segunda-feira, 13 de julho de 2015

Riserio e a relação entre a mulher e a cidade

Em novo livro, Antonio Risério reflete sobre a relação entre a mulher e a cidade no Brasil e no mundo
Em ensaios, antropólogo também analisa a vida e as obras de Carmen Portinho, Lina Bo Bardi e Lota de Macedo Soares
 
Antropólogo Antonio Risério lança o seu novo livro “Mulher, casa e cidade” e participou da Flip em Paraty - Gustavo Stephan

RIO - Antonio Risério é um intelectual à moda antiga. No seu livro recém-lançado, “Mulher, casa e cidade” (Editora 34), o antropólogo baiano constrói amplos arcos históricos, que vão da Antiguidade ao mundo contemporâneo, em artigos e ensaios que abordam a tensa relação entre a mulher e a cidade. Risério é capaz de apontar a ausência da urbanidade na obra da romancista japonesa do século XI Murasaki Shikibu e refletir sobre a contribuição decisiva de três mulheres para a arquitetura brasileira no século XX: Lota de Macedo Soares, Lina Bo Bardi e Carmen Portinho. Carmen foi uma das primeiras mulheres formadas em engenharia no país, e a responsável por construir as obras do seu marido, o arquiteto Afonso Reidy, como o Museu de Arte Moderna do Rio (MAM).

Os textos reunidos no novo livro — que dá continuidade a algumas reflexões do elogiado “A cidade no Brasil” (Editora 34), publicado em 2012 — foram escritos ao longo de muitos anos. O pontapé inicial da obra foi uma palestra do antropólogo sobre a mulher e o espaço público na Escola da Cidade, da USP, em 2012. A partir daí começou a recolher anotações e escritos antigos e viu que o assunto renderia um livro. No sábado passado, Risério recebeu o GLOBO para uma entrevista em Paraty, onde participou da mesa “A cidade e o território”, na Flip, com o poeta Eucanaã Ferraz. Ele afirmou que o movimento feminista foi o mais importante em séculos, ao introduzir a ideia de igualdade entre homens e mulheres, e disse que vê saída para as cidades brasileiras.

— Nós vivemos a maior crise urbana de toda a história do país. Se as pessoas forem sérias, tem saída. Você chega nos municípios hoje e os prefeitos não têm preocupação nenhuma com urbanismo, acham que é luxo. Agora, a sociedade tem que entrar na discussão. Se for ficar esperando, com essa crise que está aí, as cidades vão se deteriorar cada vez mais a cada dia.

O senhor defende que a casa é o ponto de partida do urbanismo. Por quê?

A casa tem que ser pensada em função da cidade. É ela que constrói a cidade. Não tem cidade sem casa. É preciso ter uma visão do sítio urbano, do entorno, o que significa aquilo historicamente. O mal foi que a arquitetura, principalmente a partir dos megaprojetos europeus, se afastou de forma insensata da antropologia, da sociologia e do urbanismo, e fez um casamento monogâmico com as belas-artes. Cada arquiteto quer fazer sua escultura. Mas você mora na cidade, não numa escultura. O Paulo Mendes da Rocha disse que o arquiteto não deve fazer uma casa que é “a cara do cliente”. Se o cara morre daqui a 50, 60 anos e a casa vai durar 300, a casa tem que ter a cara da cidade. Eu concordo totalmente.

A mulher é o terceiro vértice do livro, junto com a casa e a cidade. Onde a mulher entra nessa equação?

Este é o problema central. A mulher entra na casa convidada a habitar, ela não é construtora. Só muito recentemente as mulheres começaram a construir. As primeiras engenheiras do Brasil, como Carmen Portinho, são do século XX, os projetos de Lina Bo Bardi também. Entre os índios, mulher nunca construiu nada, nem na Antiguidade clássica. No Renascimento não há uma arquiteta. No Barroco brasileiro, não produzimos nenhuma “Aleijadinha”. As mulheres foram escanteadas, levadas a ocupar um lugar construído pelo homem. Dentro desse espaço ela criou a domesticidade, a intimidade doméstica, a ideia de conforto. Essa noção de conforto vem do próprio fato de cuidar do que ela pariu. Em alguns períodos históricos elas não tinham voz ativa sobre nada, como na casa medieval. Cada vez mais elas foram conquistando e definindo esse espaço.

Isso teve consequências até na produção literária, o senhor mostra.

A mulher não tem uma vivência da cidade como o homem tem. A minha hipótese é que a mulher foi confinada no espaço doméstico e isso fez com que ela não vivesse intensamente a cidade. Isso vai se refletir na criação literária. Você atravessa livros e livros de mulheres e nada. A cidade não tem concretude, densidade. E não é algo do Ocidente. Eu falo da japonesa Murasaki Shikibu, do século XI, escreveu um livro de mil e tantas páginas e não tem nada sobre a cidade japonesa. Ela era de Kyoto, capital do império Heian. Safo não fala de Mitilene, que era a cidade mais importante daquela época (século VII a.C.). A cidade marca muito fortemente a produção textual masculina, mas não a feminina. A mulher viaja dentro da casa e dentro dela, principalmente.

De que forma a sociabilidade da mulher na cidade é diferente do homem?

O homem é o rei do espaço público, de onde durante muito tempo as mulheres foram afastadas. No Brasil colonial, as mulheres eram trancafiadas dentro de casa. Gilberto Freyre fala que a casa e a rua eram inimigas. Elas não podiam ver as visitas que chegavam. Quando elas começam a falar e pensar em espaço público, os homens chamam logo atenção para o perigo, não para o prazer. A conquista desse espaço pela mulher é recente.

Qual a chave para entendermos essa permanência?

A chave é toda dominação masculina sobre as mulheres. Mulher nas sociedades indígenas era bem de troca. Nos povos árabes também não apitava nada. A grande mudança para o mundo é o movimento feminista. Isso vai mudar uma coisa de milênios. Esse negócio de igualdade entre homem e mulher é uma invenção moderna. No Brasil, as mulheres começaram a sair de casa no reinado de D. Pedro II. Falo das mulheres ricas porque as pobres não tinham isso. Também há essa grande distinção. As mulheres negras e pobres circulavam nas ruas do Brasil a mil. Se você pegar mais recentemente, é da classe média para cima que a rua era o problema, não para as classes populares. Como não existe uma literatura das classes populares, a não ser mais recentemente, não vemos a vivência feminina.

O senhor dedica três textos a Carmen Portinho, Lina Bo Bardi e Lota de Macedo Soares. Como seus trabalhos nos interpelam hoje?

Todas elas têm uma coisa em comum muito interessante que é criar espaços de convívio. O Parque do Flamengo (de Lota) é um lugar de convívio extraordinário. Claro que a sociedade ficou violenta e as coisas ficaram complicadas, mas são lugares para convívio. O Sesc Pompeia, em São Paulo, uma das criações de Lina, é um grande lugar de convívio. E Carmen se engajou na construção de conjuntos habitacionais populares complexos, que têm escola, academia, espaço de cultura. Era o conjunto habitacional da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. Isso é um show, o Brasil não teve nada igual em arquitetura popular. O projeto do Conjunto do Pedregulho é do marido dela, Afonso (Reidy), mas é ela que constrói. É engraçada essa inversão também. Ela é a engenheira que comanda os peões. Era a preocupação social da vanguarda arquitetônica mundial se refletindo no Brasil. Vargas chamou a vanguarda para fazer as coisas, uma intuição fantástica porque ele mesmo não entendia nada do assunto. Tinha ali uma preocupação de morar bem e de ter uma vida comunitária, tudo muito entrosado na cidade. Não era esse negócio de Minha Casa, Minha Vida (MCMV), que joga longe, sem nenhuma infraestrutura, sem vínculo com a cidade. Estão construindo hoje as favelas de amanhã.

O programa atual mostra que a casa é pensada desvinculada da cidade?

O Minha Casa, Minha Vida é um lixo de projeto. Mal entregam as casas e estão todas cheias de rachaduras, infiltrações, tudo que fui visitar é um absurdo. Você olha o Pedregulho em comparação. Programa social é o que a ditadura de Vargas fez: habitação mínima, popular, digna, decente. Hoje isso se perdeu. Dilma fala em habitação digna. Qual? Ela vai morar ali? E Getúlio soube fazer as coisas, congelou o preço dos alugueis, fez a lei do inquilinato. Ninguém despejava ninguém. Os conjuntos eram propriedade do Estado, eram alugados. Ele viu logo que o problema de morar não podia ser deixado na mão do mercado. No caso do MCMV é escandaloso, as construtoras são donas dos terrenos nas cidades e decidem o que vai ser bairro de luxo e bairro de pobre. Quem faz a política urbana no Brasil hoje são as imobiliárias, não é o governo.

O senhor diz que é preciso buscar uma narrativa comum para as lutas de mulheres, negros, gays. O direito à cidade pode ser essa narrativa?

Tem que ser porque tudo passa por aí: transporte, discriminação, as próprias disparidades de classe que dificultam a realização plena do direito à cidade. É preciso um eixo. É o direito à cidade que vai poder unir tudo. Esses movimentos têm a sua especificidade, mas podem encontrar pontos em comum. Eu me manifesto pela liberação da maconha e pela preservação dos córregos da Vila Madalena em São Paulo. Essas coisas não se excluem. Você quer transporte público de qualidade, tem a luta contra o automóvel, isso interessa desde a favela aos condomínios de luxo. O difícil é encontrar esses elementos comuns numa cidade completamente cindida. Ninguém vive nos mesmos espaços. Numa cidade que exclui, que segrega, como você quer que o indivíduo se identifique com esse corpo cívico? Isso vai ter que ser construído.

Como o senhor vê o avanço conservador vivido hoje no Brasil?

A gente se enganou. Em termos culturais, comportamentais, o Brasil avançou muito menos do que pensávamos e agora nos assustamos com a onda conservadora. O país não avançou como a gente sonhou. Estávamos dançando três compassos à frente da música. E outra coisa: as pessoas não agridem um gay na rua para não serem presas, não porque aceitaram. Direitos têm que ser empurrados goela abaixo em nome da cultura liberal democrática. A gente não pode se enganar e tem que continuar avançando centímetro por centímetro como era na década de 1970. Não pense que as pessoas estão aceitando drogas, homossexualidade, porque o grosso da população não está. Uma cultura não muda nem em uma, nem em duas, nem em três décadas, é preciso um século. Mas eu falo assim do ponto de vista de quem é mais velho. É claro que algum avanço aconteceu. Claro que tem um avanço. Desde que eu me entendo por gente o Brasil já acabou diversas vezes. E continua aí. 
 
por LEONARDO CAZES

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