Artistas, músicos e psicólogos discutem o papel deles no movimento feminista
RIO - Aos 14 anos, o primeiro assédio. A quebra do silêncio, com o amplificador da rede social, não veio da vítima, mas do então menino que numa brincadeira na piscina se excedeu nos gestos com uma amiga. “Eu já abusei, eu já assediei”, postou no Facebook Fabio Pedroza, de 34 anos, baixista da banda Móveis Coloniais de Acaju. O relato foi sua maneira de aderir ao movimento #primeiroassedio, que inundou a internet com relatos de mulheres sobre a primeira vez em que sofreram assédio ou abuso sexual.
— O que vimos nas redes não é isolado. É uma mudança de comportamento. E é preciso usar esses relatos das mulheres para constranger os homens. A gente tem que sentir medo de pensar em atitudes que causem desconforto às mulheres — defende Pedroza, que lançou com uma amiga um Tumblr de nudes enviadas por homens para mulheres, sem o consentimento delas, para expor os engraçadinhos.
Sintonizado aos depoimentos femininos, um sentimento de mea-culpa masculino desafinou o fiu-fiu e ecoou pelas redes — inspirando o cartaz que está nas mãos dos músicos e artistas fotografados para esta reportagem. Em solidariedade a elas ou por reconhecimento de erros próprios, homens denunciaram o machismo em gestos cotidianos e colocaram em questão o lugar deles no movimento feminista. Para alguns, uma iniciativa vista como armadilha que pode continuar silenciando a voz das mulheres; para outros, a ampliação de uma luta que é de todos.
— Acho importante que os homens sensíveis, atentos e inteligentes andem de braços dados com as novas possibilidades. O nosso papel é ser parceiro. O importante é potencializar essa reflexão, que sempre ficou restrita a um nível intelectual, a determinados nichos da sociedade — afirma o músico Pedro Luís, de 55 anos.
Nos últimos anos, o movimento já vinha ganhando força com o surgimento de uma nova geração que milita na web e defende, acima de tudo, a liberdade para o próprio corpo. A mais recente onda veio na esteira de eventos nacionais: o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi a violência contra a mulher, e milhares protestaram (na rua, inclusive) contra o projeto de lei que dificulta a realização de abortos por vítimas de estupro. O teor pedófilo de tuítes comentando a participação de uma garota de 12 anos no programa “MasterChef Júnior” inspirou o movimento #primeiroassedio, lançado pelo coletivo Think Olga em 21 de outubro, um dia após a estreia do reality show na Band.
— A erotização das meninas está banalizada. Esses caras não têm vergonha de dizer essas coisas em público — diz Juliana de Faria, que criou, em 2013, o Think Olga, famoso pela campanha Chega de Fiu-fiu e em vias de virar ONG. — Quando as meninas têm coragem e comentam, viram piada. Em maio deste ano, contei em uma palestra que fui assediada pela primeira vez aos 11 anos e alguns duvidaram. A menina do programa tem 12, e os comentários maliciosos sobre ela fizeram com que surgissem relatos de primeiro assédio aos 9 anos.
Entre 82 mil tuítes e retuítes, a análise dos dados revelou um número cruel: a média de idade nos relatos de primeiro assédio é 9,7 anos.
— A campanha levou vários homens a fazerem um mea-culpa on-line. Sua amiga, sua namorada e sua mulher têm histórias para contar e você não fazia ideia. Isso é muito poderoso — aponta Juliana.
Pedro Neschling: “Todos nós, homens, temos mais culpa do que gostaríamos de admitir” - Leo Martins / Agência O Globo
Avesso ao recurso do “jogo da velha” em textos na internet, o ator e escritor Pedro Neschling, de 33 anos, rendeu-se pela primeira vez à hashtag com o #primeiroassedio.
— Tudo que li foi aterrorizante. E pior do que as atrocidades relatadas foi a consciência de que esse mal faz parte do cotidiano das mulheres ao longo de toda a vida. É dever de todos nós, homens, abrirmos os olhos e percebermos que temos mais culpa do que gostaríamos de admitir — acredita Pedro. — Chega de silêncio. Chega de achar que pequenos abusos são toleráveis. Chega do machismo das rodinhas. Chega de ridicularizar o movimento feminista.
Os depoimentos acompanhados da hashtag #primeiroassedio não vão sumir no correr das timelines. Durante as últimas semanas, Giovanna Dealtry, professora de Literatura da Uerj, passou a arquivá-los e criou até um e-mail (assedio2015@gmail.com) para receber histórias não postadas em público. A pesquisa vai render um livro eletrônico e gratuito que a Zazie Edições deve publicar até março de 2016. Para ela, a soma dos depoimentos causa impacto:
— Os homens não faziam ideia do tamanho do problema. Agora caiu a ficha que não é a exceção, é a regra. Estava estabelecida a ideia de que “no Brasil é assim, a gente mexe com mulher na rua, é um traço cultural”. Mas a mulher nunca foi consultada sobre esse lado da cultura.
Numa tentativa de reverter ainda no berço a cultura machista, o psicólogo Alexandre Coimbra escreveu uma carta aos seus três filhos, em que propõe a criação da Liga dos Homens que Não Querem Ser Lobos Maus. O texto, publicado no Facebook, cita Gepeto, Homem-Aranha e Harry Potter: “Nenhum deles fez nenhuma mulher se sentir humilhada, chorar uma dor que não é do corpo, mas do coração machucado por ter sido atacada por um lobo.” Tamanha repercussão, a carta vai se tornar um livro infantil ilustrado, tratando de forma leve o abuso sexual.
— O que mais me chocou foi a forma como o assédio é normalizado e como isso tem um efeito tão deletério quanto o abuso — diz Coimbra, que trabalha há 20 anos com violência doméstica.
Tão e tanto que cada vez mais pais buscam “vacinar’’ os filhos (e filhas) contra o machismo. Pai de uma menina de 3 anos, o ator Mouhamed Harfouch, de 38, defende a educação como uma das formas de se combater o assédio:
— O machismo está em xeque. Cada vez esbarro com mais pais como eu, que acordam de madrugada para preparar mamadeira, trocar fralda. Em geral, acredito que o homem esteja mais sensível.
Tico Santa Cruz: “Não quero que meu filho vire um machistinha idiota” - Leo Martins / Agência O Globo
O cantor Tico Santa Cruz, de 38 anos, foca no diálogo aberto com os filhos, um menino de 14 e uma menina de 7.
— Quero educar meu filho de forma que ele não vire um machistinha idiota — diz o músico, que criticou em sua página no Facebook o uso de fakes para zombar da campanha. — A palavra que costumo usar com ele é empatia. Quando você se coloca no lugar do outro, passa a ter respeito. Não existe diferença em questão de gênero. Espero que consiga desmistificar a postura patriarcal introjetada no comportamento do homem.
A escola também tem papel fundamental na construção igualitária, acredita o psicólogo Itamar Gonçalves, gerente da organização Childhood Brasil:
— Em muitos livros de biologia, é sempre o homem que aparece ocupando espaço como se fosse uma segunda voz, oculta e presente no dia a dia. Isso inviabiliza o outro, a mulher.
O cantor e compositor Beto Só, de 42 anos, sentiu na pele o que é ser mulher — literalmente. Com uma longa cabeleira, aos 10 anos ele foi confundido com uma menina e assediado por um homem na rua. Anos depois, já adolescente, foi novamente reconhecido como mulher e criticado por estar acima do peso.
— Fiquei surpreso ao perceber que as duas vezes que eu me lembrava de ter sido confundido com uma mulher tiveram como resultado formas de violência que são sempre denunciadas pelas mulheres: a ameaça sexual e o julgamento pela aparência. Perceber isso foi um choque — afirma. — Talvez, o melhor jeito de os homens apoiarem o movimento é aceitar o papel de aprendizes. Temos de ser alunos das mulheres. Alunos, veja bem, têm direito a voz, reflexão, questionamentos.
A conversa com amigas fez o escritor Antonio Prata, de 38 anos, mudar sua percepção sobre o assunto:
— Machismo é uma questão tão urgente quanto o racismo. Em relação ao racismo, você vê mais pessoas atentas. Mas com machismo ainda estamos muito atrasados. Em propagandas de rádio, quase sempre tem uma mulher estúpida e vem um homem com a solução. Eu achava ridículo. Hoje, acho um problema.
Os depoimentos inflamaram as redes sociais e geraram reações acaloradas. Domingo passado, uma guerra se instalou no Facebook, derrubando algumas fanpages. Primeiro foi a vez da página Orgulho de Ser Hétero, após denúncias contra posts machistas e homofóbicos. Horas depois, cerca de cinco páginas ligadas aos direitos LGBT e das mulheres “caíram” como retaliação. Antes deste circo pegar fogo, Julia Tolezano, a youtuber responsável pelo canal Jout Jout, também alvo da ação, viu seu vídeo “Vamos fazer um escândalo” ultrapassar um milhão de visualizações — muitas graças à ala masculina.
— Foi uma catarse coletiva, todo mundo falando sobre algo que nunca tinha falado para ninguém. Os homens que compartilhavam pediam desculpas por atitudes que antes não viam com má intenção — lembra a youtuber, de 24 anos.
Mouhamed Harfouch: “O machismo está em xeque” - Leo Martins / Agência O Globo
A presença dos homens nas lutas feministas, ainda que seja cada vez maior, está longe de ser consenso — entre elas ou eles. A ONU já encampou, criando em 2014 a campanha mundial #HeforShe (ou #ElesporElas em português). Para Clara Maria Araújo, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero da Uerj, a participação masculina faz parte de uma nova fase do feminismo:
— Não há como negar que não haja tensão. Mas o novo feminismo abre espaço para que as questões sejam discutidas abertamente na web. Além disso, existe um ambiente mais propício: com mulheres no papel de provedora, muitos homens estão vivendo novas experiências.
Na noite de segunda-feira passada, no estúdio do GNT, o cantor Leo Jaime se sentiu embaraçado ao ser apresentado ao cartaz com #meaculpa.
— Eu tenho que pedir desculpas por ser homem? — questionou.
Seu companheiro no programa “Papo de segunda”, o apresentador Marcelo Tas reagiu de forma diferente:
— Para mim é claro que temos uma dívida gigantesca com as mulheres. É hora de reparar.
Calado até aquele momento, o escritor Xico Sá admitiu sua dívida:
— Sempre soube que é errado forçar a barra com as mulheres, mas eu já fui chato, insistente em umas 1.001 noites.
Leo, por sua vez, garante que nunca foi do tipo que “chega chegando”.
— Eu sigo uma regrinha básica: “Não faça com nenhuma mulher o que você não gostaria que fizessem com a sua filha, com a sua mãe, com a sua irmã.” Simples assim — afirma o cantor.
Quarto elemento do “Papo de Segunda” e integrante do Porta dos Fundos, o ator e roteirista João Vicente de Castro diz que não se importa de ser o cara chato da mesa quando se trata de defender o feminismo. Ele assume o papel de “cavalo de Troia” para constranger o discurso machista até na academia, onde faz boxe e encontra “muita gente que é Bolsonaro sem saber”.
— Talvez por ter sido criado por uma mulher, eu nunca entendi o machismo. Minha mãe (a estilista Gilda Midani) me educou assim, sempre foi uma mulher feminista — conta João, que diz se policiar constantemente. — De alguma forma, todo mundo é machista. Nunca fui o cara que diz “mulher minha...”, nunca fui essa pessoa. Mas eu já botei mulher em pedestal, já me recusei a dividir conta. É machismo também.
Integrante do coletivo de mulheres da universidade onde estuda, a diretora de teatro Mary Fatah, de 36 anos, vê o mea-culpa dos homens como um ponto positivo no processo de desconstrução do machismo que existe dentro de cada um.
— O papel do homem é desconstruir seu machismo, bem como levar a discussão aos espaços predominantemente masculinos. Isso sempre foi cobrado, mas agora há chance de eles realmente se provarem pró-feministas e relatarem o #primeiroassedio que praticaram — diz Mary. — Não vale dizer que nunca assediou. Desde a coleguinha da escola com quem você queria namorar, mas ela não, até pressões na namorada para transar. Se algum homem não se lembrar, apenas naturalizou o machismo.
Aposentando o rótulo de cavalheiros, homens abrem passagem para que elas ocupem o lugar de direito. O roteirista Lourenço Parente, de 27 anos, ficou em dúvida se deveria se pronunciar no Facebook. Pelo sim, pelo não, considera um desabafo o texto que publicou no último dia 28 e, até o fechamento desta edição, teve 141 compartilhamentos:
— A intimidade exposta por tantas mulheres que admiro mexeu comigo pra caramba. Mas acho que a luta é delas, que os homens não podem falar por elas.
Patrick Sampaio: “É preciso estar atento para o fato de que é hora de ouvir” - Leo Martins / Agência O Globo
Patrick Sampaio, ator e diretor artístico do núcleo de criação Brecha, foi outro que apoiou o movimento nas redes, mas que defende o lugar em segundo plano para a ala masculina:
— Um dos dilemas é o fato de a voz do homem estar sempre no centro do diálogo, mesmo quando estamos falando sobre o machismo. É preciso estar atento para o fato de que é hora de ouvir. Precisamos abrir espaço para que mais vozes apareçam, dando visibilidade para a fala delas e para aprender com isso.
Por sua vez, Leandro Bravo, consultor de marketing, convocou seus pares a entrarem no movimento #primeiroassedio ao escrever um texto na plataforma Medium sobre a hashtag:
— A campanha mostrou aos homens que o assédio não precisa ser algo tão sério quanto estamos acostumados a pensar. Uma cantada que a pessoa não queira receber, um abraço mais apertado na hora errada... Existe uma cultura machista e precisamos fazer algo a respeito. Elas estão numa briga sozinhas. Os homens também precisam participar.
A mobilização está gerando frutos — e novas hashtags. Mas, como ressalta Antonio Prata, é importante que o movimento não seja só uma “modinha”:
— No Facebook, as coisas se misturam muito, as pessoas ficam de saco cheio de um movimento como se enchem de um seriado. “Ai, que saco, vocês falando disso ainda?” Mas não é um seriado. Por mais que você discorde das hashtags ou dos depoimentos, não tem como ignorar que se trata de algo maior.
Pedro Luís: “O papel do homem é ser parceiro” - Leo Martins / Agência O Globo
POR EMILIANO URBIM, JOANA DALE E THAIS LOBO
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