domingo, 21 de fevereiro de 2016

Festival de Berlim: Don Cheadle vira diretor de obra-prima com Miles Ahead


Ator fez sua estreia atrás das câmeras no filme sobre Miles Davis

Classificado já de obra-prima em conversas de corredor do 66º Festival de Berlim, onde entrou em exibição hors-concours, Miles Ahead tornou-se um dos filmes de maior mobilização de público e crítica do evento alemão deste ano, consagrando a estreia do ator Don Cheadle, o James Rodhes da franquia Homem de Ferro, como realizador. Ele também estrela a produção. A razão de o filme ter virado um fetiche da Berlinale foi o recorte narrativo (corajoso para um estreante) escolhido pelo astro da série House of Lies para reconstituir a vida do trumpetista Miles Davis (1926-1991), um mito do jazz, a partir de um dos períodos mais controversos de sua carreira: uma fase da década de 1970 na qual ele se exilou dos palcos, compondo, mas sem gravar, sob os efeitos da cocaína. A chegada de um suposto jornalista (Ewan McGregor) mexe com sua inércia.

“Eu queria fazer um filme que se parecesse com Miles Davis e não um filme sobre Miles Davis”, explicou Cheadle em resposta ao Omelete. “Se fosse para narrar a vida dele, passo a passo, seria melhor fazer um documentário. E, fora isso, a história dele está nos livros. Eu tinha que trazer algo mais. Tentei isso, incorporando seu imaginário à dramaturgia: por exemplo, na cena em que ele e a mulher, Frances, caem, durante uma briga, a queda é retratada com efeitos de montagem numa metáfora para a queda criativa dele, para sua queda existencial. Tentei também trazer algo de seu jeito de ser, explosivo, trincado e abusado, para a linguagem. E, mesmo na atuação, eu tinha que ‘estar Miles Davis’ e não ‘ser Miles Davis’. Precisava de distanciamento”.

Um dos produtores do longa, Erin Davis, filho de Miles, confessa sua surpresa ao ver a semelhança que Cheadle alcançou ao reproduzir os trejeitos de seu pai. “Ele conseguiu reproduzir a fala rascante do meu pai e seu gingado no jeito de andar, o que não é fácil de alcançar sem cair numa imitação barata”,elogiava o herdeiro do músico.

Embora embalado por música do começo ao fim, com direito a uma participação do pianista Herbie Hancock tocando com o próprio Cheadle ao trumpete, Miles Ahead tem pinta de filme de gangster dos anos 1970, mostrando os perigos em que o jazzista se envolve depois que uma fita com algumas gravações inéditas é surrupiada de seu apartamento. A confusão começa quando ele recebe a visita do (quase) repórter da revista Rolling Stone Dave Brill (McGregor) pedindo uma entrevista. Na conversa com ele e na luta para reaver seus originais, ele acaba se lembrando de sua relação com a dançarina Frances Taylor com quem foi casado de 1958 a 68. O papel ficou com a atriz Emayatzy Corinealdi, elogiada na Berlinale por seu desempenho e sua beleza. Nessas idas e vindas no tempo, o ator retrata Miles com uma caracterização mais polida e uma postura mais elegante.

“Eu trabalhei quase sete anos no desenvolvimento desta estrutura narrativa que tiramos do papel buscando o risco. Queria que o meu olhar de diretor tivesse o máximo de intensidade, pois, só assim, eu poderia fazer jus à música de Miles. E esse processo só foi possível porque eu tirei o melhor de cada um dos cineastas com quem trabalhei, comoCarl Franklin, Steven Soderbergh, Paul Thomas Anderson, que foi com quem eu mais conversei. Mas, em geral, todos me falaram a mesma coisa: Se joga e boa sorte!’. Mais nada”, brinca o ator, lembrando que chamou McGregor pela necessidade de ter um “astro branco” para ajudar a viabilizar o projeto em sua carreira mundial. “Pois é, isso ainda é uma questão: filmes americanos sobre negros têm dificuldade de circular. Mas eu consegui me ajustar a essa necessidade sem ferir nada do que queria. Esse personagem me ajuda a fazer essa discussão sobre um jeito autêntico de ser. Assim era Miles”.

Nesta manhã, na disputa pelo Urso de Ouro, a Berlinale imergiu em uma experiência cinematográfica radical com uma maratona de oito horas de viagem pelas Filipinas com A Lullaby to the Sorrowful Mystery, de Lav Diaz. Filmado em preto e branco, com uma plasticidade de beleza exótica, justificada por sua abordagem filosófica sobre a identidade de uma nação, o longa abusa de planos longos (de câmera parada) e de uma atuação no limite do teatral para recriar os conflitos coloniais da emancipação filipina do jugo espanhol numa busca pelo corpo do herói de sua libertação. Houve muito entra e sai da projeção, mas a força imagética da produção se impôs, fazendo dele um forte candidato ao prêmio Alfred Bauer, dado a produções que apontem novas linguagens. Os vencedores serão conhecidos no sábado.


Por RODRIGO FONSECA, do Omelete

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