quarta-feira, 16 de julho de 2014

Momento de Ajuste – Lázaro Ramos


Lázaro Ramos percebeu em si próprio as mesmas questões que ecoaram nas ruas

texto: Pedro Só | Fotos: >jorge bispo - Revista Trip

Um dos atores mais populares e elogiados de sua geração, Lázaro Ramos, 35 anos, percebeu que estava vivendo pessoalmente a mesma angústia que detonou as manifestações de rua no Brasil em junho de 2013. assim como todo o país, em 2014 ele parou para ver a Copa e se emocionar com momentos como o choro do goleiro Júlio César. Nas próximas páginas, um papo sobre tudo: infância em Salvador, racismo, teatro, primeira vez, casamento, religião, política, celebridade – e a busca por um sentido na profissão: “Não quero ficar obsoleto”

“A grande alegria de trabalhar é poder potencializar minha família, colaborar pras pessoas andarem com as próprias pernas. pagar plano de saúde, ajudar um primo na faculdade”

“Alguém nos ajude, Lázaro, a entender…” A frase do cantor Criolo sobre a ascensão da classe C no país foi ao ar em março de 2013 no programa Espelho, que Lázaro Ramos comanda no Canal Brasil há nove temporadas. Por caprichos internéticos, um ano depois, trecho dessa entrevista foi viralizado nas redes sociais, enfatizando o discurso aparentemente desconexo do rapper paulistano. Mas, para além do meme repetido com efeito humorístico, há uma discussão séria e central entre os interesses e a trajetória do politizado ator baiano de 35 anos, reconhecido como um dos melhores e mais populares de sua geração.

Filho de um namoro de Carnaval entre Célia, empregada doméstica morta em 1999, e Ivan, ex-operador de máquinas do polo petroquímico de Camaçari, hoje com 59 anos, ele passou a infância na casa da madrinha, Helenita, de 90 anos.

A convivência com o pai era boa e constante, nos fins de semana. “Como funcionário de Camaçari, ele não levava vida de luxo, mas todo sábado tinha almoço em restaurante, nunca faltou presente de aniversário ou Natal. Aí veio o Collor…”. Sob nova realidade econômica, Lázaro saiu da escola particular para a pública. Depois, aos 14 anos, foi morar com o pai – sem restaurante no sábado.

O adolescente Lázaro fez teatro na escola pública, a Anísio Teixeira. Como só podia frequentar o curso de teatro quem fizesse um outro curso profissionalizante, ele foi cursar patologia clínica. Um emprego no Hospital Ramiro de Azevedo o ajudou a dar apoio à mãe, que sofria de uma doença degenerativa limitadora dos movimentos, em seus últimos anos de vida. A morte dela abalou Lázaro, mas não o impediu de, pouco mais de um ano depois, em 2000, ganhar projeção nacional ao lado dos amigos Wagner Moura e Vladimir Brichta com uma montagem de A máquina, de João Falcão.

Na TV, que o cooptou depois que protagonizou o filme Madame Satã, de Karim Aïnouz, em 2002, ele foi conquistando espaços com competência e versatilidade. Em Elas por elas(2012), quebrou barreiras como o primeiro protagonista negro de uma novela. Hoje vive o guru pop Brian Benson, em Geração Brasil. Mas o cinema é sua área de atuação mais frequente. Está em cartaz com O vendedor de passados (direção de Lula Buarque de Holanda), baseado no romance do angolano José Eduardo Agualusa. Em breve será visto também em O Grande Kilapy (de Zezé Gamboa), coprodução Brasil-Portugal-Angola, em que interpreta um malandro africano. Em 2015, estará em O grande circo místico, sob a direção de Cacá Diegues.

Outro projeto que gera muita expectativa é Acorda Brasil (cujo título pode ser mudado ainda), dirigido por Sergio Machado. Baseado na experiência do maestro Silvio Bacarelli na favela de Heliópolis, em São Paulo, o filme obrigou Lázaro a contracenar com adolescentes inexperientes e dar vazão à inquietude que rege sua carreira. Lázaro diz que as grandes transformações que teve enquanto ator “vieram de provocações que os filmes lhe fizeram: Madame Satã, O homem que copiava, Cidade Baixa, Ó paí, ó…”. Ser colocado à prova, no abismo, dá medo. Mas traz recompensas definitivas. “Esse medo está aqui em mim, mas ao mesmo tempo tem o sagrado do teatro, que fala: ‘Se joga no abismo, rei! Vá lá! Você não tem nada a perder!’. E aí tem que tirar uma coragem do [põe a mão na boca e fala baixinho] cu pra poder seguir, bicho! Porque dá um medo, rapaz! Mas é bom! É isso que mantém a gente vivo.”

“As grandes transformações da que tive enquanto ator vieram de provocações que os filmes fizeram: Madame Satã, Cidade Baixa…”

Morando no Rio de Janeiro há 14 anos, casado com a atriz Taís Araújo – um relacionamento iniciado há quase dez anos, com oito meses de interrupção em 2008 – e pai de João Vicente, 3 anos, Lázaro não se contenta em apenas atuar. Em 2010, lançou o livro infantil A Menina Sentada (depois adaptado para o teatro). Em 2011, dirigiu a peça Namíbia, não!(de Aldri Anunciação) e, no começo deste ano, estreou a peça As Pocorotas, também voltada para crianças. Tem lido livros técnicos sobre roteiro, já com alguns projetos cinematográficos em mente. E sem esquecer as convicções políticas.

Que passam por ideias como as do sociólogo Jessé de Souza, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, entrevistado por Lázaro neste ano no programa Espelho. O autor deBatalhadores brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora? questiona a classificação estabelecida a partir de critérios estritamente econômicos. “Ele fala: ‘Peraí! Vamos ver! O que é a ascensão da classe C? Que valor é esse que a gente teve agora?’. Eu gostaria de avisar a todos: para você que não entendeu o Criolo, veja a entrevista do Jessé.”
Vamos do começo, sua infância. Sua mãe era empregada doméstica, certo? Sim. Minha mãe trabalhava, minha família toda, então a maioria das crianças foi criada por uma mulher chamada Helenita, que todo mundo chama de Dindinha e que fez 90 anos há duas semanas. Uma mulher que nunca teve filhos, mas pegava os sobrinhos e sobrinhos-netos e criava, dava educação. Minha mãe trabalhava numa vizinha ao lado. Tive muito contato com essa patroa, os netos da patroa. Claro que com os limites de um filho de empregada.

A Dindinha criou você? Isso. A mãe tava ali próxima, mas Dindinha foi a grande educadora da família toda.

Vocês ainda têm contato? Sim, e ajudo, ela é minha família. A grande alegria que eu tenho, de poder trabalhar com frequência, é poder participar, poder potencializar minha família, colaborar pras pessoas caminharem com suas próprias pernas. Felizmente eu tenho a possibilidade de fazer isso hoje. Pagar plano de saúde, poder ajudar um primo na faculdade.

Você diria que teve uma infância feliz? Tive uma infância feliz, muito protegida, numa casa com quintal. Mas fui um menino criado dentro de casa, a gente não podia sair, as crianças brincavam com a gente no quintal de Dindinha. Era tudo muito regrado, não tinha palavrão, não tinha essa de escolher o que comer. Ao mesmo tempo, dava muita autoestima, e isso foi muito legal. Eu fui perder a inocência sobre a dureza da vida quando saí da casa dela. Aí que eu fui entender mais ou menos como era o mundo. Mas lá era assim, autoestima, me chamavam de capaz, me estimulavam, uma família de pessoas bem-humoradas, minha mãe inclusive. No túmulo da minha mãe tem a frase “Nunca esqueceremos seu sorriso”, que é uma frase marcante, né? Engraçado que até hoje encontro gente que foi amigo ou amiga da minha mãe e fala sempre isso: “Sua mãe era muito engraçada”. Isso contamina a família, me contaminou também.

E como eram as questões materiais? Tinha presente de aniversário, Natal? Tem duas fases. A fase farta é quando meu pai era do polo petroquímico de Camaçari, operador de máquinas. Não era uma vida com luxo, mas tinha presente de aniversário, ir a um restaurante todo sábado. Aí veio o [Fernando] Collor e muda tudo: saí de escola particular e fui pra escola pública… sou filho da época da inflação. Dinheiro era um negócio que perdia o valor rapidamente, a gente saía do banco e ia correndo comprar as coisas. Depois do Collor, cortamos todos os supérfluos, não tinha restaurante, virou outra vida.

Em que bairro você morava? Na Federação era a casa de Dindinha. E no Garcia ficava a casa do meu pai, com quem fui morar aos 14 anos. Ele ainda não era casado, mas ele já tinha a casa dele e tal. Meus pais nunca foram casados, sou filho de namoro de Carnaval: nasci em novembro, nove meses depois do Carnaval. Sou escorpião.

E a relação com seu pai foi boa? Sempre foi muito boa. Meu pai é um homem que passou por uma grande transformação. Ele nunca foi um homem afetivo, era mais disciplinador, muito correto, muito justo, eu tinha medo dele. Mais adulto, quando saí de casa e fui seguir a vida, a gente foi criando uma relação afetiva que eu nem sei o que é que disparou. Hoje a gente é amigo, tem uma relação que não é nem parecida com o que era na infância. Meu pai não queria que eu fosse ator. Muitos anos depois ele veio me dizer: era medo, imagina profissão de ator, vai sobreviver como? De quê? Ele sempre quis que eu fizesse escola técnica.

E você fez? Ele me inscreveu num curso técnico, porque na cabeça dele tinha a facilidade de eu ir trabalhar na indústria de petróleo. Mas aí fui fazer o teste e botei tudo letra C, pra perder. Todas as respostas, C C C C C C… Perdi. Aí eu falei: “Pai, perdi, infelizmente, mas tem uma coisa legal: sou apaixonado por patologia clínica, quero estudar isso”.

Mas por que você queria isso? Malandro, é porque tinha uma escola chamada Anísio Teixeira, que tinha um curso de teatro e só podia frequentar quem fizesse um outro curso. Tinha desenho industrial e patologia clínica. Desenhar eu não sei. Fui pra patologia clínica. Me formei, exerci a profissão, mas foi um truque pra poder fazer gratuito o curso de teatro.

E religião? Como é que entrou na sua vida? De uma maneira muito diversa. Dindinha era do candomblé, frequentei culto, vi pessoas recebendo orixás, ajudei a carregar coisas pra fazer trabalho. Mas meu avô materno tocava violão na Assembleia de Deus, minha mãe era espírita. E eu por opção resolvi fazer catecismo na Igreja católica. Morava perto da igreja de São Lázaro, que é uma igreja na Federação que é católica, mas tem banho de pipoca toda segunda-feira. Se hoje você me pergunta qual a minha religião, eu vou dizer que eu sou baiano. Baiano da Federação, uma pessoa que viveu e bebeu disso tudo.

“Frequentei culto do candomblé, meu avô era da Assembleia de Deus, minha mãe era espírita. E fiz catecismo na Igreja Católica, se você perguntar qual minha religião, vou dizer que sou baiano”

Você dá algum encaminhamento religioso pro seu filho? O mesmo que eu recebi [risos]. Na hora de dormir a gente reza, mas também conto a história de Xangô, ele tem livrinhos sobre os orixás. Acho que ele é quem vai decidir. Não gosto quando não respeitam a religião do outro, acham que seu deus é mais poderoso ou mais importante. Religião pra mim é conforto, aconchego, aceitação. O meu deus, os meus deuses… são bem diferentes desses que metem medo. Antes de entrar em cena, no Bando Olodum, a gente fazia uma roda e cantava uma música do candomblé. Até hoje eu chego no teatro, oro, beijo o chão.

Você era bom aluno quando novinho. Isso gerava algum tipo de bullying? Claro! [Risos.] E fez demorar pra arranjar namorada também. Ficar ali com a cara nos livros, colado em Haroldo… Haroldo era o outro CDF da turma, sou louco pra saber cadê Haroldo. Eu ficava muito caladinho no meu canto, reservado. Brincava com poucas pessoas, tinha poucos amigos. Só depois que comecei a fazer teatro, na adolescência, é que mudei. No colégio particular, eu era o único negro da sala. Era um ambiente onde nem sempre eu me sentia acolhido.

A questão racial pesava? Não pesava pra mim. Tive o privilégio de ser bem protegido em casa. Me deram autoestima, mesmo meu pai sendo severo. Depois eu entrei no Bando Olodum, grupo formado por atores negros. Eu não entendia que havia personagens que não eram oferecidos a atores negros, só entendi isso depois. Porque no Bando todo mundo era preto e todo mundo fazia tudo. Minha sorte foi ter chegado ao Rio de Janeiro e encontrado o cinema nacional com o olhar voltado pra outra coisa, ter encontrado pessoas que investiram em mim. O Karim[Aïnouz] pegar um menino de 21 anos e oferecer o papel de Madame Satã? Ele é insano! Eu era um menino.

Houve algum episódio marcante de racismo na infância? Na escola, não houve. No supermercado, era seguido constantemente. Em blitz e em ônibus, tinha o “vamos lá, desce!”. Aí os brancos ficavam e os pretos todos desciam… Vivi muito isso. Na adolescência, eu já tinha conta em banco e uma vez fui tirar o saldo. Para um carro da polícia, um bota a arma na minha cabeça e pergunta o que eu estou fazendo no banco. O negócio é que eu aprendi a responder imediatamente. Mandei logo: “Por que você tá perguntando isso? Eu tô no meu banco, tirando meu dinheiro, que é que tá acontecendo?”. Diante de racismo, tem que responder na hora. Comigo não tem essa, não.

“[A questão racial] não pesava pra mim. Tive o privilégio de ser bem protegido em casa, me deram autoestima”

No livro infantil que você escreveu, A menina sentada, a protagonista é uma menina desanimada. Você era assim quando criança? Fui. Tinha a cabeça fervilhando de coisas, mas não conseguia expressar. Acho que virei um pouco ator por isso, era muito tímido e tinha dificuldade de comunicação.

Foi o teatro que libertou você disso? Acho que foi o teatro. E perder a virgindade também. Sempre é bom quando você perde a inocência vendo que tem outros sabores na vida [risos.]

Isso foi com que idade? Com 17 anos. Com namorada. Eu fui todo certinho, eu sou todo certinho, não fumo maconha. E todo mundo acha que eu sou um puta maconheirão! [Risos].

Você não sofreu por ser careta num grupo de teatro? Não teve isso, não. Porque eu era mascote também, eu era mais novo que todo mundo. O Wagner [Moura] vai ficar puto com isso: eu falo que eu sou de outra geração, que ele é mais velho, meu mestre [risos]. Eu, Kayky Brito e Bruna Marquezine somos outra geração! [Risos.]

Falando de adolescência, como eram os Carnavais, você gostava? Sempre gostei muito de Carnaval, pulava, minha mãe me levava sempre como pipoca, até o ano em que começou a ter um monte de camarote. Minha família morava no Garcia, um bairro muito próximo do Campo Grande, que é o primeiro circuito de grande sucesso do Carnaval baiano. A programação era ir de pipoca ver as grandes estrelas e voltar. Depois começaram a construir camarote e tiraram a visão da gente. Fiquei um tempo enorme sem frequentar Carnaval, não tinha grana pra abadá. Mas sempre gostei, sou folião.

Como você vê esse clichê da suposta sensualidade exacerbada do baiano? É muito relativo. Você vê a menina requebrando toda num pagode, mexendo a bunda, fazendo tudo… e ela é virgem. Por outro lado, lá em Salvador, há um projeto assistencial somente para jovens que engravidam no Carnaval. O problema é quando os clichês e os estereótipos saem fortalecidos da piada. Compreendo que tem uma maneira de se relacionar na Bahia que passa por certas percepções. O toque é muito presente, o afeto é muito dado. Quando cheguei no Rio, eu dava três beijos e um abraço em homens e mulheres. Fui criado assim.

E tem a expectativa “ah, ele é negro, tem o pau grande e é bom de cama”? Eu nunca vou dar uma resposta sobre isso livre dos meus anseios políticos. Então, é verdade, na adolescência a expectativa de você ter um pauzão e ser bom de cama é maravilhosa, todo mundo vai querer te dar. Mas é importante refletir sobre esses estereótipos e essas afirmações. Podem parecer inocentes, mas servem pra manter a pessoa em determinado lugar. Isso é muito perigoso, vai da sexualidade às capacidades, aos padrões estéticos. Acreditar que existem determinados papéis que devem ser ocupados na sociedade por determinados perfis é supersério.

Tem um episódio na adolescência em que a crítica de uma peça botava você nas alturas e aí a diretora deu uma baixada na sua bola, né? Você ainda se pega sendo vaidoso? Esse foi um momento marcante. Saiu uma crítica a Um tal de Dom Quixote, em que eu fazia o Sancho Pança. Cheguei com o jornal e falei: “Olha que chique”. E ela falou: “Parabéns, mas nossa profissão não é só isso”. No meu momento de maior alegria, começando a carreira, ela diz: “Não existe nem sucesso nem fracasso permanente”. Foi como um soco. Sou bem vaidoso, fico vaidosíssimo quando elogiam meu trabalho, mas tenho esse bichinho que me puxa o tempo todo, pra eu não estacionar nisso. Vou estrear três filmes agora e a busca era esta: não ficar obsoleto. Tenho orgulho dos trabalhos que fiz, mas estava pensando: “Quero fazer outra coisa”. Talvez fosse melhor pegar o caminho mais certo, fazer uma comédia e tal. Mas falei: “Não, eu vou dar espaço pra essa minha angústia, quero projetos que falem sobre isso”. Aí aparecem esses filmes, que discutem o Brasil de hoje.

“Sou bem vaidoso, fico vaidosíssimo quando elogiam meu trabalho, mas tenho esse bichinho que me puxa o tempo todo, pra eu não estacionar nisso”

Quais são os filmes? O vendedor de passados é um filme baseado no Agualusa, adaptado à realidade brasileira, com um estilo de cinema que talvez tenha uma despretensão que o cinema argentino vem trazendo. Filmes que falam sobre o universo contemporâneo urbano. Fala pra mim é sobre a internet, sobre perfil falso, sobre insatisfação com a gente mesmo. A internet é uma selva, as pessoas falam o que querem, muitas vezes mal informadas, perversas, ou vivendo a fantasia de serem outras pessoas. O Acorda Brasil fala de um projeto artístico na favela de Heliópolis [em São Paulo], que transforma a vida de adolescentes que estão ali vivendo esse novo momento. E tem o Mundo cão, o filme mais recente que eu fiz, sobre pessoas que fazem justiça com as próprias mãos. Sobre essa violência que afeta nossas vidas sem a gente nem sentir.

Você declarou que tinha uma época em que odiava Facebook e redes sociais, mas depois a internet o convenceu de que ela não era culpada. Quem usa a internet é o ser humano. Internet é uma ferramenta. Eu tinha medo, porque eu sempre via as pessoas muito afetadas, a maneira como as pessoas vão a um restaurante, em um grupo de amigos, é outra, cada um com seu celular na mão. Antes de comer a gente já mostra a comida que vai comer. Você nem sente o sabor direito, se tá gostosa ou não, mas a foto tá tão bonita, 30 pessoas curtiram, você já fica feliz! [Risos.]

Mas hoje você usa? Eu me policio muito, eu sou meio chatinho, mas uso muito mais do que pensei que usaria. Mas sempre fico meio com um pé atrás com as informações que eu recebo. Se você perguntar qual a minha opinião sobre internet hoje, eu digo: está em estudo [risos].

O Wagner Moura é o seu melhor amigo? É. É meu irmão.

Vocês foram ficando famosos, ganhando projeção mais ou menos ao mesmo tempo. Que tipo de conversa vocês têm sobre ser celebridade? As conversas da gente vão mudando muito. Quando a gente chegou aqui, começou a fazer muito cinema. Aí teve um dia que Wagner chegou e disse: “Pô, Lazinho, tô meio incomodado, cara. Só me chamam pra fazer bandido e nordestino”. Aí eu disse: “Ô, meu filho, você pelo menos tem dois, e eu que só faço preto?” [Risos.] Tem muito humor, e a gente se consulta muito. Não só Wagner, toda a nossa turma, a gente se consulta muito profissionalmente, sobre as ondas que estão indo, sobre o comportamento dos artistas, a relação com a mídia. A gente pensa sobre isso pra não ser engolido também, né? Tem uma exposição aí que é superperigosa. Acho que a conversa da gente é o tempo todo a gente lembrando de onde veio, de quem nós somos. No fundo é isso, né? Saber quem você é!

“Um dia Waguinho [Wagner Moura] me disse: ‘Pô, só me chamam pra fazer bandido e nordestino’. Eu disse: ‘Ô, meu filho, você pelo menos tem dois. E eu, que só faço preto?’”


Sua mulher já tinha essa relação com a mídia muito antes de você. Hoje como vocês lidam com isso, juntos?
A gente foi entendendo como ficar confortável com isso, né? Antes eu ficava incomodadíssimo de chegar num lugar e ter um monte de gente tirando foto, querendo saber. As entrevistas começaram a mudar: não perguntavam mais de trabalho, queriam saber quando é que a gente ia ter filho, como se conheceu. Caramba! Depois de um tempo foi passando. Mas Taís é uma mulher admirável nesse sentido também. Relaxada, bem-humorada, lida muito bem com isso. Ela é segura, não acha que vai perder nada e se coloca confortavelmente, sabiamente e simpaticamente com relação a isso. Taís me ensinou muito nesse sentido.

Você já se sentiu deprimido? Teve momentos… Vários. Deprimido, triste, sem saber o que fazer. Com vontade de desistir. Muitas vezes, muitas vezes… a sorte é… é amigo, né? Amigo, mulher, família. Porque às vezes vem uma pedreira, umas porradas que você fala: “Rapaz! E agora, pra onde é que eu vou?”.

Por exemplo? A morte da minha mãe… a morte da minha mãe, bicho, me arrasou. Foi há 15 anos. Eu fiquei… Por mim, eu parava. Minha mãe não me viu no teatro. Não tive o prazer de ver o sorriso dela me vendo. E isso, bicho… Eu passei pelo menos um ano em que fazia as coisas empurrado. Não tinha prazer, era entrar no supermercado e chorar vendo o biscoito que ela gostava. Eu nem sei como foi que eu me reconstruí. Primeiro porque quando ela faleceu… foi uma fase em que eu resolvi assumir a vida. Minha mãe foi deficiente física, não podia mais trabalhar, aí eu disse: “Pô! Vou alugar uma casa”. Com 16 anos, aluguei uma casa, botei ela lá, contratei uma cuidadora pra ficar com ela.

“A morte da minha mãe, bicho, me arrasou. Foi há 15 anos. Minha mãe não me viu no teatro. Não tive o prazer de ver o sorriso dela me vendo”

O que ela tinha? Uma degeneração. Ela perdia um líquido da coluna e foi definhando. Nesse último ano em que morei com ela, a rotina era sair às 6 da manhã pra trabalhar no hospital, voltar às 5h30 da tarde, ensaiar teatro de 7 horas até 10 da noite. Foi um dos períodos mais felizes da minha vida, lembro com alegria. Eu tinha muito orgulho de mesmo com 16 anos dizer: “Vou peitar esse negócio aqui e vou cuidar da minha mãe”. Uma dificuldade da porra. E quando tudo começou a acontecer ela morreu. Barra-pesada!

Ao longo da sua vida você fez terapia? Faço há cinco anos. Primeiro eu odiava. Falava: “Eu acho um absurdo você pagar alguma coisa a alguém se você pode fazer essa mesma coisa com um amigo e de graça”. Minha frase sobre terapia era essa. Depois eu fui fazer uma terapia em que o terapeuta ficava descalço e eu ficava puto da vida. “Pô! Esse cara tá me ouvindo descalço?” Eu ficava olhando pro pé dele a sessão inteira [risos]. Depois fui fazer uma que tinha umas massagens. Eu ficava incomodadíssimo; eu querendo falar das coisas e a pessoa me pegando [risos]. Hoje em dia eu faço uma mais tradicional, com uma mulher ótima.

Freudiana? Ela mistura. Ela mistura um pouco, mas é de falar, falar, conversar. E comigo funciona muito. Até quando não tem assunto ela me estimula com alguma coisa: “Lê esse texto aqui, lê esse texto”. Teve uma época em que eu não sabia lidar com o ser famoso. Quando você fica muito popular, como é que lida com a rejeição? Era difícil. Aí ela falou: “Ah, não vamos ficar falando de você, não, rapaz; vá ler isso. Já escreveram há muito tempo, quando nem existia televisão”. E me deu um livro… É legal, tem esse estímulo intelectual.

Qual era o livro? É Freud. A psicologia das massas… Não, não é psicologia… É não sei o que das massas [Psicologia das Massas e Análise do Eu]. Não entendi metade, naturalmente, mas o pouco que eu entendi ajudou bastante [risos].

Um personagem marcante no seu programa foi a psicanalista Neusa Santos Souza, autora de Tornar-se negro. Você chegou nela a partir do livro? Não. Foi a Sandra Almada, repórter que trabalhava no programa, que falou dela. “Bicho! Essa mulher tem que vir. O livro é uma bíblia pros movimentos negros e sociais.” A gente nem acreditava que ela ia aceitar, ela não falava havia 25 anos. A gente depois descobriu que ela escolheu o Espelho pra ser o último depoimento. Se matou um mês depois [em 2008]. Eu acho que o Espelho acabou sendo um registro de um pensamento racial e social do Brasil dos últimos dez anos. Fico me perguntando que país é esse que o programa revelou sem querer.

Alguma conclusão? O Brasil mudou, a gente tá em outro lugar. As famílias já não são as de dez anos atrás. Os movimentos negros não são os mesmos, os movimentos sociais. Eu penso que esse é um momento de ajuste. Eu sem querer participei dessa angústia profissionalmente. Em junho do ano passado eu tinha acabado de fazer Lado a lado, novela de uma importância absurda, que colocou o negro como protagonista, herói, falando coisas que não se falaram anteriormente.
Eu disse: “Caramba! Depois disso não tenho mais o que fazer na televisão”. Aí veio o protesto, um monte de cartaz pedindo um monte de coisa. Depois de um tempo eu entendi que essa angústia estava em mim também. Essa multiplicidade de temas estava em mim. Não há ainda um novo Brasil estabelecido. É um Brasil tentando se entender depois da euforia.

Você foi pra rua? Eu não tava no Brasil. Foi exatamente quando escolhi morar três meses e meio fora. A gente estava em Nova York vendo tudo, sabendo de tudo, informado, mas com a vida lá.

“Não há ainda um novo Brasil estabelecido. É um Brasil tentando se entender depois da euforia”

O que você foi fazer lá? Eu tava com minha família, coisa que eu não fazia havia muito tempo. Estava estudando inglês, mas foi o período em que a gente quis estar junto. Trabalhava muito, nosso filho nunca estava com o pai e a mãe ao mesmo tempo, em casa. Aí a gente falou: “Não, vamos parar tudo!”. E também foi um ano que eu passei muito doente. Eu tive fascite plantar [inflamação da planta do pé], tendinite, um cisto com inflamação aguda na corda vocal esquerda. Em Lado a lado eu estava super-rouco. Operei a corda vocal e tive muito medo de perder a voz. Foi muito tenso. Aí a gente optou: “Depois da cirurgia, vamos ficar entre nós, vamos descansar”.

Passado um ano, veio a Copa. Como é sua relação com futebol? Vejo em casa, com a família. Às vezes com um amigo, não tem como programar porque tô gravando direto. Gosto de futebol, sou torcedor do Vitória. Não tem essa coisa de ter um time no Rio, meu time é o Vitória! Que já me gera muito problema na Bahia [risos].

Você joga bola? Não. Eu sempre fui perna de pau, não praticava esporte, fui preguiçoso o tempo todo. Ainda sou, não tenho a menor vontade de fazer atividade física, não quero correr. Faço essas coisas quando tem trabalho, porque precisa. Faço capoeira, já fiz boxe, mas assim que acaba o trabalho eu volto a engordar.

E como é que você vê essa contaminação do futebol, da Copa, pela política? É natural, né? A maneira como a Fifa lida com os países que sediam a Copa, a quantidade de dinheiro que isso movimenta… É natural, ainda mais num momento em que o Brasil acabou de sair… Mas teve uma divisão, né? Os apaixonados continuaram vendo jogo. Teve Copa!

Algo emocionou você na Copa? O choro do [goleiro] Júlio César [ao fim da partida contra o Chile, nas oitavas de final], achei massa! Quando eu vejo a torcida eu acho lindo e me emociono. Quando vejo um atleta em superação, acho que é uma lição para todos nós. Aquele momento foi lindo. E claro que é divertidíssimo ver o uruguaio [Luis Suarez] mordendo o cara, né? É de uma loucura… É muito humano, é muito o momento, uma reação inesperada e inevitável que vem lá de dentro. Essa paixão, esse frisson do esporte, que leva a um lugar que é do primitivo. Eu acho lindo.

Voltando ao Espelho, foi muito comentada na internet a entrevista com o Criolo. Cem mil anos depois! O povo é doido, né? A entrevista de Criolo é ótima. Aquele trechinho ali [que viralizou nas redes sociais] eu acho maravilhoso. É que o Criolo fala poeticamente, como artista que é. Eu tinha vontade de interpretar o que o Criolo disse. Aquilo é quase uma música. O que ele tá dizendo é que a ascensão da classe C é o quê? Somente bens e consumos? Da maneira dele, no criolismo [risos]. Tá tudo dito. Eu entendi.

Depois da repercussão você encontrou o Criolo? Não encontrei. Preciso encontrar pra saber se ele sabe disso.

Essas coisas são boas para o programa no fim das contas? Pois é… Tinha gente que nunca tinha ouvido falar do Espelho e ouviu falar a partir desse vídeo do Criolo. Ótimo! Vivemos num tempo em que ser humorista é ser popstar, né? Os adolescentes querem ser humoristas e as piadas fazem parte da internet. Compreendo esse movimento.

O humor é o novo rock’n’roll? É. Mas eu ficaria feliz também se as pessoas vissem a entrevista completa e conseguissem acessar o raciocínio dele, porque eu acho muito interessante a provocação. Mesmo que não se entendam essas palavras ou que se faça piada sobre isso, ele faz uma provocação interessante. Ascender economicamente, ter acesso a bens de consumo, mas não investir em educação…

A sua mãe foi empregada doméstica. Hoje você tem empregada? Como lida com o dia a dia de patrão? É uma pergunta bem perigosa de responder, pelo seguinte: porque eu fujo. Eu deixo Taís resolver tudo. Talvez seja mais uma fuga, não é? Quem resolve é a Taís. Célia tá há 18 anos trabalhando com Taís, trabalhava na casa da mãe dela. Lininha, que é babá do nosso filho, foi babá dos sobrinhos de Taís e é babá do João agora. É uma coisa que está estabelecida há tanto tempo que ficou natural. Não tenho grandes questões sobre essa relação patrão e empregado. Quando teve as empreguetes [personagens da novela Cheias de Charme, em que Taís era protagonista], a gente ficou feliz junto.

Em quem você vai votar nas eleições? Eu não falo e nem posso falar, né? Você sabe que quando você tá no ar você não pode, né? Mas já tenho candidatos.

“Não tem que achar natural a maioria nos presídios, nas favelas, nos manicômios ter a pele escura. Não é natural. Não tem que ser incômodo só pra mim chegar num restaurante e o único negro ser eu”

Uma última questão: no futebol houve a campanha “Somos todos macacos”, que o movimento negro contestou. Como você vê essas ações? Primeira coisa é: racismo é crime, gente! Acabou, é a lei. Segundo: eu acho que comparações com animais são indevidas. Não quero me tirar com a comparação de um animal, e sim pela igualdade. Sabemos que temos diferenças, mas temos os direitos iguais e somos humanos iguais. Acho arriscadíssima essa campanha porque uma das coisas que tiram dos negros todos os dias é o direito à humanidade. Em dramaturgia, por exemplo, teve muito avanço em relação aos atores negros, mas às vezes é humanidade que falta. Quantas novelas você viu com uma família negra completa? Isso é a humanidade, mostrar qualidades e defeitos. A comparação acho desastrada, acho uma loucura. Somos todos humanos. E não dá pra brincar, esses assuntos são muito sérios. A gente tem que se indignar, a gente não tem que achar natural a maioria nos presídios, nas favelas, nos manicômios ter a pele mais escura. Não é natural. Não tem que ser incômodo somente pra mim chegar num restaurante e o único negro ser eu. Não é natural. E acho que já deu, entendeu? A gente ficou muito em meio-termo, em conversinha, e já deu. Os talentos estão em qualquer lugar, em qualquer cor, em qualquer origem. A gente tem que estar junto em todos os lugares. Já passou da hora, estamos muito atrasados nisso.















Fonte: Revista Trip

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