quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A menina dos olhos de Oyá exuzilhou o racismo religioso na avenida


 
A menina dos olhos de Oyá foi reverenciada na passarela do samba. O enredo da Mangueira popularizou para o grande público o codinome dado à cantora Maria Bethânia por sua Iyalorixá, Menininha do Gantois, imortalizada na canção de Caymmi de 1972, Oração à Mãe Menininha..
Quem não se lembra do dueto de Gal e Bethânia louvando a venerável matriarca: A estrela mais linda, hein / Tá no Gantois / E o sol mais brilhante, hein? / Tá no Gantois / Olorum quem mandou essa filha de Oxum / tomar conta da gente e de tudo cuidar / Ai, minha mãe / Minha mãe Menininha? / Ai, minha mãe / Menininha do Gantois.

Ou da menos conhecida, mas igualmente bela, Réquiem pra Mãe Menininha do Gantois, composta e interpretada por Gilberto Gil, em 1986, quando da partida da Iyalorixá para o Orum. Uma homenagem pujante e clássica, um réquiem para aquela mulher fundamental na expressão da religiosidade brasileira em seus fundamentos africanos. Foi / Minha mãe se foi / Minha mãe se foi / Sem deixar de ser – ora, iêiê, ô / Sem deixar de ser a rainha do trono dourado de Oxum / Sem deixar de ser mãe de cada um / Mãe / Do Orum, do céu / Do orum, do céu / Me ajuda a viver nesse ilê aiê.

Músicas de um tempo, as décadas de 1970 e 1980, em que as religiões de matrizes africanas podiam ser livremente cultuadas, pelo menos no cancioneiro popular e no carnaval. Pois, a perseguição policial aos terreiros se manteve desde os primórdios do período escravista, quando, para realizar as cerimônias, os rituais religiosos africanos precisavam se travestir da liturgia católica. Foram décadas de acossamento visível na invasão e destruição de terreiros, espancamento de freqüentadores e sacerdotes, seqüestro de patrimônio, ainda hoje em mãos da polícia, ocorrido nas primeiras décadas do século XX, também de persecução menos percebida às casas de asé, no período da ditadura civil-militar.

Hoje, com a hegemonia das igrejas caça-níqueis e sua sanha militarizada contra os terreiros de candomblé, materializada no apedrejamento de praticantes, invasão e destruição material dos espaços de culto – veja-se o exemplo do incêndio criminoso no Ilê Asé Oyá Bagan, em Brasília, em 2015, entre dezenas de outros. Disseminam-se também as agressões morais às autoridades religiosas do candomblé, casas de umbanda, centros de cura regidos por princípios de religiões africanas e afro-ameríndias; homicídio de sacerdotes, dolosos ou não; agressões físicas de Norte a Sul do país.

O enredo A menina dos olhos de Oyá embasa a luta contra o racismo religioso. Espraia o ideário do 21 de janeiro, data do falecimento da Iyalorixá Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, de Salvador, em decorrência de agressões sofridas por uma igreja evangélica, em outubro de 1999.

Na ocasião, o jornal Folha Universal estampou na capa uma foto de Mãe Gilda, em trajes cerimoniais para ilustrar uma matéria cujo título era: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A casa da Iyalorixá foi invadida. O marido foi agredido verbal e fisicamente por membros dessa igreja evangélica e sua casa de asé foi depredada. Mãe Gilda não suportou os ataques e enfartou. Faleceu três meses depois, no dia 21 de janeiro de 2000, tornado então Dia nacional de combate à intolerância religiosa.

O desfile de carnaval campeão da Mangueira é um suspiro de liberdade para todas as pessoas que professam um mundo de respeito às crenças de cada ser humano. E no caso brasileiro, à valorização coletiva das culturas africanas, estruturantes deste país.

Mas quem é Oyá, Iansã, representada por sua filha, a cantora Maria Bethânia na Sapucaí? Para conhecê-la, bem como a sua presença nos rituais artísticos da filha dileta, recomendo a leitura da dissertação do antropólogo Marlon Marcos (UFBA), OYÁ-BETHÂNIA: os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. De certo, uma das dezenas de materiais consultados pelo carnavalesco e compositores da verde e rosa para o desenvolvimento do enredo.

Marlon Marcos a define assim: “Dos orixás cultuados no Brasil, um dos mais populares é Oyá, mais conhecida como Iansã. Esta deusa africana começou a ser cultuada primeiramente entre os iorubás. E a sua adoração passou a atingir toda a extensão das diversas etnias do mundo iorubano, fincando-se destacadamente em cidades como Oyo, Kossô, Irá, Ifé, Ketu, regiões que hoje compreendem uma parte da Nigéria e do atual Benin. Oyá é o orixá dos grandes movimentos e das várias formas. Formas estas que representam seu domínio sobre vários elementos da natureza, a sua essência é a liberdade inclinada à constante transformação.”

Bethânia, emocionada ao final do desfile das campeãs, em resposta inteligente a mais uma pergunta tola, rogou para que Iansã nunca nos esqueça, pois sem ela não se anda! É que Iansã é movimento. A mais pura e contraditória expressão do movimento. É a senhora dos ventos, das tempestades, dos raios e trovões. Da mudança. Da transformação. Da impermanência. Por isso, sem ela não se anda.

A cantora, desejosa de homenagear a mãe, D. Canô, fez uma tatuagem de rosa vermelha no braço que empunha o microfone, para que todos vissem. Revelou que a tatuagem é temporária, porque por interdição religiosa não pode tatuar o corpo.

Outra demonstração de fidelidade a preceitos religiosos dada pela Estrela emergiu de uma interpretação do pessoal do dendê. Segundo eles, Bethânia desfilou no chão no dia de comemoração da vitória porque, caso viesse em carro alegórico, ficaria numa posição acima da cabeça de sua Iyalorixá, Mãe Carmem, que a assistia de um camarote. Isso não seria aceitável. Na versão da cantora, apresentada a jornalistas, houve um problema com o carro e ela não teria conseguido chegar a ele.

Cada um escolhe a versão que mais lhe sirva ou encante. Cá comigo, penso que Bethânia está certa em se preservar. A turma do dendê também, ao revelar o que pode fortalecer o costume. Tudo é enredo. Tudo é mistério em transformação.

Eparrey, Oyá! Eparrey!


Por Cidinha da Silva Do Cidinha da Silva

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