quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Precisamos falar sobre racismo na propaganda. Mas por quê?


Ser um dos últimos países a abolir a escravidão gera consequências até os dias de hoje no Brasil. E engana-se quem pensa que vivemos num país com igualdade racial, já que mais que atitudes discriminatórias, o racismo aqui age também de forma sistêmica e estrutural desde quando os portugueses chegaram. Recentemente falamos sobre o projeto “Dear Publicidade People”, que inicialmente era de Vagner Soares, da Artplan. Agora levamos o papo adiante e abordando a representatividade (ou a falta dela) diretamente com Vagner e Letícia Guedes, que veio acrescentar ao projeto. Confira o bate-bola.

- Como surgiu a ideia para o projeto?

Vagner: Eu brinco que um dia acordei um dia “muito louco na problematização”, mas a grande verdade é que eu converso muito sobre esse tema com amigos e principalmente em casa com minha esposa, Carol, sobre a falta de representatividade na sociedade e na mídia como um todo, não só na publicidade. Inclusive acho que as conversas com ela renderam e rendem tanto material que ela tem uma parcela muito importante nesse material todo. E nessas, a partir dessas conversas me ocorreu de falar primeiro na Artplan sobre o tema.

- Por que falar sobre racismo?

Letícia: Por que NÃO falar sobre racismo? Temos NÃO falado sobre racismo há muito tempo, e isso não fez com que deixassem de existir as diferenças que vemos em todos os ambientes e também na comunicação. Abordar o assunto de maneira didática foi a forma que encontramos de colocar luz em um tema sem ferir, mas expondo algumas verdades que em muitos casos é desconhecida pela maioria das pessoas.

Racismo é um tema que precisa ser discutido em todos os lugares, dentro de agências de publicidade inclusive. Na Artplan existe espaço para falarmos e discutirmos sobre temas que são relevantes e como eu era uma das -por enquanto - poucas pessoas com legitimidade e vivência para sobre racismo falar sobre, achei que era importante levantar esse assunto.

- O que dificulta o desenvolvimento da discussão?

Vagner: O que acaba dificultando são dois fatores: 1 - O próprio racismo, porque quando os pretos não conseguem voz para poder levar o tema adiante, acaba não tendo discussão. 2 - Maturidade, por parte de algumas marcas e agências com visões antiquadas. Tem gente que infelizmente ainda não está aberto a esse tipo de discussão.

- Qual papel da publicidade neste processo?

Vagner: Eu acredito que a publicidade e sociedade são reflexos uma da outra. Então o que nós publicitários reproduzimos acaba impactando em menor escala a sociedade também.

Letícia: A publicidade, assim como as demais áreas da comunicação, é o berço das mensagens que vão impactar milhões de pessoas, se a consciência estiver aqui todo o processo passa a ser mais inclusivo.

- Como a representatividade interfere no coletivo?

Vagner: Autoestima. Autoestima é algo importante para qualquer ser humano. Eu, quando pequeno achava que não poderia ser bem-sucedido, porque não via nenhum preto sendo bem sucedido na TV por exemplo. O único negro que via com frequência, por exemplo, era o Mussum, que só reforçava a ideia que “Se é preto, é preguiçoso”. Na apresentação eu falo que autoestima é um problema para crianças negras, já que elas não se veem representadas e quando isso acontece é de forma estereotipada, mas felizmente está mudando. 

Letícia: É muito difícil você não se ver na mídia e em posições que SIM, você pode alcançar um dia, mas nenhum dos meios pelos quais você é impactada representa isso. Quando criança eu me perguntava “onde estão todos os negros?” eu os vejo na rua, na minha casa, por que nas casas das novelas, desenhos animados e filmes eles mal aparecem? Não somos poucos!

- Quem é branco ajuda como?

Vagner: Não sendo racista já é um bom começo (rs). Mas podem ajudar respeitando o lugar de fala em discussões desse tema e dando espaço, porque quem é negro sente na pele, literalmente. Quando entendem de fato a realidade, se conscientizam e automaticamente impactam as outras pessoas. 

Letícia: Então estar aberto a entender, pra assim pôr em prática os itens anteriores é uma ajuda muito importante.

- Pode comentar sobre algumas ocorrências do racismo na sua vida pessoal? 

Letícia: 2 situações:

- Durante o ensino fundamental sempre que um coleguinha tinha a intenção de me ofender, depois de tentar todas as ofensas possíveis começava a parte do “neguinha sarará”, “cabelo ruim” e todo tipo de associação maldosa com a cor da minha pele. Isso faz uma criança odiar a própria cor, quando você é criança você se pergunta “como eu posso mudar isso?” 

- Há anos tenho entrado em shoppings e visto minha integridade ser colocada em xeque pelos seguranças que seguem em todos os lugares, sempre preparados pra “alguma coisa” ;

E tantas outras como sentar em um banco e uma pessoa mudar a bolsa pra um lugar mais afastado, ouvir “Você é negra MAS é bonita mesmo assim...”

Vagner: Na vida pessoal, acho que o um dos mais marcantes até hoje é um que aconteceu em torno de cinco 5 anos atrás. Minha filha mais velha tem a pele bem mais clara que a minha. Estávamos em um shopping aqui de SP e na época ela tinha três 3 anos. Ela começou a se distanciar coisa de uns cinco 5 metros e eu deixei já que o shopping é um ambiente seguro, estava na minha linha de visão e era um dia quase sem movimento. Ela passou pela frente de um segurança, e alguns segundos depois eu passando pela frente do segurança falei algo como “Espera aí, pequenininha”. O segurança de imediato perguntou porque eu estava falando com aquela criança. “É minha filha!”, e ele respondeu “Mentira, você é preto.” Como se eu não pudesse ser pai dela por ser negro. 

- Como enxerga a militância negra atual? Quais suas dificuldades? Existem facilidades?

Vagner: Hoje existem diversos sites como o Geledés, coletivos como o Coletivo Sistema Negro e pessoas que dão muita relevância a causa, como Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro, Nataly Neri, Tulio Augusto Custódio, Marcio Black e até gente que também é do mercado publicitário. Citar nomes é até injusto porque com certeza esqueci de alguém importante. Então acho que sim a militância está sendo bem representada. Acho que dificuldades existem aos montes até para esses citados, já que existe gente que ainda não está pronta para ter esse tipo de discussão.

Letícia: Acredito que essas pessoas assim como diversos Coletivos, a própria Universidade Zumbi dos Palmares, estão dando voz, informação e espaço pras pessoas Negras, eles são essenciais para a mudança, e extremamente corajosos.

- Tem percebido mudanças na cara da publicidade

Vagner: Poucas, mas sim, está havendo mudança. Mas também é um processo lento inclusive de amadurecimento das marcas e das agências. Fica esquisito quando uma marca levanta uma bandeira de forma vazia, fazendo apenas só por fazer. 

Letícia: Ainda que os negros não tenham aparecido na terra em 2017, é uma novidade pras marcas, né? Representar! Acredito que muitas marcas tem feito um trabalho muito bom, são poucas e está acontecendo à passos bem curtos, mas está rolando uma mudança sim!

- Como as novas gerações lidam com a questão das militâncias? O conhecimento é mais difundido? Como?

Vagner: Acho que a internet facilita muito as coisas, as informações chegam o tempo todo nos nossos feeds, fica muito mais fácil de se unir em torno da mesma causa. 

Letícia: Pessoas muito boas, bem informadas podem ser acessadas hoje em dia isso facilita muito o conhecimento dessa galera, que vem com tudo.

Ter, ou criar consciência dos nossos privilégios sociais e econômicos nos permite ter uma visão mais ampla e condizente da realidade que nos cerca. E quem sabe, se a maioria não negra (já que a maioria do nosso país é sim negra) da nossa sociedade usasse esse espaço para tomar atitudes empáticas e que levam o social e econômico (e suas disparidades e desigualdades) em consideração, com certeza não precisariamos, ainda em 2017, de projetos que mostrem o quanto o assunto é negado e silenciado, e por consequência, necessário de ser debatido no universo da comunicação.


Via Portal Adnews

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