segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Aninha Franco: largando o doce!

ACM Neto, do executivo municipal, e Caetano Veloso, da tribuna poética, levaram ao miolo da Cidade da Baía e ao seu combalido Carnaval Igor Kannário, o príncipe do Guetho, acompanhado pela multidão que o venera para além dos seus deslizes. Pra falar a verdade que este Brasil bandido dos nossos dias precisa ouvir, quem tiver condições de atirar a primeira papoula, o primeiro alcaloide contra os deslizes de Kannário - uso de drogas, direção perigosa e apologia às drogas - que atire. Veloso deu carão na imprensa que omitiu um elogio seu destinado a Kannário, em entrevista. E perguntou a razão da omissão publicamente. 

E Neto contratou Igor pra cantar no Carnaval argumentando que o seu “respaldo popular” o credencia como atração da folia. É lógico. Isso é lucidez política. Idiotia é contratar artistas sem respaldo popular com dinheiro público. E a pipoca de Kannário entrou no circuito Osmar, na segunda-feira, deixando os habitantes do miolo da Cidade da Baía em polvorosa: que é isso? 
Isso é a vida pulsante da periferia de Salvador, uma das áreas mais criativas da Cidade, completamente abandonada pelos poderes públicos. É dela que vêm as expressões “é barril”, “boca de coco”, “largou o doce”, “atrasalado” “miseravão” e milhares de outras muito usadas pelas celebridades e “mudernos” fora da vasta região onde cantam Igor Kannário e Robyssão do Bailão. Onde Kelly Ciclone reinou e morreu. 

Regiões que abrigam 700 mil humanos em Cajazeiras, 450 mil em São Caetano, 60 mil em Paripe, 70 mil em Pernambués, 50 mil em Periperi, 51 mil em Tancredo Neves, 55 mil na Fazenda Grande do Retiro, etc. etc. com comércios e vidas internas próprias, quase sem serviços públicos das três esferas que servem ao miolo Barra, Graça, Rio Vermelho, Pituba, e poucos outros bairros, habitados, aproximadamente, por 10% da população. 

Entregue ao deus dará desde sempre, com muitas igrejas e muitos bares, essa região periférica é percorrida de dois em dois anos, durante as eleições, e abandonada assim que as urnas cospem políticos. Atualmente, ela tem bairros inteiros controlados pelo tráfico de drogas que - ouço moradores das regiões declarar - é mais elegante, menos violento, mais barato e mais generoso que o governo. 

Os moradores desses bairros têm péssimo transporte, péssima saúde, educação pública ruim, como de norte a sul do Brasil, e não dispõem de nenhum equipamento cultural. Todos os equipamentos culturais que funcionam, atualmente, mal e porcamente, funcionam no miolo da cidade. Em Alagados, talvez, o Centro funcione. Mal e porcamente. 

“Tudo nosso e nada deles” é uma denúncia espetacular a tudo isso. Eles não têm nada, como se vê, mas têm Igor Kannario, um sucesso que chegou ao Carnaval pela primeira vez depois de merecê-lo por muitos anos, acompanhado da multidão, o Povo, numa de suas mais emocionantes aparições carnavalescas. 
E o povo é, sempre foi, e sempre será a melhor companhia de um Artista. E de um político.

*Aninha Franco em Trilhas: largando o doce, Correio da Bahia, 21.2.2015

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