quarta-feira, 3 de junho de 2015

'Bandido bom é bandido morto': O silencioso retorno dos esquadrões da morte no Brasil


Deu no jornal O Globo no dia 25 de maio de 2015: 'Extinta em 2000, Scuderie Le Cocq volta à cena panfletando para incentivar denúncias'. Para os que possuem menos de 30, 40 anos de idade, talvez o nome não remeta a nada conhecido. Mas dentro da nova onda de conservadorismo que o Brasil vem vivendo, o seu reaparecimento não surpreende.

Para quem não conhece, a Scuderie Le Cocq - ou Esquadrão Le Cocq - é uma organização de segurança não-oficial fundada na metade dos anos 1960, após a morte do detetive Milton Le Cocq, que integrou a guarda do presidente Getúlio Vargas. Ele foi assassinado por um criminoso conhecido como Cara de Cavalo e, para vingar a sua morte, um grupo foi formado e rapidamente ganhou admiradores.

O apogeu da associação se deu justamente durante a ditadura militar, que durou até 1985. Nesta época, a Le Cocq se tornou notória no Rio de Janeiro não só pelo seu número de associados (7 mil), mas também pelo trabalho paralelo que fazia no 'combate ao crime'. Oficialmente, o E.M. em seu emblema significa 'Esquadrão de Motociclistas', ao qual pertenceu Milton Le Cocq. Mas a fama era que as letras diziam respeito a 'Esquadrão da Morte' mesmo.

Ainda muito famosa hoje, a frase 'bandido bom é bandido bom' foi cunhada, até onde se sabe, pelo deputado estadual Sivuca (PSC-RJ), presidente de honra da Le Cocq. Após a redemocratização, a organização perdeu força e definhou, como relembrou Sivuca ao jornal Folha de S. Paulo, em 2006. "Vivemos um fim melancólico", disse.

O retorno da organização - que tornou os 'Doze Homens de Ouro', grupo reunido para 'limpar o Rio' durante a ditadura - já havia sido noticiado em 2013. Mas a aparição sob os holofotes em 2015, em um tempo em que a violência segue sendo um prolema crônico no Brasil e as forças conservadoras estão mais do que nunca representadas na política, não parece acidental.

O Brasil Post já noticiou, logo após as eleições de 2014, como o Congresso Nacional seria mais conservador a partir de 2015. Não por acaso, pautas como a redução da maioridade penal, embora antigas (de 1993) e com argumentações precárias (o autor buscou alegações na Bíblia) ganharam força. E, ao que tudo indica, vão passar, mesmo com setores contrários.

O que não perdeu força foram os justiçamentos, sobretudo nas periferias das grandes cidades. Se a Le Cocq chegou a possuir 'células' em Estados como Espírito Santo - no qual, assim como na origem, os esquadrões da morte diziam quem ia viver ou morrer -, em São Paulo o esquadrão de elite da Polícia Militar, a Rota, quer voltar a ter a 'liberdade' que já teve um dia.

"Essa é a realidade, a inversão de valores das nossas ruas: bandidos caçando policiais. Aonde nós vamos parar? Tá na hora de liberar a polícia para caçar bandido como era na minha época. Essa é a grande lei, poder caçar bandido e poder acabar com essa 'colher de chá' pra criminoso, pra vagabundo, pra essas saídas temporárias que só tem no Brasil", sentenciou o vereador Roberval Conte Lopes (PTB).

Conte Lopes, para quem não o conhece, foi policial militar em São Paulo durante mais de 20 anos. Ele integrou o que é conhecido como 'anos de ouro' da Rota, pelo menos no que diz respeito aos que apoiam ações policiais nas quais só há uma verdade: a do policial. A Rota, um dos braços da Operação Bandeirante - criada pelo militares, com o apoio de empresários paulistas no início dos anos 1970 -, tornou-se conhecida rapidamente, sobretudo por operar sob suas próprias regras.

Foi o que motivou o jornalista Caco Barcellos (Rede Globo) a escrever um livro sobre a corporação. Rota 66 - A História da Polícia que Mata é provavelmente a publicação mais odiada pelos policiais, mas já chegou a ser indicada a jornalistas (como eu) pelo Ministério Público de São Paulo - antes de um dos julgamentos do Massacre do Carandiru, um promotor me disse para ler o livro, caso quisesse saber mais sobre a 'atuação da Rota' (PS: Eu já tinha lido).

No livro, a época que Conte Lopes define como sua, na qual "podia caçar bandido", é retratada como uma das mais mortais, notadamente na periferia. O hoje vereador, aliás, é apontado por Caco Barcellos como "um dos dez maiores matadores da Polícia Militar de São Paulo". E há outras definições ao PM e os seus atos 'contra a criminalidade' no livro, as quais cito a seguir:

"Desde a sua chegada na Rota, em 1974, sete anos depois de ter se alistado na PM, Conte Lopes persegue o sonho de ser reconhecido como o maior de todos os matadores. Por alguns anos, atuou à sombra dos dois maiores, sargento Roberto Lopes Martínez, campeão dos crimes de morte, e tenente Gilson Lopes, o vice. Alguns colegas afirmam que havia uma disputa entre eles pelo título, que representa vantagens na carreira. Com apenas três anos de experiência nas ruas, ele já havia matado no mínimo seis pessoas, crimes que o comando elogiou como um trabalho eficiente."

"Conseguimos identificar 36 das 42 vítimas de Conte Lopes registradas em nosso Banco de Dados. Constatamos que em muitos casos a morte poderia ter sido evitada, sem nenhum prejuízo à sociedade ou risco a pessoas inocentes. Nosso levantamento deixa claro que sua tática mais comum sempre foi agir de surpresa contra os suspeitos, em geral sem lhes dar qualquer possibilidade de defesa. Como freqüentemente escolhe os casos especiais para agir, é comum ter a seu lado PMs com um poderio de fogo muito superior ao da vítima, esta quase sempre acuada e em grande desvantagem. Uma forte evidência da sua intenção premeditada de matar os suspeitos é o grande número de vítimas mortas com tiros na cabeça. Detivemo-nos nos exames de cadáver de quinze pessoas mortas por Conte Lopes e verificamos que treze apresentavam ferimentos na cabeça, sendo que três delas haviam sido atingidas pelas costas. Constatamos também que ele foi construindo sua fama com a ajuda de seus comandantes e dos radialistas responsáveis pelos programas policiais de grande audiência. Todos esses sempre deram crédito às versões fantasiosas de supostos tiroteios em que se envolvia. Além de incentivá-lo a matar com promoções, troféus e referências elogiosas em sua ficha disciplinar, os comandantes ainda lhe davam crédito para apurar os crimes de seus colegas matadores."

Assim como no caso da Scuderie Le Cocq, alguns PMs dos tempos de Conte Lopes perdiam a cabeça quando o assunto é matar. O mais notório talvez seja o ex-policial militar Florisvaldo de Oliveira, mais conhecido como Cabo Bruno, que foi morto em 2012, após sair da prisão. Ele foi condenado por mais de 50 assassinatos, tendo liderando um esquadrão da morte em SP nos anos 1980.

Voltando ao presente, os números mostraram que a PM de SP bateu recordes de mortes em 2014, com quase 1 mil pessoas mortas - o número mais alto desde os ataques da facção criminosa PCC, em 2006. Em 2015, o primeiro trimestre apresenta uma alta letalidade continua e que se mantida levará aos mesmos números - no dia 27 de maio, um jovem de 16 anos foi morto no Grajaú, na zona sul de São Paulo, e o roteiro é aquele conhecido dos famosos 'kits flagrantes' já denunciados: resistência à prisão, tiroteio, e uma arma calibre 38 com a numeração raspada. Como nos tempos de Conte Lopes.

A discussão da redução da maioridade penal é apenas a protagonista de um enredo bastante complexo. E uma volta dos esquadrões da morte 'liberados para agir', como se vê, não parece ser mais um devaneio ou um sonho ruim.

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