sábado, 29 de março de 2014

Gilberto Gil se mostra discípulo e mestre em seu novo disco

Gil e violão. Cantor, que começou a tocar o instrumento estimulado por ouvir João Gilberto, revisita músicas como ‘O pato’ e ‘Desafinado’ Foto: Simone Marinho / Agência O Globo
RIO - Há três anos, Gilberto Gil estava na Austrália, violão no colo, e veio à sua mente — talvez antes a seus dedos — “Aos pés da cruz”:

— Veio com os vários significados que ela me traz — explica Gil. — Primeiro como uma canção muito representativa de um momento importante da música brasileira, entre os anos 1930 e 1940, o disco, o rádio... Depois, a regravação de João Gilberto, que a inseriu na renovação da música brasileira, a bossa nova. Estava solando a melodia, até que aquilo me levou a compor uma introdução. Veio ali meu modo particular de tocar violão, a lembrança de que o violão na minha vida foi estimulado por João, porque antes eu tocava acordeão... Pensei: “Podia pegar outras de João, e na medida em que encontre um jeito apetitoso para mim mesmo de tocá-las gravar um disco assim”.

“Aos pés da cruz” é a primeira faixa de “Gilbertos samba” (Sony), disco que Gil faz em tributo ao meio-xará João Gilberto — a ideia original do nome do álbum (que será lançado nos dias 5, 6, 11 e 12 de abril no Teatro Net Rio) era “João Gilberto Gil”, mas a concisão bossanovística do plural venceu. Assim como “Gilbertos”, última faixa do CD (e única canção inédita), “Aos pés da cruz” deixa claro que há mais em jogo no disco do que uma homenagem. O álbum ilustra exatamente a — tão complexa quanto evidente — dinâmica de mestre-discípulo descrita em “Gilbertos”, iluminando desde a formação de Gil até seus desejos e interesses mais recentes. E afirmando seu papel de mestre, por estar acompanhado por músicos como seu filho Bem Gil e por “filhos musicais” como Domenico, Moreno e Rodrigo Amarante. Passear por suas 12 faixas, portanto, é contar uma história maior do que seus 41 minutos.

“João é samba”

“Eu sambo mesmo”, por exemplo, ecoa projeto seu anunciado há anos, um CD de sambas — desejo resolvido agora (“João é samba”, resume).

— É uma canção que fala das dificuldades históricas que o samba teve para se impor, porque a princípio era ligado aos ex-escravos, aos negros. Essa redenção paulatina do samba é um assunto meu, nosso, de João também.

Na introdução que fez para “O pato” — lúdica, profundamente João e profundamente Gil —, o compositor sintetiza a fusão de personalidades proposta já pelo nome “Gilbertos”. “Tim tim por tim tim”, com acordeão de Mestrinho e violino de Nicolas Krassik, remete ao Trio Surdina (de Garoto, Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeom), à tradição do acordeão urbano, jazzístico (“Donato, Wagner Tiso, Peranzzetta, todos passaram pelo instrumento”, lembra).

“Desde que o samba é samba” nunca foi gravada por João, mas Gil encontrou no YouTube um vídeo no qual ele a canta ao vivo. A canção, explica o compositor, sublinha o compromisso do disco com a “coolness de João”:

— Me forcei a descer na tonalidade mais profunda, mais grave, para dar um pouco a medida desse projeto, no qual fugi do falsete, do grito pop de Roger Daltrey, de McCartney, e fui para aquele canto suave, cool. “Desde que o samba é samba” desce mais, está mais submerso nesse oceano. É escafandro.

A guitarra de Pedro Sá flertando com o atonalismo radicaliza e dialoga com o conceito de “Desafinado”:

— Essa é a canção-limite da bossa nova, mais limítrofe que “Chega de saudade”. Caetano me disse que para o próprio João havia sido um desafio aceitar gravá-la, havia uma resistência nele mesmo. Depois Caetano fez “Pra sempre ser desafinados, ser desafinados, ser” (“Saudosismo”), trazendo-a para o tropicalismo como herança dessa desafinação álmica, simbólica.

“Milagre” e “Doralice” remetem a outro mestre, Dorival Caymmi — presente também nas participações de seus filhos Danilo e Dori. Entre as duas, Gil reverencia a instrumental “Um abraço no Bonfá”, composição de João, com a sua “Um abraço no João”.

Com arranjo povoado de timbres, “Você e eu” leva Gil a abordar a sonoridade do CD (produzido por Bem e Moreno) e sobre o caráter de “contemporaneização” do disco, como ele diz ao se referir ao uso de recursos como MPC e de estéticas ligadas à música de hoje.

— Tem esse toque de contemporaneização na presença desses músicos. O arranjo de Rodrigo (Amarante) para “Você e eu” tem isso, remete a elementos que você poderia encontrar no Claus Ogerman, mas também a coisas de conjuntos pop mais arrojados.

Talvez a música em que o arranjo grite mais essa “contemporaneização”, “Eu vim da Bahia” traz Caymmi, Tropicália, João e Jorge Ben desaguando numa leitura na qual, como nota Caetano no texto de apresentação, Gil reduz a harmonia a um “modalismo primitivista”. E é a Bahia que puxa o violão de “Gilbertos”:

— É um violão de chula — conta. — Caymmi certa vez escreveu que Gilberto Gil é um tipo de artista que aparece a cada 25 anos. Parti disso para falar dos mestres que, como ele e João, surgem a cada cem. E dessa dinâmica de liceu, a história dos discípulos que se tornam mestres, essa sucessão permanente.


Fonte: extra.globo.com

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