sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Tradição secular


A capital baiana possui, ao menos, quinze terreiros com mais de cem anos. Apesar da intolerância e do preconceito históricos, esses templos religiosos sobrevivem, graças ao trabalho e à dedicação dos seus representantes, que jamais abandonaram a crença e a fé

É final da manhã de uma quarta-feira no terreiro Oxumarê, na Federação. Alguns homens carregam enormes sacos de alimentos e levam para a cozinha, onde mulheres preparam temperos e organizam o que chega. Lá fora - no mesmo salão onde se encontra o acaçá (oferenda) de Omolu - outro grupo inicia a cata do feijão-fradinho, posto em uma grande mesa. Dentro do casarão, o babalorixá realiza mais uma consulta. Três dias antes da festa de comemoração dos 180 anos da instituição, a casa está cheia de pessoas que trabalham para organizar a celebração de aniversário de um dos terreiros mais tradicionais da Bahia.

Além da cerimônia religiosa e de uma festa aberta ao público, as comemorações incluíram o lançamento de um selo comemorativo dos Correios em homenagem à casa. "A história do Oxumarê se confunde com a própria formação do candomblé no Brasil. Foi uma história marcada pela luta e resistência de africanos escravizados, que, obrigados a abandonar suas terras e laços familiares, não renunciaram à sua cultura e fé. Nossa missão é justamente continuar firmes nessa luta para preservar a tradição", diz Silvanilton Encarnação da Mata, o babalorixá Pecê, oitavo das gerações de líderes da instituição.

A luta, iniciada pelos escravos, permanece até os dias de hoje, já que as perseguições, racismo e intolerância contra as comunidades religiosas afro-brasileiras não são casos do passado. A reação de uma mulher, ao ser questionada pela reportagem sobre a localização do terreiro Oxumarê, é um exemplo. Em silêncio, ela fez o sinal da cruz e seguiu com passos apressados como quem foge de algum perigo. Há outros, tão lamentáveis quanto, mas bem mais graves, como os ataques aos representantes da religião e às imagens e objetos sagrados.

Intolerância

De acordo com o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, a cada mês, pelo menos oito pessoas no estado são agredidas, excluídas ou desrespeitadas por conta da religião, credo, culto ou práticas litúrgicas que escolheram seguir. Este ano, a entidade - vinculada à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) - já contabilizou 62 casos de racismo e intolerância envolvendo pessoas de religiões de matriz africana. Desde a implantação do centro, em 2013, foram registrados 247 casos.

"Em pleno século 21, há pessoas ignorantes que ainda associam o candomblé a algo demoníaco e à feitiçaria. Não importa quanto tempo passe, a intolerância só acabará quando extinguirmos o elemento balizador disso tudo, que é o racismo. É ele que sustenta essa ideia equivocada, justamente porque estamos falando de uma religião que tem como base a cultura africana", diz o historiador, escritor e religioso do candomblé Jaime Sodré. "Embora outras, as dores causadas pelo preconceito, permaneçam. O bom é que o axé nos torna mais fortes para lidar com a sociedade racista, machista e sexista em que vivemos", diz a mãe pequena da Casa Oxumarê, a socióloga Sandra Bispo, 63.

Além do Oxumarê, Salvador possui outros 14 terreiros com mais de cem anos, incluindo o Ilê Axé Opô Afonjá, fundado em 1910; o Alaketu, em 1835; e o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca, o mais antigo terreiro de candomblé de Salvador, fundado em 1735. Os dados são do Mapeamento dos Terreiros de Salvador, realizada pelo Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Universidade Federal da Bahia, realizado em parceria com as secretarias municipais da Reparação e da Habitação.

Divulgado em 2008, o levantamento identificou 1.410 templos afrorreligiosos na cidade e realizou o cadastramento de 1.164 terreiros, a maioria da nação Keto (57,8%), seguido da angola (24,2%), jeje (2,1%) e ijexá (1,3%). Uma tarefa difícil, segundo o coordenador da pesquisa, antropólogo e professor da Ufba, Jocélio dos Santos, devido à falta de documentos e certificação dos terreiros mais antigos, sobretudo os fundados antes do século 20.

"Os que vieram depois desse período foram mais fáceis de identificar porque já contavam com documentação. Também encontramos situações em que o terreiro havia sido fundado em uma determinada época, passou um período fechado e, anos mais tarde, foi reaberto. Nesse caso, consideramos o ano de fundação", explica.

Não há, no entanto, nenhum estudo que tenha mapeado o número de terreiros em todo o estado. Um levantamento realizado pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), em 2012, contabilizou 374 terreiros no Recôncavo baiano e 103 no baixo sul. Cinco terreiros com mais de cem anos foram localizados no Recôncavo, mas estima-se que o número seja bem maior. Sabe-se apenas que dos oito terreiros tombados no estado, cinco têm mais de cem anos.

Em Salvador, há quatro deles: Casa Branca, Axé Opô Afonjá, Ilê Iyá Omim Axé Iyamassé (Gantois), Ilê Axé Oxumaré e o terreiro Ilê Maroiá Láji (Alaketo). O quinto, o Zogbodo Male Bogun Seja Unde (Roça do Ventura), está localizado em Cachoeira. As exceções, de acordo com o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na Bahia, Bruno César Tavares, são o Bate-Folha, que completa seu centenário em dezembro; e o Omo Ilê Agboulá, de Itaparica, que possui cerca de 96 anos.

Diante da imprecisão dos dados e das dificuldades de encontrar documentos e registros escritos no passado, são, sobretudo, os candomblecistas mais velhos dos terreiros que, com os seus relatos, ajudam a tecer os pontos que alinhavam essas histórias. Além de ser uma grande aliada na perpetuação dos ritos e preceitos do candomblé, a tradição oral também contribuiu para eternizar os acontecimentos.

Tradição oral

Criada e 'feita' no terreiro Oxumarê, mãe Ana de Ogum, 72, recorda o tempo em que o povo de santo tinha que pedir autorização para cultuar seus orixás. "Éramos obrigados a solicitar uma licença na Delegacia Estadual de Crimes contra os Costumes, Jogos e Diversões Públicas toda vez que realizávamos uma festa no terreiro", conta Ana Maria Santos, ialorixá do terreiro Ilê Axé Oju Onirê, localizado no Parque Jacarandá em, São Paulo, onde reside atualmente.

As batidas policiais e as prisões dos adeptos do candomblé também eram constantes, principalmente entre 1920 e 1930. "Os terreiros sofreram muito com a repressão impetrada pela Igreja Católica e pelos governantes locais por meio da ação policial. Aqui, a Santa Inquisição também fez suas vítimas. A Igreja impôs o catolicismo como religião universal, mas, assim como na África, no Brasil, a formação de instituições com traços da religiosidade africana iam se multiplicando nos cantos da cidade e em outras regiões", explica o antropólogo e pesquisador Renato da Silveira, autor do livro O Candomblé da Barroquinha: Processo de Constituição do Primeiro Terreiro Baiano de Keto.

Segundo ele, essa era a mesma polícia que fazia 'vistas grossas' quando descobria casas de candomblé que realizavam o trabalho de cura, por meio de folhas e ervas. "Em algumas situações, a polícia evitava agir porque sabia que os terreiros prestavam um serviço de saúde pública. E não eram apenas os pobres que se beneficiavam, mas a própria elite da época, incluindo intelectuais e políticos, que costumavam procurar os 'curandeiros'. Essa é uma tradição que, até hoje, se mantém".

O terreiro Bate-Folha, em Mata Escura, foi um dos mais utilizados com esse fim. "É o maior centro de candomblé em extensão territorial do país e o maior em área verde da cidade", afirma Cícero Rodrigues Franco Lima, o Tata Muguanxi, no comando da casa desde 2006.

O terreiro da nação Congo-Angola ocupa uma área de 15,5 hectares. O trabalho com as folhas, cultivadas na mata sagrada, deu nome à casa. A valorização e o cultivo do conhecimento associados à flora por seus membros ainda hoje fazem do lugar, além de centro cultural e espiritual, espaço de preservação ambiental. "As anciãs contam que, quando a polícia baixava aqui, as imagens eram escondidas na mata".

Foi a Lei Estadual 25.095, de 15 de janeiro de 1976, decretada pelo então governador da Bahia, Roberto Santos, o marco regulatório que, de fato, liberou os terreiros de terem que pedir a licença policial para praticar a sua liturgia. É justamente a partir da segunda metade dos anos 1970 que se verifica o crescimento do número de terreiros. "Houve uma expressiva fundação de terreiros de candomblé a partir desse período. Isso nos permite observar o que significou a liberdade religiosa para o povo de santo", diz Jocélio.

Somente no ano do decreto foram criados 46 terreiros, o que representou uma média superior a três a cada mês, quando comparado aos anos anteriores. A partir de então, o número anual esteve acima de dez, e, em 1986, houve o maior número de candomblés fundados na história da religiosidade afro-baiana. Foram 59, uma média de quase cinco a cada mês.

Se do século 18 ao 20 os terreiros foram vítimas da perseguição policial, da imprensa, da Igreja Católica e do poder público, nas últimas décadas, são os grupos neopentencostais que têm exercido mais fortemente esse papel. "Em festas de largo, como a de Iemanjá, por exemplo, tem sido cada vez mais comum vermos grupos evangélicos distribuindo panfletos e ridicularizando os orixás, o que é um desrespeito", diz Jocélio.

Missão

Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá e uma das mulheres mais respeitadas do candomblé no Brasil, mãe Stella de Oxóssi lidera um terreiro de 106 anos, quase a mesma idade que ela tem de vida, 91. "Liderar um terreiro é como administrar uma repartição pública. Tem a parte burocrática, resolvemos os conflitos internos e externos, organizamos as festas, damos orientação aos que precisam. Não é fácil, mas é a nossa missão", diz a religiosa, que vem tentando diminuir as obrigações. "A saúde pede".

Iniciada no candomblé aos 14 anos, ela comanda o Afonjá desde 1976. Mulher à frente do seu tempo, mostrou que os terreiros não são apenas espaços nos quais se pratica a religião, mas de mobilização social. Na área de 39 mil metros quadrados, além de edificações de uso habitacional e religioso, funcionam também a Escola Eugênia Anna dos Santos, o Museu Ilê Ohum Ilailai e a Biblioteca Ikojppo Ilê Iwe Axé Opô Afonjá, espaços de formação, preservação e difusão da história dos africanos no Brasil. Há cinco meses, a ialorixá cedeu uma casa do terreiro para o funcionamento de uma creche, que acolhe crianças de diferentes idades e religiões. "Nós fomos adotados por essa mulher, que tem uma generosidade imensa. Ela é uma revolucionária", diz a coordenadora da instituição, Tereza da Silva, 68.

E apesar do desejo de ter menos atribuições, mãe Stella não para de inovar. Depois de publicar nove livros, de ser a única ialorixá a ocupar uma cadeira da Academia de Letras da Bahia, prepara-se para lançar, em dezembro, o aplicativo Mãe Stella, uma vida em movimento, que terá áudio com mensagens da ialorixá e informações sobre o candomblé e a cultura afro-brasileira. "Tenho esperança de ainda poder ver o candomblé ser respeitado por todos. Acredito nisso". Enquanto não acontece, segue com o seu trabalho, referência para aqueles que estão iniciando o caminho. Aos 91 anos, sabe o segredo para se manter na ativa. "Conhecimento e fé".


Via A Tarde

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