domingo, 17 de abril de 2016

Cármen Lúcia: “O povo está cansando de brigar”


A ministra do Supremo diz que não vê risco de golpe, mas de raiva e intolerância. E que, neste cenário, cabe aos verdadeiros líderes promover o entendimento

Cármen Lúcia estaria sozinha na casa branca e imaculada no Lago Sul de Brasília, não fossem os processos que estuda, não fosse a fé que a acompanha. Essa juíza mineira de 61 anos não tem empregada, nunca se casou, não tem namorado há alguns anos porque trabalha demais, adora os 18 sobrinhos e os nove sobrinhos-netos. É uma mulher casada com o Direito e com suas causas. Uma delas é a paz institucional no Brasil, carente de líderes que desestimulem rixas e ódio: "Não sei o que pacifica o Brasil hoje. Talvez meu desassossego seja esse", disse, na casa com tábuas corridas de madeira que lembram sua Minas Gerais, sob um pé direito altíssimo e telhas de fazenda. 'Carminha', como as irmãs a chamam, de camisa social de seda e calças largas, mostra orgulhosa as roseiras em flor que ela mesma plantou, sem estudar jardinagem. Na borda da piscina, brilha uma pedra imensa de cristal rosa, de Cristalina, perto de Brasília. Os poucos objetos têm muito a ver com sua história. Fotos da família grande, da mãe com quem se parece muito, do pai que tem hoje 97 anos e a quem é muito apegada. Um quadro pequeno retrata o Rio São Francisco. Vejo Jesus no crucifixo junto à porta, a escultura da santa pintada à mão, um cálice de comunhão, o desenho do rosto de Cristo com a sua coroa de espinhos, a toalha bordada com Nossa Senhora das Graças estendida sobre a cama com uma bíblia. Sua fé explica muitos de seus gestos e votos. Cármen se interessa genuinamente pelos desfavorecidos, defende as mulheres e admira os jovens. Sem maquiagem e sem esmalte, os cabelos prateados e naturais, a juíza assa um tabuleiro de pães de queijo e prepara, ela mesma, um gnocchi al pomodoro, seguido de pudim de leite e goiabada cascão com queijo da serra, ao som de Charles Aznavour e Edith Piaf. Ela completa agora em maio 10 anos de Supremo Tribunal Federal e, a partir de setembro, presidirá o STF e o Conselho Nacional de Justiça. "O brasileiro está muito raivoso, muito intolerante, sem conseguir ver ou ouvir o outro", diz Cármen. "O papel das lideranças é apelar ao entendimento e fazer a travessia que leve ao encontro. Um povo não pode ficar muito tempo flutuando, sem saber para que lado vai".

INQUIETAÇÃO
A ministra Cármen Lúcia. “Não sei o que pacifica o Brasil hoje. Talvez seja esse o meu desassossego” (Foto: Diego Bressani/ Epoca)

ÉPOCA – O Brasil está na iminência de um impeachment legítimo da presidente Dilma Rousseff ou de um golpe branco?
Cármen Lúcia – Enquanto o Congresso Nacional fizer o processo nos termos da Constituição e da lei em vigor, temos um processo legítimo de impeachment. Não há como chamar de ruptura. Qualquer desvio em qualquer processo sem apego rigoroso à lei torna o processo nulo. Só se está usando a palavra “golpe” porque, neste caso, atinge um mandato dado pelo povo à presidente da República. Mas o impeachment é um instituto previsto na Constituição, com normas estabelecidas. Lembre-se que o Supremo determinou à Câmara as regras e o rito a ser seguidos. Não existe nenhum indício de golpe ou ruptura democrática. O importante é que nada, nem a permanência de Dilma nem seu impedimento, aconteça fora da ordem jurídica. E que as pessoas confiem nisso.

ÉPOCA – Em sua opinião, houve ou não crime de responsabilidade de Dilma que seja base legal para o impedimento?
Cármen Lúcia – Não tenho como responder porque não estou com os autos do processo. Só no exame do processo, se um dia chegar ao Supremo, ou se eu ler como cidadã, poderei responder. Mas hoje eu não sei. Precisaria saber o que foram exatamente as pedaladas fiscais, como isso foi julgado pelo Tribunal de Contas e em que correspondem à descrição de um crime. Porque crime é sempre uma conduta descrita em todos os seus termos pela lei. Vou dar um exemplo bem simples: matar alguém. Se não houve a morte, a pessoa pode ter se machucado, mas não haverá o homicídio. Uns alegam que as pedaladas de Dilma foram um empréstimo de banco público sem prazo para pagar, outros alegam que foi antecipação ou repasse de dinheiro sem autorização do Congresso. Por isso, a Constituição muito sabiamente entregou a condução do processo de impedimento, no Senado, ao presidente do Supremo, no caso o ministro Ricardo Lewandowski. 

ÉPOCA – Dilma disse estar sendo atacada por dois chefes do golpe, da farsa e da traição – referindo-se, sem dar nomes, ao vice Michel Temer e ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha. A senhora acha válida essa estratégia de vitimização da presidente?
Cármen Lúcia – Não sei se é válida. Acho comum a qualquer pessoa que sofre um processo, criminal ou cível, e que não se considera culpada, reagir assim. Por exemplo, alguém alega que vai te despejar porque você não pagou o aluguel. Você diz: não paguei porque fiz uma reforma, é uma injustiça me mandar embora com dois filhos pequenos. É legítima essa reação. A diferença de um processo particular para esse processo contra Dilma é que temos 200 milhões de brasileiros que dependem do governo. Acho legítimo que um chefe de Estado queira proteger o mandato popular. Entretanto, recomenda-­se ao governante uma prudência que vai muito além. Esta é uma hora de pedir calma! Estamos num estado democrático de direito duramente conquistado por nossa geração, custou a muita gente, inclusive a nossa presidente, que lutou pela democracia. A sociedade precisa de uma liderança que a faça chegar a um novo patamar de segurança, recuperar a esperança num Brasil que tem tudo para dar certo. E a democracia é a melhor forma de governo. As lideranças devem amainar os ânimos, mesmo que não seja para formar consenso, mas para lidar com o consentimento do povo.

ÉPOCA – A senhora enxergou em algum momento desonestidade da presidente?
Cármen Lúcia – Eu não tenho elementos para supor nenhuma desonestidade na presidente. A presunção é sempre que a pessoa se conduza, na questão da coisa pública, com honestidade ao cuidar do que não é seu, é do outro, da sociedade.

ÉPOCA – Mas existe a constatação de uma gestão desastrosa de Dilma.
Cármen Lúcia – Há sim um problema de gestão e de eficiência na prestação de serviços públicos. Independentemente de pesquisar o crime fiscal, há um outro ponto, o da eficiência, no Artigo 37 da Constituição. Os princípios da administração pública passam pela legalidade, moralidade, publicidade e eficiência na prestação de serviços essenciais. Eu imagino que quem esteja sem poder tomar uma vacina contra uma gripe, numa fila, tendo de cuidar de filhos e pais que também podem estar com problemas, e ele nem pode se dar ao luxo de contrair uma dengue, sabe que o Estado brasileiro está fugindo a seu dever na Saúde. Perde-se assim a confiança. E a democracia vive da confiança que o cidadão tem em suas instituições. Se não acredita nelas, por que ele vai pagar impostos e se submeter às leis, se ele não recebe aquilo que foi garantido pelo sistema jurídico e político?

ÉPOCA – O Supremo a todo momento reafirma que respeitará a decisão do Congresso em relação a Dilma.
Cármen Lúcia – Porque o papel é do Congresso. O Supremo fica em sua atribuição. A política é uma atividade muito difícil. A Câmara dos Deputados tem 513 pessoas com visões diferentes de mundo. Mas a política é imprescindível. Porque é ou a política ou a guerra. Eu respeito a atividade política. Em vez de demonizá-la, é preciso que os jovens, os melhores, das novas gerações, queiram fazer política, não tenham vergonha de fazer política.


ÉPOCA – Mas como engajar a juventude numa política tão desacreditada por escândalos de corrupção?
Cármen Lúcia – Em vez de ficar só preocupado com o que o governo está fazendo, deve-se perguntar: e você? Está fazendo o que para melhorar o país? É preciso chamar a juventude a ser protagonista e construir seu próprio país. Porque nós, com 60 anos, continuamos lutando porque acreditamos. Mas eles têm uma vida para viver com muito mais tempo. Queremos que esses meninos gostem do Brasil, que queiram participar e não deixem que os outros façam o que não deve ser feito. É um papel do educador. Das casas, das escolas, de todo mundo que atua nos jovens. Acho esta uma geração melhor do que a minha. Mais compromisso com a coisa pública, com o meio ambiente, mesmo tendo uma grande parte egoísta. A nossa geração jogava guimba de cigarro na rua sem pensar.

ÉPOCA – Eduardo Cunha na presidência da Câmara deslegitima o processo por ser réu em vários escândalos de corrupção pessoal?
Cármen Lúcia – Formalmente e juridicamente, não. Ele não foi afastado. Por isso pode presidir o processo. Ele não votará no lugar dos deputados. Quem escolhe o presidente da Câmara é a Câmara, quem escolhe o presidente do Supremo é o Supremo. O STF não entra nisso. O princípio é o da separação de Poderes.

ÉPOCA – Caso Dilma seja impedida sob o argumento das pedaladas fiscais, o vice-presidente Michel Temer seria corresponsável em sua opinião?
Cármen Lúcia – Não tenho como dizer. Não existe um crime chamado de “pedalada fiscal”. Crime é uma descrição legal para uma conduta considerada contrária ao Direito, ou seja, uma conduta antijurídica, imputável a alguém. O juiz examina o que aconteceu. No Senado, convertido em órgão julgador, também vai ser examinado o caso.

ÉPOCA – Para o Brasil, a renúncia de Dilma – ou mesmo a renúncia dupla, da presidente e seu vice – poderia ser uma forma de pacificação, já que as pesquisas indicam que nenhum deles satisfaz a maioria da população?
Cármen Lúcia – Não sei o que pacifica o Brasil hoje. Talvez meu desassossego seja esse. O Brasil teve eleições nos termos da lei em 2014. Eventuais falhas nesse processo, como doações ilegais, são julgadas pela Justiça Eleitoral. Renúncia dupla não haverá. Dilma já deixou claro que não renunciará. E Temer quer ser o sucessor. Eu vejo o brasileiro muito raivoso, muito insatisfeito, muito intolerante com tudo que não seja o que ele pensa e que é fruto de uma insatisfação pessoal, que pode vir da condição material, financeira, social e política. Se pudesse descrever o que eu vejo, nos mercados, na farmácia, em todo lugar, é uma enorme insatisfação e uma enorme desavença com o outro. Como se o desentendimento fosse a forma de viver e não o entendimento a única forma de viver.

ÉPOCA – Qual deveria ser o papel dos líderes?
Cármen Lúcia – Eu acho que o papel das lideranças políticas é exatamente chamar ao entendimento, fazer a travessia que leve ao encontro. E não temos uma experiência que nos permita, como está no conto de Guimarães Rosa, “A terceira margem do rio”, ficar flutuando ali no meio durante muito tempo, meio sumido sem saber para que lado eu vou. Um povo não pode ficar muito tempo sem saber para que lado vai. O papel da liderança é fazer um chamamento para um patamar melhor do ponto de vista humano. Faltam líderes que entendam como é imprescindível esse apelo para que as pessoas se aliem e não se mantenham em confronto permanente. Porque isso leva à destruição e não à construção de nada.

ÉPOCA – A senhora teme algum endurecimento rumo a uma ditadura, de direita ou de esquerda?
Cármen Lúcia – Não, não vejo nada disso! Porque o Brasil já passou dessas fases. O Brasil tem uma Constituição que é alterada para ser cumprida. Antes, tinha uma Constituição que era deixada na prateleira. Hoje não, a Constituição está na rua.

ÉPOCA – Uma grande parte da população está convencida de que o impedimento de Dilma seria um golpe branco.
Cármen Lúcia – E existe uma grande parte da população que pensa o contrário, não é isso? É este o clima hoje. E é esta a responsabilidade do líder político, explicar a uma pessoa, por mais fechada que ela esteja, que não há ameaça à democracia. Que a política é emoção e o Direito é razão. E será respeitado, não adianta querer outra coisa. Se for para Dilma permanecer, é porque a lei estabeleceu. Se tiver de haver uma interrupção por algum crime, é porque a lei assim estabeleceu. Assim funciona o sistema, mesmo sabendo que quem perde uma ação nunca fica satisfeito.

ÉPOCA – A que se deve a popularidade de Lula e a impopularidade de Dilma?
Cármen Lúcia – Lula tem uma liderança e uma liderança não se rompe sem mais nem menos. E Dilma é impopular especialmente pela ineficiência dos serviços prestados. Quando o serviço público é prestado e a economia funciona, quem está nos cargos vai bem. A pessoa que está na fila não responsabiliza o ex-presidente Lula porque no período dele ela não estava na fila sofrendo.


ÉPOCA – À luz da lei, a nomeação de Lula para a Casa Civil é legítima ou deveria ser suspensa, por ser uma obstrução da Justiça destinada a dar ao ex-presidente foro privilegiado nas investigações da Lava Jato?
Cármen Lúcia – Sobre isso não posso falar. Vou julgar provavelmente no dia 20 de abril, no plenário do STF.

ÉPOCA – Qual sua opinião sobre o foro privilegiado de parlamentares, presidentes e vice-presidentes para crimes comuns?
Cármen Lúcia – Sou contrária a esse foro especial para qualquer pessoa. E já votei assim. Acho que qualquer um de nós tem de responder em igualdade de condições. Uma característica essencial da República é a igualdade. Temos ótimos juízes, competentes e sérios no Brasil. Não vejo nenhuma razão para que casos de algumas pessoas sejam transferidos para o Supremo.

ÉPOCA – O juiz Sergio Moro, da Lava Jato, teria exagerado ao determinar condução coercitiva de Lula?
Cármen Lúcia – Até hoje, não sei exatamente as razões da conduta. Só pode ser utilizada quando a pessoa se nega a aceitar a convocação. Há de ter havido uma fundamentação, porque senão terá havido exacerbação na conduta do juiz.

ÉPOCA – A Operação Lava Jato pode ser considerada parcial e acusada de visar mais ao PT?
Cármen Lúcia – Não, claro. Nessa operação, tanta gente foi detida, políticos de vários partidos, profissionais de várias áreas. Por que seria então?


ÉPOCA – Existe um espetáculo midiático na Lava Jato?
Cármen Lúcia – No mundo inteiro, os atos do Poder Judiciário e investigações são expostos pela imprensa, televisão e redes sociais. É um fenômeno de nosso tempo. O jornalismo investigativo desde a década de 1970 cumpre esse papel, de estar sempre próximo e atento aos fatos. No Brasil, o sistema é de transparência total. As sessões do Supremo são transmitidas ao vivo. Algumas cortes constitucionais europeias ficam estarrecidas. Já houve juiz de tribunal constitucional europeu que veio visitar o Supremo e não assistiu à sessão porque percebeu que havia câmera de televisão. Todo mundo vê como cada um julga. Já houve quem me ligasse de madrugada, quando presidi a sessão, para perguntar: "Presidente, eu só queria saber: eu ganhei ou perdi?". Porque a gente tem uma linguagem muito embolada, muito chata. Então, isso é um pouco como a voz judiciária do Brasil.

ÉPOCA – Como avaliar a importância da Lava Jato para o futuro do Brasil?
Cármen Lúcia – Só os historiadores do Direito poderão avaliar a real importância da Lava Jato, de ações como a 470 (mensalão), e de ações que vierem ainda por aí. Importante é o rigor nas investigações e o direito à defesa, para ninguém ser presumido criminalmente de nada. Saberemos então de que forma essas operações mudaram o comportamento da sociedade. O princípio da moralidade vem desde a Constituição. Não há democracia sem ética. Eu sempre acho que é a ética ou o caos. E não há justiça sem um sistema democrático.

ÉPOCA – A divulgação dos áudios entre Lula e Dilma foi um erro?
Cármen Lúcia – Também será objeto de deliberação do Supremo. Estou proibida de falar. Está sendo analisado pelo Ministério Público. Se for o caso, será enviado ao STF.

ÉPOCA – Sua declaração, em novembro de 2015, de que "o escárnio venceu o cinismo", se dirigia especialmente a quem ou a qual situação?
Cármen Lúcia – Estávamos julgando um caso (a prisão do ex-líder do governo Dilma no Congresso, senador Delcídio do Amaral, e outros co-réus) no qual autoridades públicas tentavam obstruir a atuação da Justiça. Não é possível que um agente político não tenha noção do que estamos fazendo no Brasil. Não é mais possível ter sensação de impunidade. Só num desassombro absoluto as pessoas podem continuar praticando atos dessa natureza. A Justiça está funcionando. O Ministério Público e a Polícia Federal estão atuando e as pessoas acham que podem passar por cima de tudo? É mais do que o cinismo mesmo.

ÉPOCA – Como a senhora enxerga a delação premiada?
Cármen Lúcia – A delação premiada passou a ser abrigada por nossa legislação e da América Latina, a exemplo de outros países, porque o crime se sofisticou. Esse não é um fenômeno brasileiro. A delação premiada é importante porque permitiu ao Direito fazer frente a organizações criminosas em que o delito ficava encapsulado. Com as delações dos partícipes do crime, é possível conhecer por dentro a atuação e o alcance das organizações.

ÉPOCA – A negociação de cargos no Executivo em troca de votos é moralmente inaceitável?
Cármen Lúcia – Sei que é da cultura brasileira que haja indicações de cargos por partidos. Mas o número dessas indicações é muito grande e resulta em nenhuma eficiência na administração. É muito ruim nomear para cargos públicos pessoas sem habilidades para o desempenho daquele cargo. À parte o nepotismo, que o Supremo já considerou inconstitucional, há a nomeação por ser do partido, o que também não poderia. Dentro de nosso modelo de presidencialismo de coalizão, em que o presidente, o governador e o prefeito dependem do Legislativo, os partidos indicam. Se essa nomeação ocorrer a troco de algum benefício ou favor, aí é desvio de finalidade. Em setores como Educação, por exemplo, é pior. Precisa ser do ramo. Precisa ser um educador que tenha projetos e saiba negociar e defender seus projetos. Como eram Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire, homens de atividade política que honram o Brasil. Nenhuma Pasta ministerial poderia ser incluída em liquidação.

ÉPOCA – O país está parado. Qual seria a solução constitucional melhor para a economia do país e a vida das pessoas?
Cármen Lúcia – A pergunta está bem formulada, mas mal encaminhada. Tem de ser para Deus. Eu sou uma pobre pecadora como todo humano. Não por acaso, este é “o ano da misericórdia”, segundo a Igreja. O ano da consideração cordial, de coração, da tolerância com todos e com os diferentes. Para o papa, a face da misericórdia é a justiça, em sua capacidade de ver e ouvir o outro. O Brasil vive o inverso hoje: a incapacidade de ouvir o outro e aceitar o diferente.

ÉPOCA – Novas eleições presidenciais ajudariam a pacificar o Brasil?
Cármen Lúcia – Não. De jeito nenhum. Seriam um soluço institucional. A normalidade institucional é que mandatos sejam cumpridos até novas eleições. Qualquer interrupção, qualquer tropeço ou percalço é factível de solucionar, sem violar a Constituição. Mas a convocação de novas eleições não pacificaria nada, só aconteceria em situações especialíssimas. Porque as eleições de 2014 já foram acirradas. Imagine eleições num clima de tanta beligerância social, tanta insatisfação. Além disso, não vejo resposta às demandas da sociedade. A segurança pública, a Saúde, o endividamento dos Estados, tudo isso vai ser resolvido? O crescimento da economia será restabelecido? Acredito até que, diante de um novo cenário, os atores econômicos tenham mais confiança para novos investimentos. Mas não tem milagre. Tenho medo das miragens no lugar dos milagres, a ressaca cívica é muito onerosa para um povo. O povo vai ficando cansado de brigar tanto e não conseguir nada. A regularidade institucional é positiva porque dá ao povo essa maturidade. É preciso ter responsabilidade na hora do voto, na hora de assumir as consequências porque tudo isso me parece um processo de aprendizado cívico e amadurecimento democrático. Todo mundo está preocupado com o domingo. Estou preocupada com a segunda-feira. Com o dia seguinte.


ÉPOCA – É irremediável essa polarização que vivemos, seja lá qual for o desfecho do processo de impeachment de Dilma?
Cármen Lúcia – Não acho que o Brasil seja irremediável em nada. Estamos vivendo conflitos e com ameaça de violência, em que somos obrigados, como aqui em Brasília, a erguer um muro separando grupos que pensam diferente. O que me choca, mas entendo ser necessário, se for um acordo com os manifestantes para evitar lesões, ferimentos ou até o que a gente mais teme, mortes. É triste, somos uma geração que comemorou derrubada de muros. Pena que o jogo democrático do momento não permita que as torcidas se fixem em seus lugares sem agressões mútuas. Mas o Brasil sempre encontra remédios para seus problemas. Acredito no Brasil e nos brasileiros. Temos a capacidade de refazer nossas esperanças com facilidade. Eu costumo dizer: “Não me cruzem os braços, nem morta”. Sou dos Gerais, das Minas Gerais, um povo que luta para ser feliz. Mesmo se eu for embora com 104 anos, pode crer que vou muito contrariada. Porque a vida é bela. Curta e bela.

ÉPOCA – A senhora se diz socialista e contra o neoliberalismo?
Cármen Lúcia – Não acredito em política sem o sentido do social, porque estamos no mesmo barco. Se der certo, chegaremos a um ótimo porto. Se der errado, afundaremos todos juntos. Acho que o socialismo veio com uma poética na política: a possibilidade de sonhar e concretizar esses sonhos. Escolhi o Direito Constitucional por ser o Direito dos sonhos possíveis. Transformar nossa ideia de Justiça em normas para viver juntos. Isso não é liberal, no sentido de deixa rolar e deixa fazer. Nossa geração viu que o capitalismo não se socializou e o socialismo não se capitalizou. Os ricos estão mais ricos. E a Previdência está no caos no Brasil. No mundo inteiro, ficou claro que os direitos sociais não podem ser bancados pelo Estado. Precisamos construir modelos novos com os jovens que estão aí.

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