escrita quanto a oral, pela valorização dos griots que existem na comunidade. "Griots são os idosos que ainda transmitem suas histórias e manifestações culturais oralmente. Já houve, na própria escola do Campinho da Independência, oficinas com esses griots, como mediadores culturais, promovidas pela associação de moradores da comunidade", conta, lamentando que a iniciativa não tenha tido continuidade. "Não basta promover eventos, somente para registrar determinado fato. É preciso dar continuidade às atividades artísticas, não apenas como formas de lazer, mas como práticas de formação permanente, em que as crianças adquiram capacidade crítica, de reflexão e de conscientização de seus próprios problemas cotidianos", afirma.
Dayse está ainda mais confiante em uma possível mudança educacional depois de ter participado, este mês, no encontro "Teia do Encantamento", que reuniu diversos Pontos de Cultura do estado do Rio de Janeiro em Paraty, mais precisamente no quilombo do Campinho da Independência. "O evento, com atividades de cunho artístico e cultural, é um dos vários desenvolvidos em algumas escolas do estado, em resultado da parceria entre os ministérios da Cultura (MinC) e da Educação (MEC), e como forma de as crianças brasileiras reconhecerem e valorizarem a cultura brasileira. Com eventos assim, realizados em lugares de forte tradição cultural, seja caiçara, indígena ou quilombola, podemos reforçar esses laços de pertencimento às culturas locais. Com isso, certamente estaremos ampliando a autoestima das crianças dessas regiões."

Fonte: © FAPERJ 

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