Relatora do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 25 anos atrás, a ex-deputada Rita Camata afirma que a tentativa de alterar a idade penal para 16 anos mascara falhas do poder público no Brasil
Relatora do ECA em 1990, a ex-deputada Rita Camata afirma que a redução da idade penal não vai tirar menores do mundo do crime: "Vão procurar os de 14 ou 12 anos"(VEJA.com/Divulgação)
'Se a redução da maioridade for aprovada, será mantida a indústria da cooptação de adolescentes. Vão usar os de 14 ou 12 anos'
O assassinato brutal de um médico no Rio de Janeiro por adolescentes reacendeu o debate sobre a redução da maioridade penal na Câmara dos Deputados. A tendência é que o tema seja votado até o final do mês, véspera de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completar 25 anos. Para a ex-deputada Rita Camata (PSDB-ES), responsável por elaborar o texto no Congresso, a discussão mascara a omissão dos governos estaduais e federal em aplicar políticas socioeducativas direcionadas aos jovens. "Hoje joga-se a culpa sobre o ECA no lugar de assumir a própria negligência e a falta de compromisso da sociedade e dos governos com a juventude. A lei está sendo responsabilizada, mas não a ausência de políticas preventivas e socioeducativas para aqueles que entraram no mundo do crime", afirma Rita, hoje afastada da política. Leia a entrevista ao site de VEJA:
O ECA completa 25 anos no próximo mês em meio a uma intensa discussão para se endurecer as penas para jovens infratores e aumentar a idade penal. O estatuto prevê um arcabouço jurídico, com uma Justiça especializada para atender todos os adolescentes que cometem qualquer infração a partir dos 12 anos. Essa ideia da redução vem em um processo mais emocional. É necessário ressaltar a importância de política de segurança pública e de políticas sociais preventivas. Está claro que o debate sobre a redução penal traduz a negligência do estado e da sociedade com as crianças e adolescentes no país. Ele acaba camuflando a ausência dessas políticas públicas, da família em cumprir o seu papel, da sociedade em exercer a sua função e do estado para garantir todos os direitos desde a pré-escola. As políticas preventivas que são essenciais para garantir a inclusão de todos esses meninos e meninas no processo produtivo e na sociedade infelizmente não vêm acontecendo.
Para a senhora o ECA está sendo responsabilizado por uma omissão do estado? Hoje joga-se a culpa sobre o estatuto no lugar de se assumir a própria negligência e a falta de compromisso da sociedade e dos governos do país com a juventude. A lei está sendo responsabilizada, mas não a ausência de políticas preventivas e socioeducativas para aqueles que entraram no mundo do crime. Eu vejo de forma muito clara que nós estamos matando nossas crianças ou que elas estão deixando de ser crianças e adolescentes. Estão tendo instrumentos do crime de forma precoce. Há essa visão de que diminuindo a inimputabilidade vai ser resolvido o problema da segurança pública. Isso é uma falácia, uma coisa que revolta quem conhece a legislação atual e sabe que ela não está sendo garantida de forma adequada.
Depois de 25 anos de criação, o estatuto precisa de ajustes? Eu acho que sim, não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. Quando ainda estava na Câmara, há nove anos apresentei um projeto aumentando o tempo da pena para aqueles que cometem crime contra a vida e que estão envolvidos no tráfico de drogas. Propus que o período de internação passasse de três para seis anos. Outra proposta era que, em caso de reincidência, o adolescente deixasse de ser ficha limpa e constasse que ele já havia cometido crimes. Mas as propostas foram arquivadas. Apesar disso, muita coisa no estatuto foi alterada, como a questão da exploração sexual e da violência contra a criança e o adolescente. Eu acho que muita coisa avançou, mas com certeza há o que ser ajustado. A vida é dinâmica, o mundo, globalizado, e acho que a legislação sempre pode ter uma visão além.
Deputados favoráveis a uma punição mais dura afirmam que o ECA está ultrapassado. Não está ultrapassado. Ele trata desde um embrião até àquele que cometeu um crime. É um estatuto completo, importante e eu tenho certeza de que nós avançamos com a aprovação dele. O ECA trata dos infratores em um capítulo pequeno e é muito mais amplo do que isso. O nosso sonho é alcançar todas as metas de responder às necessidades que o adolescente precisa na área da educação, da cultura, do esporte e ainda na questão da convivência familiar e comunitária. Eu diria que são apenas pontuais as adequações que podem ser necessárias. A dificuldade, infelizmente, é garantir a implantação do estatuto.
Outro argumento é que a redução da maioridade não resolveria o problema da segurança pública, mas acabaria com o sentimento de impunidade entre os jovens. A adolescência é uma fase da vida de testar limites e buscar autoafirmação. O que me deixa incomodada é o fato de as autoridades não saberem qual papel elas podem desempenhar e os pais não saberem a sua obrigação na formação dos filhos e impor limites a eles. Eu acho que a impunidade tem de ser condenada quando cometida por qualquer pessoa, não importa a idade. É inaceitável que as pessoas cometam atrocidades, roubem, matem, ameacem e terminem impunes. Segundo dados oficiais, apenas 7% dos crimes são elucidados e os condenados pagam pelo o que cometeram. É muito pouco. Isso é serio, é grave e não vai ser uma lei que vai alterar. É um processo cultural. Os poderes têm de desempenhar um papel para resgatar o sentimento de que se eu estou fazendo uma coisa errada, eu vou pagar por isso.
Ao testar limites, como a senhora diz, os adolescentes têm consciência dos seus atos? Com absoluta certeza eles têm consciência. E desde muito cedo. A fase da adolescência é de muito mais impuls. Eles têm absoluta consciência do que estão fazendo, se é correto ou não. Mas é algo de impulso, de manada, de não ter referência familiar. Se formos avaliar o histórico desses jovens, a maioria não teve família, não teve infância e nem adolescência. Foram cooptados pelo crime e pelo mundo das drogas.
Uma alternativa à redução da idade penal seria aumentar a pena aos aliciadores de menores? Isso é essencial. Caso contrário, se a redução da maioridade for aprovada, será mantida a indústria da cooptação de adolescentes. Vão usar os de 14 ou 12 anos. Eu vejo como muito mais producente aumentar a pena do adulto que usou um jovem do que apenas reduzir a inimputabilidade. E, como outra alternativa, defendo o aumento da pena para aqueles que cometem crimes contra a vida, que estão envolvidos com o tráfico e a previsão de constar na ficha criminal de que aquele jovem é reincidente.
Qual a efetividade das medidas socioeducativas? É possível recuperar um menor infrator? Onde há aplicação do que está no estatuto, o índice de reincidência é muito pequeno, conforme dados que demonstram a eficácia da aplicação da lei. Mas, na maioria dos estados, há uma negligência e um descompromisso político com a aplicação do estatuto. O ECA prevê uma Justiça especializada para dar celeridade ao processo e para que o adolescente entenda que ele errou e que ele tem a oportunidade de se recuperar em uma instituição. Também determina que o jovem estude enquanto estiver preso, o que, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, não acontece em 57% dos casos. A proposta do estatuto é que o jovem estude e seja recuperado. Mas a gente não vê investimento sendo feito com vontade política para que esse objetivo seja alcançado.
A senhora não apoia a redução da maioridade penal em nenhuma condição? Imagina se hoje, com uma Justiça especializada para dar mais rapidez ao julgamento, com locais diferenciados para que os jovens possam estudar, aprender um ofício e se recuperar do vício, não se está dando uma resposta satisfatória, você reduzir a idade penal e mandar os adolescentes para a universidade do crime, que são as prisões nesse país, é colocar a sujeira embaixo do tapete. Que tipo de pessoa volta dessas penitenciárias? É uma reflexão que quem está discutindo isso tem de fazer. Eu acho que é uma forma de enganar. É um factoide dizer que a redução da idade penal vai resolver o problema da segurança pública. Nada vai mudar o problema, e ainda pode piorar.
Por que a senhora abandonou a política? Chega uma hora em que você cansa. Comecei muito cedo, fui deputada constituinte com vinte e poucos anos, foram cinco mandatos sempre trabalhando com os movimentos sociais. Meus projetos aprovados tiveram contribuições de movimentos sociais, que viam no meu gabinete e na minha atuação uma possibilidade de fazer com que as necessidades que eles viviam se transformassem em políticas públicas e avanços sociais. Mas eu vi as coisas mudando muito com o governo do PT. Além da corrupção, que hoje é uma coisa nojenta desse governo, que desmoralizou o país fora e internamente, me incomoda a cooptação e a tutela dos movimentos sociais. Isso é um crime perverso que se impôs como real na vida desse país. Antes os movimentos recebiam recursos do governo, mas tinham autonomia para questionar, para se manifestar e se mobilizar. Hoje não. Se avaliarmos o movimento estudantil, não restou mais nada. Tudo virou chapa branca. Eu passei a me perguntar o que estava fazendo na política. Não fazia parte de esquema nenhum, estava por ideal. Ia ficar me matando sozinha se não contava mais com os movimentos de que eu sempre tive suporte para poder avançar nas conquistas da inclusão social? Então decidi cuidar da minha vida e da minha saúde.
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