terça-feira, 10 de novembro de 2015

Mulheres compartilham o que pensam sobre violência, aborto e conservadorismo na política

Integrantes de movimentos feministas escreveram textos exclusivos para O GLOBO


Foram elas que agitaram as ruas, redes sociais e ditaram o tom das últimas semanas. A voz do coletivo era aguda, mas poderosa, como poucas vezes se ouviu na história do país. Os gritos começaram na web, onde emergiram os terríveis relatos de agressões. Usando a hashtag #PrimeiroAssédio, mulheres de todas as idades compartilharam as histórias sobre a primeira vez em que foram assediadas, aos 12, 10, 9 anos de idade… “Ser mulher é sentir medo”, disseram elas em coro. Na semana passada, foi a vez de a Cinelândia e outras praças de diversas capitais serem tomadas pelas vozes femininas, em manifestações contra o projeto de lei 5069/13, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que sugere maior rigor na punição ao aborto e dificulta a realização do procedimento em caso de estupro. “O corpo é nosso, é nossa escolha”, gritaram “as mulheres contra Cunha”, ressaltando que os abortos clandestinos, muitas vezes, são fatais.

O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015, “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, realizado nos últimos dias 24 e 25 de outubro, só engrossou o caldo. Agora, em mais uma etapa da reivindicação por direitos, a iniciativa #AgoraÉQueSãoElas convoca mulheres a tomarem espaços de fala na sociedade, revelando a necessidade de colocar as moças como protagonistas da luta pela igualdade de gênero. Neste especial, elas provocam reflexões sobre legalização do aborto, solidariedade, violência contra a mulher, entre outras questões que cercam a pauta feminista.

“Uma tromba d’água invade as estruturas. Mulheres falando de assédio, estupro e aborto. Falando sobre como ser mulher é perigoso. E debatendo as muitas maneiras de transformar essa realidade”, resume a escritora Antonia Pellegrino, que, ao lado de Manoela Miklos, doutora em Relações Internacionais, é criadora do #AgoraÉQueSãoElas. “Uma onda conservadora trouxe a agenda feminista para o centro das atenções. Aí fomos para a rua. Há inssurgência, há mudanças profundas, há o envolvimento de boa parte da sociedade. Mas, para que este movimento seja de fato revolucionário, deve haver ruptura com o estabelecido, transformação”.
HASHTAG TRANSFORMAÇÃO

por Juliana de Faria (jornalista, fundadora do Think Olga e da campanha Chega de Fiu Fiu)

Uma menina de 12 anos se inscreve no programa de televisão, pois ama cozinhar. Na internet, homens se sentem atraídos por sua aparência e, ignorando sua idade, resolvem tecer comentários de cunho sexual sobre a criança. O fato gera revolta nas redes sociais, mas não é preciso ir longe para encontrar histórias parecidas: basta pedir para que as mulheres olhem para o próprio passado.

Foi aí que nasceu a campanha #primeiroassedio. Convidamos nossas leitoras a contar, pelas redes sociais, a história da primeira violência sexual que sofreram. Não é uma missão simples, indolor, fácil. Mas se apoderar da própria história é importante.

Não se pode lutar contra o que não acreditamos ou negamos ter acontecido. Uma engrenagem funciona para reverter a lógica e manter as vítimas no silêncio. Ela não é operada por um super vilão, mas se manifesta cada vez que somos convencidas de que reclamar é um exagero, que é preciso esquecer, que “o que passou, passou”, e que reclamar disso é “vitimismo”. Quando somos vítimas desde os cinco anos de idade de um comportamento invasivo e desumano, então existe algo muito poderoso em se descobrir vítima.

Demos ali a largada em um movimento catártico e gigantesco de mulheres que, até em 140 caracteres, ajudaram a mostrar que o que aconteceu com a cozinheirinha de 12 anos é a simples realidade das meninas brasileiras. E o quão absurdo é que uma criança tenha que passar por isso. Os depoimentos recebidos até então pela campanha Chega de Fiu Fiu contra o assédio sexual em locais públicos já mostravam que o problema começava cedo, mas não há precedentes na quantidade de histórias recebidas sobre a prevalência desse problema na infância. Recebemos depoimentos de mulheres que lembram ter passado por abusos com até cinco anos de idade.

Em cinco dias de campanha, a hashtag foi compartilhada 82 mil vezes só no Twitter, entre tweets e retweets. Analisamos um grupo de 3.111 histórias compartilhadas no Twitter e chegamos a constatação de que a idade média do primeiro assédio é de 9,7 anos. Nossa jornada contra a violência contra a mulher nos mostrou que, enquanto mulheres, não temos o controle da nossa vida sexual. Somos iniciadas por meio de um ritual bárbaro e sádico. Adentramos, então, nessa área tão delicada da vida de forma totalmente despreparada, cheias de dores, traumas e ansiedades.

Mas também descobrimos que anos de silêncio têm a capacidade de tornar as vozes ensurdecedoras quando redescobertas. Nunca duvide do poder das redes sociais para provocar reflexão e empoderamento. A Internet é feita de pessoas e é a partir delas que as mudanças acontecem. Nesse caso, para o bem e para mostrar um problema que está longe de acabar, mas que felizmente a hashtag ajudou a mostrar que existe, sim, e muito, e que é preciso não ignorar as vítimas, mas responsabilizar quem colabora com a manutenção de sua existência – nem que seja com uma “brincadeira” no Twitter.

Não passarão
por Alessandra Orofino (economista formada pela Universidade de Columbia, co-fundadora do Meu Rio e Diretora Executiva da Rede Nossas Cidades)

Reportar crimes é difícil. O trauma, a dor, o medo da retaliação, o medo da própria polícia — muitas vezes criminosa, outras tantas insensível. Essa é a combinação que faz com que, hoje, apenas 10% dos casos de estupro no Brasil sejam reportados — de um total alarmante estimado pelo Ipea em mais de 500 mil estupros por ano.

O PL 5069/2013, empurrado goela abaixo do Brasil por Eduardo Cunha (e feito exclusivamente por homens), deixa inteiramente desamparadas as vítimas que escolhem, por qualquer uma dessa excelentes razões, não registrar seus casos. Ao proibir o atendimento emergencial, que inclui coquetel anti-Aids e pílula do dia seguinte, antes do exame de corpo de delito, o projeto legaliza a omissão de socorro e criminaliza o profissional de saúde.

Não passará.

Enquanto isso, na Assembleia Legislativa do Rio, a CPI do Aborto traz o cerceamento dos direitos e a minimização da vida das mulheres para terras cariocas. Depois de ouvir 16 pessoas (14 homens, duas mulheres), a CPI publicou relatório que sugere, entre outros absurdos, uma caça às bruxas, com a investigação de todos os abortos praticados no Rio. Além disso, obriga médicos e enfermeiros a notificar a Polícia Militar quando uma mulher for atendida emergencialmente em situação de aborto, espontâneo ou induzido. A mesma polícia que já aborta nossos filhos ainda crianças, como no caso do menino Eduardo, de apenas 10 anos, assassinado com um tiro na cabeça na porta de casa.

Não passará.

De todas as crises que assolam o Brasil — econômica, ambiental, política —, a mais preocupante é a crise ética que abre a porta para a criminalização da solidariedade, a exclusão dos vulneráveis, a deterioração do nosso compromisso coletivo com um país mais justo, mais inclusivo, melhor para todas as brasileiras e todos os brasileiros. Operando nas sombras, acobertados pelos escândalos e pela polarização do debate público, homens nada comprometidos com nosso bem-estar e nosso viver-juntos minam nossos direitos e nos oferecem falsas escolhas.

Não passarão. É pela vida das mulheres, e pela vida de todos nós.

Aborto seguro: um direito das mulheres?
por Nilcéa Freire (Médica e professora da UERJ, foi ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República entre 2004 e 2010).

A discussão sobre o aborto no Brasil e a primazia das mulheres em tomarem a decisão sobre sua realização confronta a sociedade com temas “intocáveis”, como o início da vida humana e a “propriedade” sobre os corpos femininos.

Apesar da legislação restritiva e criminalizante, o aborto clandestino coloca em risco a vida de milhares de mulheres brasileiras, sobretudo nos extratos de renda mais baixos da população, sendo a quarta causa de morte materna no país.

Em 2005, para cada 100 nascidos vivos ocorreram 30 abortos em condições inseguras. Quanto à mortalidade materna, as maiores vítimas são mulheres negras e pobres. Das mortes maternas causadas pelo aborto em 2004, aproximadamente 9% eram brancas e 20% eram negras.

Um estudo de 2009 revela o perfil das mulheres que realizam o aborto no Brasil. São, predominantemente, mulheres entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras e católicas. Os resultados derrubam o estereótipo de que somente mulheres “irresponsáveis” recorrem ao aborto como solução para a gravidez indesejada. O aborto é opção, via de regra difícil, de mulheres e, porque não dizer, de homens, que por diferentes razões vivenciam essa contingência.

Independentemente das condições em que se encontram essas mulheres, a criminalização do aborto as iguala a sonegar o direito à saúde e impor as consequências psíquicas e sociais de uma gravidez indesejada.

O Comitê de Eliminação da Discriminação contra Mulheres das Nações Unidas recomendou ao Brasil que revise sua legislação com vistas à descriminalização do aborto e prossiga no esforço de aumentar o acesso das mulheres à assistência à saúde sexual e reprodutiva, inclusive para casos de complicações decorrentes de abortos não seguros.

O Estado brasileiro deve garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres através da discussão livre e informada. Para isso, é imprescindível superar os paradigmas estigmatizantes do machismo e do sexismo que dificultam a verdadeira promoção da igualdade entre homens e mulheres numa sociedade que garanta a totalidade dos direitos humanos.

O debate sobre o aborto deve ser enfrentado com a consciência de seus impactos na vida das mulheres. A discussão sobre o aborto está em pauta, e à sociedade brasileira, e em especial às mulheres, cabe decidir sobre quais devem ser os próximos passos.

Ponha-se no seu lugar
por Marcia Tiburi (filósofa)

O lugar subalterno e secundário ocupado pelas mulheres é efeito de um mandamento autoritário. É como se toda mulher vivesse sob o jugo de um “ponha-se no seu lugar” desde que nasceu. Experimentamos na pele o autoritarismo neofundamentalista por parte de políticos, intelectual e moralmente desqualificados, que fazem coisas tão ridículas como moções contra Simone de Beauvoir, como a PEC 5069. Inverter o jogo exigindo que os machistas delirantes se ponham em seu lugar, em seu novo lugar — porque nós não vamos ficar no lugar ao qual fomos condenadas — é o que está em questão. Casamento, maternidade, histeria, desigualdade doméstica ou no trabalho, não importa o nome da prisão, as mulheres não vão aceitar o destino. Elas partirão para o desejo. E o desejo é político.

Uma campanha como a #AgoraÉQueSãoElas corre o risco de renovar o destino. Continuar a colocar mulheres no seu lugar sob a cortina de fumaça da generosidade masculina. Contudo, pode-se escapar da armadilha por meio da própria campanha. O sistema patriarcal espera que as mulheres continuem no seu lugar de aprisionamento, obedecendo a um papel de gênero. Sabemos, no entanto, que implodimos o gênero entrando nele: atravessando-o. Assim, atravessemos a campanha por dentro dela.

Contra o confinamento, a ocupação. Ocupar os lugares indevidos, onde somos proibidas de entrar, é nosso lema. Quando entramos nesses lugares, com nosso jeito, nossa cara, nosso contra-discurso, nós que somos mulheres, e feministas, nós perturbamos, ameaçamos, por simplesmente estarmos — e sermos — onde não devíamos.

Feminista é a ação que desorganiza o dispositivo da sexualidade e do gênero que serve aos privilégios do poder masculino, branco, imperial, dono dos meios de comunicação que definem quem fala ou não.

Escapa-se, portanto, da armadilha de uma campanha como esta, intensificando a campanha ao seu limite, até que nenhuma mulher precise ocupar um lugar que lhe seja dado por um homem. Usando, contudo esse lugar comum, para atravessá-lo e implodi-lo. Criar um lugar outro totalmente fora do que era esperado.

Desabafo de uma mãe
por Terezinha Maria de Jesus (dona de casa)

Meu nome é Terezinha Maria de Jesus, tenho 40 anos. Estou aqui hoje para falar como mulher e como mãe. O nome dele é Eduardo de Jesus Ferreira. Ele tinha 10 anos e era muito amoroso. O que ele mais gostava de fazer era jogar videogame, jogar bola e andar de bicicleta. Ele tirava notas boas no colégio. Dizia: “Quando eu crescer, eu quero ser bombeiro pra salvar vidas. Um dia a senhora vai me ver na televisão”.

Sinto falta do meu filho… Ele foi assassinado no dia 2 de abril de 2015 por policiais militares da UPP do Alemão. Aquele dia foi um dos piores da minha vida. Eu já passei por muita coisa ruim, mas não esperava por esta. A polícia diz que ele foi atingido em um confronto entre policiais e criminosos. Mas esta não é a verdade. Reagi como uma onça quando vi meu filho no chão. Fui pra cima do policial e gritei desesperada: “Você matou meu filho, seu desgraçado!”. A resposta: “Assim como eu matei seu filho eu posso muito bem te matar, porque eu matei um filho de bandido”. Ele colocou o fuzil na minha cabeça e respondi: “‘Você pode me matar porque um pedaço de mim você já levou. Pode levar o resto”.

Era semana de Páscoa, Eduardo não tinha aula. A comunidade estava calma. Não havia nenhum confronto ou troca de tiros. Se tivesse, ele nunca sairia na varanda como fez. Estávamos em casa vendo televisão, quando ele disse “Minha irmã tá chegando” e foi pra porta esperar com celular na mão.

A culpa não é minha. A culpa não é do Eduardo. A culpa é de quem atirou. É como se a polícia pudesse desrespeitar as pessoas que moram ali pra prender traficante. Estou aprendendo na pele que a justiça não vale pra preto, pobre e favelado.

Continuo a minha luta por justiça. A Delegacia de Homicídios acabou de dizer que os policiais que mataram meu filho agiram em legítima defesa. Não aceito isso. O governador diz que o Estado já fez tudo o que podia por mim. Isso é mentira. O Estado me deve a resposta pela morte do meu filho, assim como a resposta pela minha casa que foi demolida pela prefeitura há seis anos.

Eu quero dizer às outras mães que passaram e passam pela mesma dor que eu sinto todos os dias: continuem lutando por justiça e não se calem, porque, se não, serão só mais uma na História.

Feminismo interseccional
por Vanessa Rodrigues (jornalista, co-fundadora e diretora executiva da ONG Feminista Casa de Lua. Escreve também no blog Biscate Social Club e colabora para o site Blogueiras Feministas)

Djamilla Ribeiro, feminista negra por quem nutro respeito e admiração, não se cansa de reiterar: “Precisamos de um feminismo que seja interseccional, ou seja, que contemple as mulheres em suas especificidades e reconheça que há aquelas que, por combinarem outras opressões, estão num lugar de maior vulnerabilidade social”. Sim. Precisamos olhar além das opressões sofridas pelas mulheres brancas de classe média, historicamente privilegiadas no movimento feminista.

Como é possível presumir, “feminismo interseccional” se refere à combinação, ou intersecção, das mais diversas opressões: de gênero, raça e classe social. Embora já fosse discutido por muitas ativistas negras, foi nos anos 80, com a advogada americana Kimberlé Crenshaw, que ganhou notoriedade.

Cunhado no fortalecimento do feminismo negro, a interseccionalidade tem sido aplicada por diversos grupos invisibilizados no movimento feminista. Mulheres negras e não-brancas, mulheres trans e todas aquelas que vivem vulnerabilidades específicas refletem essas intersecções. Quando as crianças mais expostas à violência sexual são as negras e pobres; quando somente casos de violência que envolvem mulheres brancas ganham mais visibilidade ou relevância na sociedade; quando mulheres transgêneras não são sequer reconhecidas como mulheres, embora sofram muitas das mesmas opressões de uma mulher cisgênera com o detalhe doloroso da transfobia, tentativa brutal de desumanizá-las mais ainda, isso tudo e mais nos expõem às nuances que precisam ser consideradas no contexto da opressão pelo patriarcado.

Precisamos lutar contra o machismo, racismo, transfobia, capacitismo. Pelas meninas e mulheres indígenas e quilombolas, tão inviabilizadas na mídia mainstream e redes sociais; pelas meninas e mulheres imigrantes, que têm que incluir a xenofobia no caldeirão de preconceitos no qual estão inseridas; pelas meninas e mulheres das nossas periferias, em sua maioria, negras, aliás. Precisamos estar por todas, observando e reconhecendo suas especificidades de dor e de luta.


Do O Globo 

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