Sergipano que expõe em Veneza diz que conterrâneos não valorizam a arte
Na cidade de Nossa Senhora da Glória, no sertão sergipano, há quem pense que ele é macumbeiro; uns acham que é milionário; outros, que não bate bem. "É aquele que faz uns bonecos?", quer saber um jogador de dominó na calçada da avenida principal da cidade. Diante da resposta afirmativa, informa: "Acho que ele está no estrangeiro. Mas vá até lá e fale com a mulher dele".
Cícero Alves dos Santos, mais conhecido como Véio, de fato esteve no estrangeiro. Quando recebeu a reportagem de Serafina, o artista havia acabado de voltar de Veneza, onde inaugurou uma exposição individual patrocinada pela grife italiana Marni. Até novembro, paralelamente à Bienal da cidade, 109 esculturas em madeira feitas por ele ocupam uma antiga abadia do século 12 em Punta Della Dogana, à beira do Grande Canal.
Em 2012, ele já havia exposto na Fundação Cartier, em Paris. Mas o reconhecimento internacional não faz Véio querer deixar Sergipe. Pelo contrário. Gosta do leite tirado na hora, da comida com farinha e do rancho onde vive, na beira de uma estrada.
"Se vierem me dizer para morar lá [na Europa], não vou. Não quero nenhum daqueles palácios. Eles vivem cercados de água. E eu sou do sertão", diz o senhor de 67 anos, rodeado pela mulher, Maria, e pelos cachorros em sua casa simples.
Nossa Senhora da Glória fica a duas horas de Aracaju, atravessando o agreste e pequenas cidades, como Itabaiana e Ribeirópolis, pela BR-235 e pela SE-175.
Logo na entrada da propriedade rural, uma sequência de esculturas coloridas se enfileira sobre o chão de terra batida. É numa pequena casa-oficina, nos fundos do terreno, que ele esculpe seus bichos gigantes, figuras humanas e pequenas cenas, reunindo ali um acervo de quase 10 mil peças.
"Mas, por aqui, ninguém quer saber de arte. Se cada obra minha tivesse título de eleitor, tinha político aqui fazendo fila", diz. "Na Itália, as pessoas queriam saber de tudo, mas foi difícil falar do trabalho usando intérprete. A comunicação é truncada."
ARTISTA, ARTESÃO
Desde 2009, Véio é representado pela galeria Estação, de São Paulo, especializada em arte popular. Durante uma de suas visitas à cidade, o diretor da Fundação Cartier, Hervé Chandès, esteve no local e foi apresentado a uma série de artistas, entre eles Cícero.
Poucos meses depois, o sergipano seria convidado a integrar a coletiva "Histoires de Voir" (histórias de ver) na instituição francesa. Algumas peças foram compradas e passaram a integrar o acervo permanente da fundação.
"É parte do meu trabalho fazer as pessoas entenderem a diferença entre um artista popular e um artesão", diz Vilma Eid, dona da Estação. "Às vezes, um artesão faz peças especiais, mas um artista como o Véio é diferente: há uma coerência, uma consistência na linguagem que atravessam toda a obra dele."
Foi na exposição em Paris que a fundadora e designer da Marni, Consuelo Castiglioni, conheceu o trabalho do artista e achou que ele tinha tudo a ver com a identidade -colorida, gráfica, espontânea- associada à grife. Escalou o curador Stefano Rabolli Pansera, milanês radicado em Londres, para ir a Sergipe e escolher as peças para a mostra veneziana, evento comemorativo dos 20 anos da marca.
CHUCULATERA
Fazendo valer o apelido que ganhou aos cinco anos -porque gostava de escutar conversas e histórias de gente velha-, Véio é um entusiasta do sertão de antigamente. Além de suas próprias esculturas, ele mantém em casa uma coleção de objetos da vida cotidiana tradicional do sertanejo: artefatos de ferraria, sapataria e objetos de cozinha que foi comprando ao longo de quatro décadas.
"Isso aqui é uma 'chuculatera'", ele diz, mostrando uma espécie de bule. "Gonzaga homenageou esse objeto em música." E do que mais sente falta depois que o "progresso" chegou à região? "Da honestidade. Se um homem dissesse uma palavra, não precisava de papel, não precisava de cartório."
Nem tudo, porém, era simples naqueles idos dos anos 1950. Na infância, ele fugia das brincadeiras de grupo para, sozinho, fazer pequenas esculturas com cera de abelha. Quando flagrado, diziam que ele gostava era de "brincar de boneca", tachavam-no de afeminado. O sertão tem suas manias.
Véio fazia suas obras sem saber direito o que era arte e o que era ser artista. "O sertão era roça. Quem não era da roça era preguiçoso", lembra. A primeira vez que mostrou seu trabalho foi num comercial do Banese (Banco Nacional de Sergipe): foi até a sede do banco, em Aracaju, mandou chamar o presidente e ofereceu seu rosto e suas peças para um anúncio da TV regional sem cobrar nada. Trato feito. Depois de 90 dias no ar, muitos sergipanos já sabiam quem ele era, o que o ajudou a conseguir pequenas exposições aqui e ali.
Nos anos 1980, durante um evento de arte regional em São Paulo, o então ministro do Trabalho Almir Pazzianotto viu suas peças e elogiou a tal "cerâmica de Sergipe". Véio fez questão de intervir: "Me desculpe, mas isso não é cerâmica. É madeira e sou quem faço". Acabou descolando uma exposição em Brasília.
"Cícero Alves dos Santos não é apenas um dos grandes artistas brasileiros vivos", escreveu o crítico Rodrigo Naves num ensaio. "Talvez estejamos diante de um artista que, por sua amplitude de visão, finalmente rompeu com a divisão estanque entre arte popular e arte."
A vida ele tocou conciliando a prática da pequena agricultura e pecuária com a confecção das peças -só vende as que quer e quando quer. "Nunca fui empregado de ninguém. Quem tem chefe tem obediências, e, na arte, ninguém pode mandar", diz. Na galeria paulistana, seus trabalhos custam hoje entre R$ 8.000 e R$ 45 mil.
Mostrando os velhos troncos dispostos no chão, ele diz que é das próprias formas naturais que nasce a inspiração. "Isso, para mim, é ouro. Com isso, eu faço até santo, só não faço milagre." Para cada peça que cria, ele garante que inventa junto uma história e uma interpretação. O sertão não virou mar, mas Veneza chegou um pouco mais perto de virar sertão. POR GABRIELA LONGMAN N. SRA. DA GLÓRIA (SE)
Fonte: Folha de S. Paulo
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