terça-feira, 20 de agosto de 2013

Vamos botar água no feijão - por RAFAELA CARRIJO

RAFAELA CARRIJO: "As leguminosas perfumam panelas de mulheres de várias culturas. Se o feijão brasileiro dá força e as lentilhas estrangeiras trazem sorte, melhor mantê-los no cardápio”.

Por RAFAELA CARRIJO

A definição de quais pratos são mais consumidos em cada região do mundo é altamente dependente de fatores culturais, climáticos e econômicos. Como venho do Brasil e vivo na Alemanha, vou falar de dois alimentos que me encheram a boca, estamparam as minhas memórias e me servem de base culinária nessas nações. 

Feijão e lentilha, uma dulpa que faz parte da dieta principal de pessoas de todo o mundo. Esses alimentos conhecem a fisionomia de cozinheiras de muitos países e em suas mãos se transformaram em ícones de delícias. Ambos são ricos em nutrientes e contribuem para o bom funcionamento do organismo. Se o feijão brasileiro é famoso por garantir a força e as lentilhas estrangeiras por trazer sorte, melhor mantê-los no cardápio.

Todas as vezes que acontecem confluências de caminhos, o alimento é um dos primeiros elementos que fazem parte do sistema de trocas. Assim como os mercadores levam temperos de um país para outro, os viajantes introduzem novos sabores nas culturas estrangeiras. Por isso, hoje, alemães comem feijão e brasileiros lentilha.

Minha avó, que nasceu no início do século passado, jamais poderia imaginar que o feijão que ela aprendeu a cozinhar no fogão à lenha sairia das fronteiras de Minas Gerais para cair nas bocas do mundo. No novo milênio, o planeta se globalizou de tal forma que fui iscada pelo destino para viver do outro lado do Atlântico. Por causa disso, o cremoso feijão mineiro da vovó se derreteu em outras línguas. Alguns amigos estrangeiros já haviam provado a delícia original no Brasil e meu marido alemão, que é bom de boca, me intimou a aprender a receita.

Foi numa noite multicultural, quando seis mulheres se reuniram para experimentar os prazeres da culinária alheia, que apresentei o feijão da senhorinha que tanto amo. Éramos seis: eu, com a imitação do feijão da vovó Zezé, a turca apresentou berinjelas recheadas, a marroquina preparou um saboroso cuscuz, a húngara fez o Goulash, típico ensopado de carne com batatas, a iraniana levou arroz colorido com passas, nozes e açafrão e a alemã preparou saladas e sobremesas, já que todas conhecíamos a culinária do país. Ali, naquela folia do fogão, vimos que as receitas das nossas avós colocavam tempero no aprendizado do novo idioma.

Numa outra ocasião, tive a oportunidade de apresentar a gastronomia alemã à minha família. Como brasileiro adora feijão e a lentilha é um primo parecido, escolhi o ensopado de lentilhas (Linsen Eintopf), um prato típico do sul da Alemanha. Achei que a chance de agradar era boa, o alimento famoso por ser consumido nas ceias de ano novo e associado a benefícios como fortuna, só podia me trazer sorte na minha empreitada como cozinheira.

Nada melhor para combater o frio do inverno alemão que uma fumegante caldeirada de lentilhas com bacon. Segui a receita da sogra e, quando meu pai e irmão me visitaram na rigorosa estação, a idéia foi colocar o grão no prato. Eles assistiram curiosos ao espetáculo de cozedura e espiaram desconfiados da minha aptidão com as panelas, mal sabiam eles que a Alemanha e seu caldeirão de culturas haviam me transformado numa talentosa cozinheira. Enquanto eles repetiam o prato, entendi a alegria das mulheres ao encherem as barrigas de suas famílias. Ganhei o dia quando meu pai disse que aquela havia sido a melhor comida que provara na Alemanha.

Se estiver com uma fome avassaladora e quiser debruçar seu olhar sobre as panelas, fique de olho nas leguminosas, sinta o cheiro que elas exalam e faça como meu marido: aproveite o preparo ouvindo a música “Feijoada Completa”. Quando chegar um convidado, apenas cante “Vamos botar água no feijão”.

Clique nas imagens e visite a galeria para conhecer o duelo das leguminosas. Saboreie o encorpado feijão mineiro da vovó e o caudaloso ensopado de lentilhas alemão.

* Rafaela Carrijo é uma contadora e ouvinte de histórias. Brasileira com orgulho e andarilha por destino, adotou a Alemanha como pátria por paixão. Como repórter, a encanta ouvir os entrevistados e investigar a realidade para transformar fatos em notícias. Como narradora, a inspira contemplar detalhadamente o mundo para estampar nos seus textos preciosidades de suas andanças. Fascinada por descobertas, a escrita é sua ferramenta para alimentar pessoas com sonhos e um punhado de narrativas. (http://rafaelacarrijojeckle.blogspot.de/)


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