segunda-feira, 22 de junho de 2015

Retóricas e Gestos em Tempos de Intransigências: Intolerância Religiosa, Racismos e Pedras nos Caminhos

Simbolo criado pelo publicitário João Silva contra a Intolerância Religiosa

Mas, que tempos são esses que vivemos em nosso país chamado Brasil? Para mim, vivemos tempos de intransigências retóricas e gestos violentos fincados em argumentos do senso comum nada lógicos, porém eficazes, que explica, justifica, legitima, condena e pune pessoas ou grupos a partir de suas origens étnico-raciais, religiosas, de suas orientações sexuais, de suas relações homo-afetivas, idades, condições socioeconômicas e culturais, entre tantos outros aspectos.

Tudo isso, à despeito da Constituição Brasileira que em seu artigo 5º afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade de consciência e crença sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de cultura e a suas liturgias, à igualdade, à segurança e à propriedade e neste sentido, a casa é o asilo inviolável do indivíduo e ninguém nela pode penetrar sem consentimento do morador.

O artigo 5º em seus termos ainda declara que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais e a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.

São tempos do século XXI, em que crianças, mulheres e homens negros continuam a viver a terrível experiência da exclusão não só aos bens materiais e sócio-históricos-culturais, mas de toda a experiência de ser, estar e se sentir HUMANO, em meio a toda HUMANIDADE democratizada nacional, isto porque alguns grupos e pessoas se entendem mais HUMANOS que outras pessoas e grupos.

São tempos difíceis em que nas práticas cotidianas, vemos a pedagogia da discriminação, da separação e classificação proliferar em espaços familiares, escolares, religiosos, culturais, sociais revelando vergonhosamente fissuras nas paredes da democracia nacional que não tem dado conta de dar respostas à altura, à onda nazista evangélica que tem se alastrado feito praga nociva ao exercício da cidadania em nosso país. Inclusive, porque à essa onda, se juntam grupos e cidadãos como conservadores, liberais, neoliberais, progressistas, neo-progressistas e reacionários.

Todos com um discurso muito parecido que tem como marca a intolerância.

E nesse ponto é impossível não me referir à Hirschman (1992) e seus estudos que apontam as três teses reacionárias que grupos fundamentalistas utilizam para se contraporem ao estado democrático de direitos: a tese da perversidade, da futilidade e da ameaça.

Argumentos pautados na tese da perversidade afirmam que a busca pela liberdade e pelos direitos humanos provocam, provocaram e provocarão a escravidão, que na busca pela democracia encontrar-se-á a tirania e que os programas sociais para o bem-estar de uma maioria pobre esmagadora nesse país tem criado pessoas acomodadas e dependentes.

Nesse caso, qualquer tentativa de melhoria social está fadada ao fracasso. Já os argumentos pautados na tese da futilidade são mais apurados, com requintes de crueldade porque criado friamente, tudo vira uma piada e provoca a sensação de desânimo nas pessoas, porque é um discurso efetivo em dizer que por mais que fizermos nada mudará, nada sairá do lugar; ele então se junta ao efeito perverso e baseia-se nas consequências imprevistas das ações humanas e na crença da impossibilidade de mudar estruturas básicas da sociedade que não podem ser mudadas porque o país/mundo está estruturado dessa forma, portanto, tentar lutar para alcançar certas metas é perda de tempo.

E os argumentos pautados na tese da ameaça se concretizam quando pedras são miradas em crianças, jovens e adultos e se transformam em pedradas atiradas contra SERES HUMANOS, pedras que fazem sangrar.

A tese da ameaça busca provar que é preciso extinguir, extirpar da face da terra aqueles/as que oferecem resistência aos seus ideais e projetos grupais. Como consequência da tese da ameaça acabamos percebendo pessoas com a tendência a se imobilizarem e correrem de um posicionamento público por medo, pois se sabe que a ameaça concretizada em formas de violências públicas estagna o corpo mediante uma ação necessária.

Aqueles/as evangélicos/as que adotam uma postura que aqui chamarei de nazistas evangélicos por manterem discursos e ações racistas, sexistas, homofóbicas, xenófobas entre outras que incitam ao ódio, pregando não somente a superioridade intelectual mas também, étnico-racial e religiosa, estruturam seus discursos de pregações fundamentados no ataque, demonização e satirização de outras pessoas e denominações religiosas tendo católicos, espíritas e adeptos das religiões de matriz africana na mira, sendo que todos sabem qual é a preferência nacional de todos eles: são os ataques públicos aos candomblecistas.

Crianças e jovens são diariamente aviltados, xingados e atacados nos espaços escolares e em seus direitos constitucionais simplesmente por terem a cor negra em suas peles ou mesmo quando comparecem à escola com seus fios de contas ou roupas brancas.

Eles são agredidos verbal e até fisicamente por colegas da escola e até mesmo, por profissionais da educação. Por vezes, são publicamente xingados e comparados aos demônios que eles mesmos desconhecem, mas que aqueles profissionais conhecem muito bem.

O que tem me deixado em estado de alerta é o fato de que a mão que segura a bíblia é a mesma que atira pedras em crianças, jovens, senhoras e senhores; a mão que segura a bíblia é a mesma que ergue porretes, invade e destrói casas alheias e locais litúrgicos que a constituição objetiva defender; a mão que segura a bíblia é a mesma que tira sangue dos diversos corpos sociais, de negros/as, homossexuais, mulheres, crianças, candomblecistas, umbandistas, católicos, entre outros.

E esse estado de alerta para mim tem um motivo concreto: pela existência da justificativa de que estão fazendo tudo isso em nome de Jesus. Para mim, tais movimentos que se repetem em várias partes do país, de uma forma muito orquestrada terão como consequência uma Guerra Santa bem perto de nós, no Brasil, não da forma como já temos acompanhado a um certo tempo, mas como vemos em outros países.

A bancada evangélica tem tido conquistas fundamentais nos espaços públicos nos níveis municipal, estadual e nacional, enquanto maioria que tem buscado legislar em interesse próprio, derrubando projetos de leis que procuram trazer igualdade de direitos à diversidade nacional, retrocesso jamais visto antes na história de nosso país.
E para piorar é com profunda indignação que compartilho a percepção de que a pedra que feriu uma menina de 11 anos não feriu toda a nação brasileira, isto por conta da lógica da qual falava o professor Milton Santos de agirmos pautados naquilo que nos separa e não no que nos une, daí a alienação. As pessoas não se tocam, não se comovem, não conseguem se envolver com a questão ainda que não sejam candomblecistas ou talvez justamente por sermos candomblecistas.

Não! Não estou conclamando ninguém para ser candomblecista até porque a minha religião prega e vive o direito que todos temos de ir e vir, de ser e estar da forma que bem entendermos, celebrando a união entre pessoas e integrados à natureza viva. Só gostaria de ver as pessoas menos egoístas e pautadas nos direitos humanos, no direito à vida, ao respeito, à dignidade, entendendo que aquela menina podia ser uma de suas filhas, irmãs, amigas, netas ou você.

Sim, Kailane Campos podia ser você! Certamente, eu sou Kailane! A pedra também me acertou e a ferida ainda sangra. Eu também me sinto atacada pela alienação das pessoas e muitos políticos com relação a esse caso e aos demais, pelo silêncio, pelo escárnio.

Sim, eu sou Kailane e ao longo de uma vida inteira dentro de religião de matriz africana, já fui apedrejada muitas vezes ao sair com meus fios, turbantes e roupas que me caracterizam como “de dentro” do culto. Sim, eu sou Kailane e busco caminhos jurídicos para entender como responsabilizar coletivamente pessoas e inclusive um Estado que tem visto tantas atrocidades de um grupo religioso contra outros sem que consiga dar respostas efetivas através de políticas públicas capazes de mapear, diagnosticar, aplicar medidas ainda compensatórias, acompanhar e por fim, punir grupos e pessoas que desconsideram a diversidade nacional e a liberdade de escolha religiosa sem sequer fazer campanhas publicitárias que promovam o respeito e o diálogo inter-religioso.

Sim, eu sou Kailane e estou bem atenta às amarrações políticas que os governos, sem exceção, têm feito com tal bancada porque reconhecem neles o poderio capaz de eleger candidatos aos diversos cargos políticos. Sim, eu sou Kailane, mulher negra e candomblecista ciente de que a pedra que nos acertou voltará ao grupo que a atirou porque a energia do grande juiz chamado Xangô e seus 12 juízes, reinará. Eles também são divinos e vivos!

Por fim, um recado: tire a sua pedra, seu medo e o seu rancor do meu caminho porque eu, de cabeça erguida, vou passar com a minha cor, com a minha dignidade, com a minha fé nos ancestrais africanos/as, com a minha religião e com meus irmãos e irmãs de fé, mais velhos e mais novos que eu e que estão também nessa luta porque tenho a certeza de que não estamos sós: Igbà-Iwà, a Cabaça da Existência, nos guarda e ela é feminina! Axé!!!


por Kiusam de Oliveira via Guest Post para o Portal Geledés

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