terça-feira, 27 de agosto de 2013

O trágico na obra de Portinari: o pintor que transforma o sofrimento em arte


Imagine-se sentado em frente à sua casa, numa praça ou em algum lugar observando as “Figuras na Paisagem” (1940), a vida que passa e a vida que fica. Pense em registrar as lembranças da sua infância: eis um lado da obra de Cândido Portinari cujo painel da “Paz” (1956) se retrata no lirismo das “Crianças Brincando” (1940, 1945, 1955, 1958) na rua ou na marina, dando cambalhota, subindo e descendo na gangorra ou no balanço, vibrando no ar como anjos, plantando bananeira, brincando de roda, soltando pipa, pulando carniça, jogando pião ou futebol, divertindo-se com seu papa–vento ou com bonecas, curtindo alguma festa folclórica ou passando o tempo serenamente com carneiros, cavalos ou pássaros (1954, 1955)

Mas a realidade não é apenas “Sonho”: as famílias não passam a vida inteira no “Circo” (1941, 1942, 1958). A “Paisagem de Brodowiski” (1940) refletia melhor os camponeses, o “Operário” (1934), o “Lavrador de Café” (1934, 1940), o “Estivador” (1934), o “Mestiço” (1934), os espantalhos no canavial, no milharal, no cafezal – lembremo-nos do “Café” (1935, 1940, 1957). Uma terra cor de barro que parece ser tingida com o suor e sangue do seu povo trabalhador. Em meio a ela, os filhos daquele chão compunham o painel da “Guerra” (1956) que pairava sobre Brodowski: Candinho também fez quadros sobre tristeza e pintou a dor, o sofrimento, o choro, isto é, o trágico na vida do povo brasileiro que passava – os retirantes – e ficava – morria – em sua terra.

Sabendo que Portinari concebia a arte com um caráter político e emancipatório, interpretamos que os quadros tematicamente escolhidos por nós não foram criados como meros objetos estéticos: suas cores, seus traços e suas as figuras têm voz e vociferam para o mundo a realidade social que muitos brasileiros se encontram. Ele não era um pintor surdo e ouvia o choro das mulheres e crianças, cujas lágrimas clamavam moradia, trabalho e alimentos ao tocarem o chão. Não fora indiferente à angústia dos retirantes e testemunhou os mortos e a morte cavalgando (1952 e 1955).

A fim de melhor abordar a miséria na condição humana que seus quadros retratam, dividimos três temas em sua obra: Tristeza e Lamento, a Morte e Os Retirantes. Para tanto, desejando realizar uma abordagem virgem da obra de Portinari, privamo-nos das críticas e publicações realizadas sobre ela (àqueles que desejarem ter acesso a uma boa bibliografia sobre ele, recomendamos a visita ao site do Projeto Portinari , que oferece indicações essenciais). Neste ensaio, desejamos sentir os olhos do pintor brodowskiano. Queremos, por nós mesmos, observar o seu olhar sobre esta experiência trágica do homem.

Qual parte do corpo do ser humano melhor exprime a sensação de dor? Qual sentido melhor expressa a tristeza da alma? Qual é o foco sobre o qual incide o sofrimento? O corpo fala. A linguagem corporal é este som nitidamente criptografado no olho: os olhos são a janela da alma, dizem. E na arquitetura espiritual, a boca é a porta pelo qual a gente engole o choro ou deixa-o sair.

Nos quadros “Angústia” (1950), onde os olhos tristemente cerrados de uma mulher com seus protuberantes lábios e nariz parecem respirar e soltar pela boca o ar da lamentação almejando um suspiro que acalente a dor que a sufoca, e “Músico Triste” (1957), cujo cifrado olhar do flautista acompanha a melodia silenciosa que o instrumento traduz, Portinari se vale tanto da porta quanto das janelas da alma para pintar o murmúrio que não faz acepção de gêneros. O sofrimento acomete todos os homens (“Mãe com Gato” – 1959).

No entanto, vemos em seus quadros a ilustração de uma cultura comum que inibe o sentimento e a experiência de chorar: o homem pode demonstrar que está triste – até porque o “Olho” (1941) não esconde o que a alma sente, mas o homem mesmo não chora. Em Portinari, nem os meninos choram: “Menino Sentado” (1945), dois “Menino de Brodowski” de 1946 e “Perna de Pau e sua Senhora” (1959) retratam que a masculinidade machista aprisiona as lágrimas nos corpos masculinos, senhores da casa e fortalezas do lar. Eles estão tristes assim como a “Mulatinha de laço vermelho”, a “Menina sentada” e a “Menina com fita vermelha” (1943).

O alarido das lamentações é visto nas mulheres, no lado fraco da família: “Mae e Filha” (s/d). Eis porque os cinco quadros “Mulher Chorando” (1944, 1945 e 1955 a,b,c e d), a “Mulher no Pilão” (1945), na “Mulher e Criança Chorando” (1955) e o “Sofrimento de Mãe” (1955) trazem a concepção de que o feminino tem a alma dominada por sua parte mais fraca: a das paixões. As mulheres carregariam em seu seio esta inclinação majoritária às emoções sentimentalistas – a qual elas não podem escapar ou querer esconder pondo as mãos sobre os olhos e cortinando suas faces com seus cabelos. O desespero em sua forma expressiva seria um atributo feminino. Já o homem deve manter-se ajuizado, não perder a razão e controlar suas paixões.

E a religião é uma das fontes desta ordem: Jó (1943) perdeu todas as posses e sofreu tudo o quanto pôde suportar sem umedecer sua alma com lágrimas e sem lamentar nem blasfemar contra Deus, como sugeriu sua esposa. Até Jesus não chorou em todo o seu calvário e reprimiu as mulheres de Jerusalém que choravam por sua dor. Entretanto, pertencia às mulheres a profissão de chorar: o povo de Deus se valia das carpideiras, que sabiam abrir do seu ser o dilúvio e o mar de lágrimas. Mas, ele não havia chorado por Lázaro e ao ver a situação de Jerusalém? Sim, mas no cume do seu sacrifício cruento, o Divino Alfa suou sangue e não verteu nenhuma lágrima de seus olhos. Foi crucificado e, mesmo depois de tudo estar consumado, apenas jorraram gotas de sangue e água do seio aberto pela lança do Deus feito Homem (Jesus e os Apóstolos – 1957). Ele sofreu tudo sem blasfemar ou resmungar e pediu perdão pela incompreensão dos homens. Na religião – e a julgar pela ordem cristã – os mártires (“São Sebastião” – 1952) demonstram uma vocação ao sofrimento silenciado, agora destinado a todos, a fim de reaver negativamente esta acepção de gênero: um “antes morrer que chorar”. Alguns dirão teologicamente que não há razões para chorar porque a ressurreição de Cristo é alegria e vida.

Entretanto, nem esta sagrada morte conseguiu matar sociologicamente esta raiz cultural. Quantos homens se esconderam para chorar distante dos olhos da família? Quantos “engole o choro, menino. Seja forte. Homem não chora!” foram ensinados? Por isso, pelo que nos parece, a Morte em Portinari está impregnada pelas cores das ideias que apresentamos – entre outras: a imaginação popular que pensa “A Morte Cavalgando” (1952 e 1955), a “Natureza Morta” (1931) necessária para alimentar a vida e as carcaças de animais completando cenários de alerta público: rios secando, sertão, fome, entre outros.


E como este evento natural que mata o sofrimento e acaba com a dor apenas do “Morto” (1958), nos quadros com morte, tormentos e aflições humanas, são as mulheres que mais choram: nas duas telas “Enterro”, em que quatro homens conduzem o viajante em sua carruagem fúnebre, apenas na de 1934 vemos que o choro não fora reprimido num figurante. Na de 1959, entretanto, percebemos a ausência de lágrimas e a presença de símbolos cristãos.

Se falarmos numa Fase de Morte em Portinari, com certeza nos referimos à década de 50. Em nenhum outro período o cavalgar da morte ceifando vidas fora pintado como no ano de 1955: “Mãe com Filho Morto”, “Mãe”, “Mulher ajoelhada com filho morto”, “Mãe com filho morto”, “Mulheres chorando”, “Menino Morto”. Neste ano, Portinari esculpiu em suas telas várias piedades e dores das senhoras que via em Brodowski. Cada imagem de uma certa Maria é uma representação das mulheres do cotidiano que choram por seu João (“Homem Morto” – 1955) ou Joãozinho. Toda mãe espera não ter invertida a alegria da dor do parto. O filho traz em si uma parte da mulher que gerou e, resguardado este sentimento, Portinari retrata o sentimento do ver passar para a morte quem o trouxe um o dia para vida e também a dor de ver seus progenitores partirem (“Mulher morta” – 1959).

Que calamidade foi esta onde tantas crianças morreram? O que se passava em Brodowski? Talvez aquela criança não conhecia as causas de tanta morte. No entanto, lembrou-se dos seus efeitos quando já era artista: diante da morte de um filho, mães percebem que não há mais alegria em seu seio cujo leite não dá vida e pedem que o dom materno o transforme em remédio.

A morte está ali no colo das mulheres, portanto não resta a elas senão chorar, vestir o preto que vai sobre suas cabeças, curvar-se diante deste poder e ver o homem, esposo e pai que não chora, transportar o corpo-morte e conduzir o enterro: “Ele transportou o cadáver para a cabana” (1959). A ele foi dada a tarefa de pôr no seio da terra o broto da semente que crescera e saíra do ventre da vida. E por mais que relute em não chorar, ele também morre (“Homem morto” – 1955) e tira lágrimas dos olhos das mulheres e do seu rebento (“Grupo velando o morto” – 1955).

A vida passa, passa. A vida chega, fica e se retira ou é obrigada a se retirar. Era isso o que se passava em Brodowski: uma série de “Retirantes”, os quais toda esta dor, tristeza, lamento e morte-sofrimento estão estampados nos quadros (193x, 1936a, 1936b, os três quadros de 1944, 1945, 1947 e os quatro de 1958). E aqui, porque não pode cumprir com o papel que a sociedade lhe impôs, o pai e o esposo choram. Tanta fome e miséria, a escassez de trabalho e de água (“Seca” – 1939): a terra, a pele e os corpos secos das pessoas. Tudo isso é morte, é choro, é pranto. Tudo é árido: uma realidade sofrida e, por vezes, banida dos olhos das pessoas. Retirantes, a escravidão e colonos (“Colona sentada” – 1935 e “Navio Negreiro” – 1950) e famílias negras (“Mãe Preta” – 1939) que denunciam a realidade na qual estão inseridos: estão errantes, isto é, não são transeuntes por vontade. Quanta desigualdade, quanta infância sofrida (“Menino Retirante segurando bauzinho” – 1947). A única esperança da “Família” (1935) é partir e, apesar de partes dos seus entes ficarem na estrada (“Criança Morta” – 1944 e 1945 e “Enterro na Rede” – 1944), buscar mais vida, ainda que seja mais amena. Eles partem em busca de novos trilhos, novos rumos, pois daquela terra já foram “Despejados” (1934).

Eis o que vemos na obra de Portinari: uma pintura social, engajada. O povo brasileiro está ali pintado com boa parte de sua cor, alegria e dor. A realidade do Brasil não intoxicou o Pintor, apesar das tintas corroerem sua vida. Os quadros de Portinari são uma voz e um olhar sobre o Brasil. O Candinho de Brodowski deu às Nações Unidas os momentos de vida e morte de uma gente que ri, que chora, que aguenta com força, fé e vontade de (sobre)viver.

As faces da tristeza, a cara da morte e os retirantes são uma denúncia social: uma guerra mundial acontece no interior de nosso país. “Guerra e Paz” (1956) são estes painéis panorâmicos que remetem tanto à dor quanto à alegria. Olhar a beleza, a felicidade e o contentamento de um povo apenas é ter um olhar superficial, cego. Não inquietar-se com a tristeza, choro, lamento e morte dos menos favorecidos é ser uma pessoa cega e estéril.

Sobre o autor

Ednaldo Isidoro é recifense, taurino da/na Geração Y, existencialista ateu graças a dEUs, apaixonado pela Grande dEUsa Virgem-Mãe-Anciã Celta, é tímido e introvertido (sqn). Graduado (UNICAP) e mestre em filosofia (UFPE), Professor de filosofia no Ensino Fundamental e Médio e professor universitário de filosofia (ética) aplicada, atualmente é doutorando em filosofia cartesiana pela UNICAMP.

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