Primeira obra de arte conceitual da artista, ‘Grapefruit’ nunca foi editado em português
Capa original do livro “Grapefuit”, de Yoko Ono, lançado em edição artesanal em julho de 1964 - Reprodução |
RIO. “Registre o som da neve caindo. Deve ser gravado de noite. Não escute a gravação. Corte-a e use-a como fita para amarrar presentes.” Ou: “Roube a lua da água com um balde. Continue roubando até que não se veja a lua na água”. Ou ainda: “Imagine um peixe dourado nadando através do céu. Deixe-o nadar de leste a oeste”. As sugestões anteriores podem até lembrar um recado perdido do poeta brasileiro Manoel de Barros, mas são os versos que inspiraram o beatle John Lennon a compor a música mais vendida de sua carreira solo, “Imagine”, do álbum homônimo, de 1971, das canções mais importantes de todos os tempos.
As “instruções”, como a autora chama, fazem parte do primeiro livro de arte de Yoko Ono, “Grapefuit”, incluindo textos e desenhos, lançado por ela em julho de 1964, há exatos 50 anos. Dois anos antes, portanto, de a artista conhecer John Lennon em Londres. Editada em países da Europa, na Argentina e nos Estados Unidos (onde uma edição antiga chega a custar R$ 1 mil no E-bay); usada em workshops e exibições que a artista dá pelo mundo, a obra, no entanto, jamais teve edição em português. Há apenas uma edição raríssima, feita em 1981, de 500 exemplares, com a tradução de algumas das “instruções”, feita pelos escritores Mônica Costa e Régis Bonvicino.
— É uma obra seminal para a arte conceitual, que flutua nesse limite entre a poesia e as artes plásticas — avalia a professora de artes visuais da Universidade Federal de Minas Gerais, Giovanna Viana Martins, de 57 anos, autora do trabalho acadêmico “Grapefuit: Projeção poética sobre o mundo” (disponível na internet) e da única tradução completa da obra em português, de 2009, trabalho financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), que jaz nos arquivos eletrônicos da instituição e que nunca foi comercializada. — Cheguei a mostrar o trabalho para algumas editoras, mas nunca houve interesse. É curioso, uma artista desse porte...
OLÁ, MEU NOME É JOHN LENNON
No artigo, Giovanna diz que as instruções de “Grapefruit” propõem uma “desaceleração pacífica do tempo”, e que são, na verdade, propostas de pinturas: “O que estes agrupamentos de palavras propõem é exatamente o que é a pintura: descrição do mundo e das coisas do mundo, escrita ou por imagem, e formada somente quando alguém se põe diante dela e a ressignifica”.
A compilação de estímulos imaginários (mais um: “Martele um prego no meio de um pedaço de vidro. Envie cada fragmento para um endereço arbitrário”) foi escrita por Yoko Ono quando ela ainda vivia em Tóquio. O livro teve uma pequena tiragem em japonês-inglês, com 500 exemplares, que ela vendia nas ruas, em cópias artesanais. Como não vendeu tudo, deu muitos exemplares de presente — e um deles foi parar nas mãos de Lennon, quando se conheceram. A obra foi relançada em 1970, quando ganhou uma breve apresentação do músico: “Olá! Meu nome é John Lennon. Gostaria que conhecessem Yoko Ono”.
No ano seguinte, ele lançou a canção, que começava com o verso “Imagine there’s no heaven” e uma série de outras instruções imaginativas, mas nunca fez referência à obra. Em dezembro de 1980, na última entrevista que deu à BBC, John Lennon fez o mea-culpa machista e assumiu que devia a coautoria de “Imagine” a Yoko: “Na verdade ela deveria ser creditada como Lennon-Ono, porque muito da letra e do conceito veio da Yoko. Naqueles dias eu estava um pouco egoísta, um pouco ‘macho’, e omiti a contribuição, que veio do livro dela, ‘Grapefuit’, com peças como ‘imagine isto’, ‘imagine aquilo’. Se tivesse sido Bowie, eu colocaria ‘Lennon-Bowie’, mas era a minha mulher, não pus o nome, sabe?”.
Em 2007, os manuscritos do livro foram expostos no Brasil, por ocasião de uma individual de Yoko em São Paulo.
Fonte: O Globo
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