quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

"A Avenida é dos blocos negros", por André Santana

Foto - Mauro Akin Nassor
Desfile do Afródromo, neste domingo, deixou uma pergunta: pra que novo circuito no comércio?

Ontem, 10/02, foi dado início a mais uma onda de africanização do Carnaval de Salvador (é, porque a resistência em aceitar as heranças africanas como as bases sólidas da nossa cultura são tantas que são necessárias várias ondas). O desfile do Afródromo trouxe para a passarela do Campo Grande (com justiça, nomeada Nelson Maleiro), os mantenedores das tradições, criadores dos ritmos, decoradores das nossas belezas, e alimentadores das nossas reais alegrias.

Brown comandou um belo desfile na manhã deste domingo, reunindo blocos afro e afoxés, desde os mais midiáticos como Ilê Aiyê e Filhos de Gandhy até os ainda não descobertos pelas oportunistas estrelas do axé music, como Arca do Axé, Bankoma e Mundo Negro. Todos lindos e completos em suas performances, em roupas, fantasias, danças, cantos e tambores. Muitos tambores, como ferramentas poderosas do nosso discurso de alegria como resistência à opressão, festa como sobrevivência frente ao extermínio. Apesar de tudo, “estamos vivos”, confirmam os tambores.

O desfile do Afródromo pelo Campo Grande, seguindo pela Avenida Sete em direção à Praça Castro Alves, provou que não precisamos de um novo circuito destinado à ‘guetificar’ ainda mais os blocos de matriz africana. Ainda bem que a proposta inicial, de realizar três dias de desfiles no Comércio, não foi possível para este ano, forçando a realização do espetáculo deste domingo.

Criar outro circuito é ir contra uma lógica que foi se engendrando na dinâmica do carnaval: o luxuoso circuito da Orla é dominado por artistas e foliões unidos economicamente e epidermicamente, que são os mesmos que ocupam aquela faixa próxima ao mar o ano inteiro, na baixa ou alta estação, para morar, trabalhar ou se divertir. São os que querem e podem ficar separados da gente do lugar, por cordas ou camarotes. Aquele “festival de verão a céu aberto” poderia ser em qualquer lugar do mundo. Bom que seja aqui, na nossa cidade. Já o Circuito do Centro reúne os que por aqui vivem, travam suas batalhas cotidianas e atraem todos aqueles que querem chegar perto da realidade soteropolitana, experimentar suas contradições e seu modo de viver a desigualdade, traço nacional. Por isso é no Centro da Cidade que as entidades negras devem estar. Aqui está o carnaval da tradição, das memórias populares, da criação e construção dessa grande festa e da renovação para que ela continue viva e forte. Nossa identidade está nessas ruas e becos que contam nossa história: Cabeça, Forca, Faísca, Aflitos, Maria Paz, Piedade, Dois de Julho, Paraíso, Rui Barbosa, Tesouro, Chile, ufa, é tudo nosso. É aqui que queremos brincar. 

Muito suor e lágrimas foram derramados para termos direitos a pisar nesse espaço. O Ilê ousou desfilar nestas ruas, em 1975, muitos outros negros e negras tiveram a mesma coragem antes e depois do Ilê. Desistir de lutar por uma participação respeitosa, no circuito Osmar, é retrocesso. Custou muito chegar ‘à cidade’, descer para o Comércio é desistir do páreo. O que precisamos é de respeito com essas entidades, rediscutir horários, financiamentos e exigências de profissionalismo à altura do crescimento da festa. 

Esse é o debate que deve ser travado: igualdade e respeito no disputado desfile da Avenida. Caso contrário, vamos descer e continuaremos coadjuvantes. Ou não foi um sinal o fato domingo Brown desfilar à frente, com poderoso trio, obsessivo assédio midiático e confuso discurso de miscigenação e, lá no fundo, virem os negros e seus tambores. Vamos celebrar o Afródromo, mas se ele realmente nos trouxer o protagonismo da festa no lugar onde historicamente ela acontece, que é o mesmo espaço de circulação e ocupação dos negros dessa cidade, o ano todo. Se é no centro que travamos nossas batalhas, é nele que demos celebrar nossas vitórias.



Fonte: http://correionago.ning.com

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