terça-feira, 2 de junho de 2015

Os miseráveis


Os miseráveis: As favelas que crescem dentro das favelas
Comunidades mantêm bolsões de extrema pobreza. Para especialistas, condições urbanas acentuam penúria

O casal de catadores Maria Eunice Guimarães e Washington de Freitas, no local conhecido como Caranguejo, no topo do Morro do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana: acesso ao barraco tem 780 degraus - Márcia Foletto / Agência O Globo


RIO — Com o olhar perdido no horizonte, Maria Eunice Guimarães mastiga um sonho, desses de padaria. A vista é para o mar de Ipanema e Copacabana. Mas, como já dizia a música dos Titãs, “miséria é miséria em qualquer canto”. E Maria Eunice, aos 51 anos, nunca escapou dela. Quando criança, viu os irmãos morrerem de fome. Aos 7, fugiu de casa, segundo ela, porque sua mãe não acreditou que seu padrasto queria estuprá-la. Criou-se na rua. Admirava cartões-postais nas bancas de jornal. E foi parar numa paisagem digna de um deles. Mas a beleza não esconde as feridas ainda abertas em sua vida: mora no ponto mais alto do Pavão-Pavãozinho, 780 degraus morro acima, no pedaço da favela conhecido como Caranguejo, onde predominam barracos de madeira, como o de Maria Eunice, e casas de pau a pique.

Lá estão os mais excluídos, uma espécie de favela dentro da favela. Situação que, como mostra a terceira e última reportagem da série “Os miseráveis”, se repete em outras comunidades da capital. Nesses bolsões, está boa parte dos 178.815 cariocas (2,8% da população) que vivem na extrema pobreza, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Social. Eles estão quase sempre em lugares de difícil acesso, muitas vezes em situação de risco. No Pavão-Pavãozinho, onde uma casa na parte baixa custa até R$ 200 mil, o barraco de Maria Eunice não tem banheiro ou eletrodomésticos. É o contraste dentro da comunidade, que tem, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), apenas 0,9% de miseráveis.

Sem acesso a programas sociais, Maria Eunice e o companheiro, Washington de Freitas, são “garimpeiros urbanos", sobrevivem do que moradores de Copacabana jogam fora. Quase tudo o que o casal tem foi achado no lixo. Inclusive o sonho que Maria Eunice comia na manhã de 21 de maio.

— Achamos no lixo do mercado. Pegamos também carne, resto de mortadela, raspa de queijo. Não tenho vergonha. Cumpri 17 anos de prisão por roubo e homicídio. Há seis, estou em liberdade. E ganho minha vida honestamente, embora eu já tenha jogado minha carteira de trabalho fora. Ninguém emprega ex-presidiário — conta Washington.O desemprego no Pavão-Pavãozinho, no entanto, não é dos mais graves. O Diagnóstico Socioeconômico das Comunidades com Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), da Firjan, diz que está em torno de 5%, o sexto menor entre 26 favelas pesquisadas. Mas a escolaridade média é de 5,9 anos.

Pouco estudo é o que impede Jéssica das Neves de avançar. Moradora de um barraco na Cidade de Deus, a jovem, de 25 anos, abandonou cedo a escola. Fugiu de casa, usou drogas e morou na rua. Hoje treme na hora de preencher ficha para emprego: nunca aprendeu a ler e escrever direito. Com R$ 145 do Bolsa Família, mais os biscates, consegue R$ 400 por mês para se sustentar e alimentar a filha Jasmin, de 4 anos, e a sobrinha Raiane, de 12:

— Hoje tenho meu barraquinho para sair do relento. Eu mesma construí. Andei a Barra inteira para encontrar madeira. Se tivesse dinheiro, compraria uma casa para minha filha.

Um terreno e uma casa de alvenaria, Francisca Ernestina Oliveira, de 39 anos, já conseguiu. Mas precisa usar artimanhas que aprendeu no sertão do Ceará para criar seis filhos e dois netos. O lugar em que vive, a Morada 2001, é uma invasão sem luz, água ou esgoto, atrás da comunidade Três Pontes, em Paciência, na Zona Oeste — área que, segundo dados do Pnud, tem a maior proporção de miseráveis na cidade, 9,3% dos moradores. Mesmo percentual encontrado em comunidades como Minha Deusa, em Realengo, e Canal da Ponte Branca, em Santa Cruz, também na Zona Oeste. Condições urbanas que, segundo Marcelo Ribeiro, do Observatório das Metrópoles do Ippur/UFRJ, em geral, reforçam a situação de miséria.

— É um ciclo vicioso. As más condições urbanas contribuem para a situação de miséria, e a miséria empurra as pessoas para lugares onde as condições urbanas são piores.

Também do Ippur, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro diz que, nas favelas, a localização também impacta a qualidade de vida dos moradores:


— As mais acessíveis, no Centro e na Zona Sul, têm tendência à homogeneidade social. Longe desses locais, quanto maiores, mais chances de serem heterogêneas e terem bolsões de pobreza.

Nada que tire a esperança de Maria Eunice:

— Sou pura realidade da vida sofrida. Mas, se anoiteceu, uma hora tem que amanhecer.

COMO VIVEM OS EXCLUÍDOS DENTRO DAS FAVELAS

Jéssica das Neves mora num barraco de madeira na Cidade de Deus, com uma filha e a sobrinha Raiane...Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Luiz Cláudio dos Santos, também na Cidade de Deus, mora em uma casa, sem banheiro, construída em um...Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Rejane Oliveira mora na localidade conhecida como Areinha, em Rio das Pedras. As varizes nas pernas...Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

A catadora Maria Eunice Guimarães também vive num barraco de madeira, no alto do Pavão-PavãozinhoFoto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Maria Eunice Silva Guimarães lava roupas perto de sua casa, ela e o marido Washington José de...Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

O barraco do casal Maria Eunice e Washington fica no ponto mais alto do Pavão-Pavãozinho, na região...Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
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SEM BANHEIRO NO RIO

Na cidade das Olimpíadas de 2016, viver sem um banheiro não é tão raro quanto se possa imaginar. Embora tenha passado grande parte de sua vida construindo casas, o pedreiro Luiz Cláudio Santos, de 42 anos, não conseguiu terminar a sua própria, na Cidade de Deus. Ele até iniciou as obras do que seria seu banheiro, mas não as concluiu. E, para complicar, teve de amputar parte dos dois pés, devido a consequências da diabetes.

- Tomo banho na pia ou na casa de uma ex-enteada, a Priscila - conta ele.

Luiz Cláudio dos Santos, também na Cidade de Deus, mora em uma casa, sem banheiro, construída em um antigo galinheiro. Ele, que é diabético e teve que amputar os pés, não tem nenhuma fonte fixa de renda - Márcia Foletto / Agência O Globo

Sem conseguir mais trabalhar em sua profissão, hoje ele cata latinha para reciclagem e cuida de passarinhos de vizinhos, o que não lhe rende nem R$ 100 por mês. Sem Bolsa Família, ele espera se aposentar por invalidez. Mas no dia em que conseguiu agendar uma perícia no INSS, não tinha o dinheiro para a passagem de ônibus.

A mesma Priscila, com marido e quatro filhos, também empresta o banheiro para outra vizinha, sua prima Olívia Menezes da Silva, de 22 anos. Olívia, na verdade, mora com o companheiro e quatro filhos pequenos num cômodo cedido por Priscila desde que saiu de São Gonçalo, onde vivia em meio a rusgas com o padrasto. Mas diz que essa nem é a pior condição em que já viveu.

- Antes de ir para São Gonçalo, morava no Sítio (área da Cidade de Deus já removida), num barraco de madeira - conta ela.

HISTÓRIAS DA MISÉRIA

Rejane Oliveira mora na localidade conhecida como Areinha, em Rio das Pedras. As varizes nas pernas reduziram sua capacidade de trabalho - Márcia Foletto / Agência O Globo

Em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio, as desigualdades dentro da mesma favela também saltam aos olhos. São duas as áreas mais pobres dentro da comunidade, o Areal e a Areinha, ambas próximas à Lagoa da Tijuca. Foi lá que, cerca de seis anos atrás, Luciana de Queiroz e seu marido Marceliano Duarte ergueram sua casa. Eram tempo, por bem dizer, de vacas gordas. Mas o aperto foi aumentando e, agora, ele nem sabe como vai fazer para as compras deste mês.

Marceliano estava trabalhando como pedreiro numa obra em outra comunidade, a do Anil. Mas a construção parou e, mês passado, ele não conseguiu serviço algum. Já Luciana já foi doméstica e cuidou de idosos. Mas adoeceu, com pressão alta e diabetes. Faz anos já que não consegue um emprego, o que a fez entrar em depressão.

- É muito triste você ter saúde e, de repente adoecer e ninguém querer mais você para trabalhar - conta ela. - A situação já vinha ficando difícil há algum tempo. Construímos a casa, mas nunca conseguimos mobiliá-la. A sala, por exemplo, está vazia. Mas agora está mais difícil. No armário, só tenho arroz, açúcar, alho, extrato de tomate e macarrão - diz Luciana.

Problemas de saúde que também dificultaram a vida de Rejane Oliveira Morais, na mesma área da favela. Aos 37 anos, as varizes já lhe castigam as pernas. E se antes tomava conta de até oito crianças da vizinhança, atualmente são só duas.

- Só de curativo nas pernas, gasto até R$ 60 por mês. Dependemos hoje do que meu marido ganha fazendo biscates. Mas, tirando pelo que já passei na minha infância, não posso nem reclamar da vida que tenho, ou de morar num barraco de madeira. Não é do jeito que eu queria. Mas é melhor do que tive no passado - afirma ela, que já chegou a morar na rua em Miracema, no Noroeste do estado.


POR MARIA ELISA ALVES E RAFAEL GALDO - O Globo

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