sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Temos realmente 'direito' à privacidade digital?


A decisão da Apple de desafiar a ordem de uma corte federal que determinou que a empresa ajude o FBI a "hackear" o iPhone 5C do suspeito do atentado na Califórnia chama a atenção para uma batalha que se desenha há anos.
Eis como o debate vem sendo apresentado até agora: o que tem mais valor, privacidade ou segurança?

Mas este argumento é excessivamente simplista e também ignora uma questão chave. Para começo de conversa, será que realmente temos o direito à privacidade digital?

Pessoalmente, acho que sim, mas isso não quer dizer que esse direito exista.

O "direito à privacidade" é um conceito essencial na sociedade americana e um princípio-guia em nosso sistema jurídico. Mas, se você procurar por ele na Constituição dos Estados Unidos ou na Declaração dos Direitos, não vai encontrá-lo.

Isso porque os direitos de privacidade não são tão claramente definidos como acredita a maioria dos americanos.

Até mesmo nas áreas mais privilegiadas e privadas de nossas vidas - nossas casas, nossos carros, nosso corpos - não desfrutamos de um nível ilimitado de liberdade em relação a eventuais intrusões do governo. Todos somos suscetíveis a invasões de privacidade por parte do governo quando ela é justificada.

Considere também o quanto de nossas informações pessoais sensíveis não tem garantia nenhuma de privacidade. Ninguém pode garantir privacidade total de nossos registros eleitorais, escrituras, declarações de impostos ou históricos jurídicos, a não ser em circunstâncias excepcionais. Nosso lixo doméstico pode ser revirado, pois está na rua. Até mesmo nossos históricos médicos não são tão privados como muitos querem acreditar.

Nosso direito à privacidade basicamente se sustenta na Quarta Emenda, bem como em precedentes legais, os quais são sujeitos a mudanças com o tempo. Mas a Quarta Emenda tem limitações muito claras sobre como podemos desfrutar dessa privacidade:

O direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres contra busca e apreensão arbitrárias não poderá ser infringido; e nenhum mandado será expedido a não ser mediante indícios de culpabilidade confirmados por juramento ou declaração, e particularmente com a descrição do local da busca e a indicação das pessoas ou coisas a serem apreendidas.

A realidade é que, como americanos, nosso "direito à privacidade" sempre esteve condicionado às necessidades do governo - é um direito à privacidade até que um juiz emita um mandado.

Pense da seguinte maneira: há 15 anos, todos ainda usávamos telefones fixos. Será que esses clientes tinham expectativa de privacidade "total"? Claro que não. A Justiça autorizava grampos quando a polícia oferecia evidências suficientes para justificar a intrusão, e todos sabiam disso.

Portanto, quando a Apple e outras empresas do Vale do Silício afirmam que seus clientes têm direito a uma privacidade total e "à prova de mandados judiciais", elas não estão simplesmente defendendo um direito antigo, que só agora está sendo infringido por um governo intrometido.

Na realidade, elas propõem algo inteiramente novo - um nível maior de privacidade, que nunca existiu antes e que nem sequer era fisicamente possível alguns anos atrás.

A introdução da criptografia avançada em aparelhos eletrônicos pessoais, com mecanismos de proteção que apagam os dados em caso de tentativa de invasão, é uma mudança tecnológica dramática que altera o equilíbrio entre nosso direito à privacidade e a autoridade do governo de fazer buscas.

Isso impõe questões fundamentais ao nosso sistema jurídico, criando rupturas em mais de 200 anos de precedentes legais. Pela primeira vez desde a ratificação da Declaração dos Direitos, os indivíduos têm a possibilidade de bloquear as tentativas do governo de conduzir buscas com base em mandados judiciais.

É um status inteiramente novo para os direitos individuais e, portanto, vai levar tempo para que a Justiça se adeque.

É por isso que o caso da Apple é tão importante.

Em 2015, a Corte Distrital do Distrito Leste da Pensilvânia determinou (no caso da Securities and Exchange Commission, o órgão que regula a bolsa de valores, contra Bonan Huang et al.) que os suspeitos não têm de entregar as senhas de seus aparelhos eletrônicos porque tal ordem viola a 5ª Emenda, que permite que os cidadãos se recusem a se manifestar para não se incriminar.

Mas este direito só nos protege da autoincriminação. Não significa que o governo não tenha a autoridade para tentar acesso aos aparelhos por outras maneiras - tais quais hackear o telefone ou pedir que uma empresa como a Apple o faça.

A decisão da Apple de desafiar a Justiça, se recusando a desbloquear um iPhone criptografado, vai estabelecer um precedente sobre o poder que o governo tem para responsabilizar as empresas por oferecer aos indivíduos as ferramentas que impedem que o governo faça buscas.

O desenrolar desse caso vai determinar se os indivíduos realmente têm direito à privacidade "total", em vez da liberdade condicional de que desfrutamos hoje. Mas, mesmo que o governo perca este caso, não significa o fim da batalha.

O governo tem várias outras ferramentas à sua disposição para minar ferramentas de privacidade como a criptografia. E, se o FBI perder sua batalha legal com a Apple, é provável que ele lance mão dessas ferramentas. O governo pode ser mais agressivo nas tentativas de hackear suspeitos, para driblar a criptografia e outras ferramentas de segurança. Técnicas como infectar os aparelhos de suspeitos e as redes como "spyware", entre outras, provavelmente serão usadas muito mais amplamente no futuro.

Quem apoia o objetivo da privacidade dos usuários aplaude a posição da Apple, mas, do ponto de vista jurídico, não é nada certo que a privacidade à prova de governo vá sobreviver. O direitos dos americanos à privacidade sempre esteve baseada na ideia de que o governo pode violar essa privacidade se for necessário. Teremos de criar novas leis e estabelecer precedentes legais melhores para criar uma estrutura de privacidade que nos proteja a todos.
 
 
Fonte: Brasil Post

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