terça-feira, 27 de outubro de 2015

Os 10 maiores poemas da geração mimeógrafo ou poesia marginal



Pedimos a 20 convidados — escritores, críticos, professores, jornalistas — que escolhessem os poemas mais significativos da Poesia Marginal ou Geração Mimeógrafo, movimento literário brasileiro que ocorreu entre os anos 1970 e 80, em função da censura imposta pela ditadura civil-militar. A principal característica do gênero foi a substituição dos meios tradicionais de circulação das obras — editoras e livrarias — por meios alternativos: pequenas tiragens com cópias mimeografadas comercializadas a baixo custo e vendidas de mão em mão. Cada participante da enquete poderia indicar entre um e dez poemas. Nenhum autor poderia ser citado mais de uma vez. Abaixo, a lista baseada no número de citações. Os poemas selecionados foram publicados nos livros “26 Poetas Hoje”, organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, e “Poesia Jovem Anos 70”, de Carlos Alberto M. Pereira e Heloísa Buarque de Hollanda.

RÁPIDO E RASTEIRO

Chacal


vai ter uma festa

que eu vou dançar

até o sapato pedir pra parar.

aí eu paro, tiro o sapato

e danço o resto da vida


JOGOS FLORAIS

Cacaso


Minha terra tem palmeiras

onde canta o tico-tico.

Enquanto isso o sabiá

vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil

ficou moderno o milagre:

a água já não vira vinho,

vira direto vinagre.


Minha terra tem Palmares

memória cala-te já.

Peço licença poética

Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores

dado o avançado da hora

errata e efeitos do vinho

o poeta sai de fininho.


(será mesmo com dois esses

que se escreve paçarinho?)


COGITO

Torquato neto


eu sou como eu sou

pronome

pessoal intransferível

do homem que iniciei

na medida do impossível

eu sou como eu sou

agora

sem grandes segredos dantes

sem novos secretos dentes

nesta hora


eu sou como eu sou

presente

desferrolhado indecente

feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou

vidente

e vivo tranquilamente

todas as horas do fim.


UMA NOITE

Afonso Henriques Neto


o tio cuspia pardais de cinco em cinco minutos.

esta grama de lágrimas forrando a alma inteira

(conforme se diz da jaula de nervos)

recebe os macios passos de toda a família

na casa evaporada


mais os vazios passos

de ela própria menina.


a avó puxava linhas de cor de dentro dos olhos.

uma gritaria de primos e bruxas escalava o vento

escalpelava a tempestade

pedaços de romã podre

no bolor e charco do tanque.


o pai conduzia a festa

como um barqueiro

puxando peixes mortos


nós

os irmãos

jogávamos no fogo

dentaduras pétalas tranças

fotografias cuspes aniversários

e sempre

uma canção

só cal e ossos

a mãe de nuvem parindo orquídeas no cimento.


RECEITA

Nicolas Behr


Ingredientes:

2 conflitos de gerações

4 esperanças perdidas

3 litros de sangue fervido

5 sonhos eróticos

2 canções dos beatles


Modo de preparar

dissolva os sonhos eróticos

nos dois litros de sangue fervido

e deixe gelar seu coração


leve a mistura ao fogo

adicionando dois conflitos de gerações

às esperanças perdidas


corte tudo em pedacinhos

e repita com as canções dos beatles

o mesmo processo usado com os sonhos

eróticos mas desta vez deixe ferver um

pouco mais e mexa até dissolver


parte do sangue pode ser substituído

por suco de groselha

mas os resultados não serão os mesmos

sirva o poema simples ou com ilusões


TIRA-TEIMA

Bernardo Vilhena


Tire a faca do peito

e o medo dos olhos

Ponha uns óculos escuros

e saia por aí. Dando bandeira


Tire o nó da garganta

que a palavra corre fácil

sem desculpas nem contornos

Direta: do diafragma ao céu da boca


Tire o trinco da porta

liberte a corrente de ar

Deixe os bons ventos levantarem a poeira

levando o cisco ao olho grande


Tire a sorte na esquina

na primeira cigana ou no velho realejo

Leia o horóscopo e olhe o céu

lembre-se das estrelas e da estrada

Tire o corpo da reta

e o cu da seringa

que malandro é você, rapaz

o lado bom da faca é o cabo


Tire a mulher mais bonita

pra dançar e dance

Dance olhando dentro dos olhos

até que ela morra de vergonha


Tire o revólver e atire

a primeira pedra

a última palavra

a praga e a sorte

a peste, ou o vírus?


MUITO OBRIGADO

Francisco Alvim


Ao entrar na sala

cumprimentei-o com três palavras

boa tarde senhor

Sentei-me defronte dele

(como me pediu que fizesse)

Bonita vista

pena que nunca a aviste

Colhendo meu sangue: a agulha

enfiada na ponta do dedo

vai procurar a veia quase no sovaco

Discutir o assunto

fume do meu cigarro

deixa experimentar o seu

(Quanto ganhará este sujeito)

Blazer, roseta, o país voltando-lhe

no hábito do anel profissional

Afinal, meu velho, são trinta anos

hoje como ontem ao meio-dia

Uma cópia deste documento

que lhe confio em amizade

Sua experiência nos pode ser muito útil

não é incômodo algum

volte quando quiser


SONETO

Ana Cristina César


Pergunto aqui se sou louca

Quem quer saberá dizer

Pergunto mais, se sou sã

E ainda mais, se sou eu


Que uso o viés pra amar

E finjo fingir que finjo

Adorar o fingimento

Fingindo que sou fingida


Pergunto aqui meus senhores

quem é a loura donzela

que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém

É um fenômeno mor

Ou é um lapso sutil?


AMOR BASTANTE

Paulo Leminski


quando eu vi você

tive uma ideia brilhante

foi como se eu olhasse

de dentro de um diamante

e meu olho ganhasse

mil faces num só instante


basta um instante

e você tem amor bastante


OLHOS DE RESSACA

Geraldo Carneiro


minha deusa negra quando anoitece

desce as escadas do apartamento

e procura a estátua no centro da praça

onde faz o ponto provisoriamente


eu fico na cama pensando na vida

e quando me canso abro a janela

enxergando o porto e suas luzes foscas

o meu coração se queixa amargamente

penso na morena do andar de baixo

e no meu destino cego, sufocado

nesse edifício sórdido & sombrio

sempre mal e mal vivendo de favores


e a minha deusa corre os esgotos

essa rede obscura sob as cidades

desde que a noite é noite e o mundo é mundo

senhora das águas dos encanamentos


eu escuto o samba mais dolente & negro

e a luz difusa que vem do inferninho

no primeiro andar do prédio condenado

brilha nos meus tristes olhos de ressaca


e a minha deusa, a pantera do catre

consagrada à fome e à fertilidade

bebe o suor de um marinheiro turco

e às vezes os olhos onde a lua


eu recordo os laços na beira da cama

percorrendo o álbum de fotografias

e não me contendo enquanto me visto

chego à janela e grito pra estátua


se não fosse o espelho que me denuncia

e a obrigação de guerras e batalhas

eu me arvoraria a herói como você, meu caro

pra fazer barulho e preservar os cabarés.


Fonte: Revista Bula

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