quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A grande tela da crise


Com obras bastante contextuais, a 6ª Bienal VentoSul mostra a face inquieta da arte contemporânea mundial
Rafaela Tasca - de Curitiba (PR) 

Ghana Gold - Da Money, do fotógrafo
nigeriano George Osodi - Fotos: Divulgação/IPAR
Sob o desafiador tema “Além da Crise”, a capital paranaense abriga até o mês de novembro a 6a VentoSul, um importante evento internacional de arte contemporânea que, a partir deste ano, também passa ser chamado de Bienal de Curitiba. Para conduzir a ousada proposta curatorial, os críticos de arte Alfons Hug (Alemanha) e Ticio Escobar (Paraguai) foram convidados a pensar sobre a posição da obra de arte diante de uma cultura definida em grande parte pela crise.  
A apresentação da proposta dos curadores é bastante reveladora: “A palavra ‘crise’ é tomada em seu sentido mais instigador e sugestivo, como momento crucial que, diante de uma mudança brusca de paradigma, exige decisões, posições e imagens novas”. E acrescentam: “não se espera que os artistas que participam desta Bienal ofereçam receitas para enfrentar a crise nem que façam críticas, mas que proponham novos olhares.”

Além da presença de artistas das mais diversas regiões do mundo (são 37 países) e um desenho que optou por descentralizar os espaços de exposição, esta Bienal de Curitiba é marcada pelas chamadas “narrativas fortes”. “Os curadores gerais deram preferência a obras que trabalhassem com o que eles nomearam de ‘narrativas fortes’, ou seja, trabalhos com conteúdo imagético evidente e diretamente relacionado com questões políticas e sociais do capitalismo atual.”, analisa o paranaense Artur Freitas, um dos curadores convidados para esta edição. 
A programação inclui palestras, mesas- redondas, exposições, cursos, oficinas, mostra de filmes, perfomances e interferências urbanas que vêm ocupando os principais espaços culturais e museus da cidade; e também galerias subterrâneas, praças, ruas e parques. 
Projeções inquietas
Ao passar pelas obras de diferentes latitudes do globo, as quais se encontram na “grande tela audiovisual” que se tornou as duas salas do Museu Oscar Niemeyer – principal espaço desta Bienal –, não há como não ser fisgado por algum instante de imagem. São projeções de obras perturbadoras, inquietas, instigantes; por vezes desoladoras, irônicas ou mesmo líricas. 
Como no vídeo Shared Propulsion Car (Carro de Propulsão Compartilhada), com a performance do artista canadense Michel de Broin, em que ele substitui o motor de um carro por quatro mecanismos de pedais criando um meio de transporte de autopropulsão coletiva. Realizado no centro de Nova York, onde de Broin circulou a 15km/h, o trabalho faz uma crítica poética à economia do petróleo e à cultura do automóvel. 
Também ali, nesta grande tela, os efeitos visuais do vietnamita Dinh Q. Lê com clima quase surreal em South China Sea Pishkun, animação em vídeo com a imagem de helicópteros caindo, um após o outro. Em referência aos episódios de 30 de abril de 1975, o vídeo insere as máquinas de guerra em seus últimos momentos, lançadas à morte no mar. 

South China Sea Pishkun , animação em vídeo do vietmanita Dinh Q Lê
Também saltam das paredes dessa exposição as imagens estarrecedoras dos trabalhadores das minas ilegais de ouro de Obuasi, em Gana, apresentadas na obraGhana Gold – Da Money do fotógrafo nigeriano, George Osodi. Além do ritmo da rígida disciplina, um tanto militar, da “chamada” antes da jornada de trabalho em Shangai, captadas em vídeo pelo artista chinês Zhou Tao para a obra 1,2,3,4
Ruínas do presente
Como ruído de fundo, o discurso da crise também parece adensar algumas práticas similares de mapeamento, como as que lançam um olhar aguçado para objetos cotidianos e modos de vida. A exemplo da obra Esto es una pipa (Isto é um cachimbo) do artista colombiano Camilo Restrepo na qual trabalha com uma espécie de recenseamento dos objetos cotidianos da atualidade; no caso, os cachimbos de fumar bazuco (mistura de drogas duras) que ele encontra nas ruas. 
A obra de Restrepo não só dialoga com questões contextuais de seu país, como também transita com primorosa desenvoltura por uma clássica referência da história da arte: a obra A traição das imagens do artista surrealista Renè Magritte. Se Magritte provoca uma crise na representação da imagem ao pintar um cachimbo e sob ele escrever Isto não é um cachimbo; o colombiano Restrepo se apropria deste símbolo e reinsere a questão, afirmando a realidade da imagem e subscrevendo com exatidão arqueológica o local de coleta do material: os bairros marginalizados de seu país. 
Este procedimento aparece em outras obras do artista, como na recente instalaçãoFiguritas en el suelo na qual expõe uma série fotográfica e algumas bolsas plásticas – máquinas inaladoras de drogas – recolhidas no parque da Estação do Prado, centro de Medellín. O título da instalação surge de uma expressão usual dada às imagens que são vistas sob efeito do Boxer – popular marca de cola entre os consumidores da droga. 
Esto es una pipa (Isto é um cachimbo), de Camilo Restrepo
Também Luis Molina-Pantin se ocupa das cidades colombianas. Com um apurado olhar para a arquitetura e o desvelamento de suas camadas de poder, o artista, nascido na Suíça e radicado na Venezuela, apresenta uma série fotográfica com exemplares da chamada “narcoarquitetura”: mansões de traficantes e mafiosos colombianos construídas nos anos de 1980 e 1990, nas cidades de Cali e Bogotá. 
Outro modo de olhar para as camadas de memória urbana é aquele que reverbera na obra da fotógrafa alemã Ricarda Roggan. A artista leva para fotografar em seu estúdio peças do mobiliário utilizadas em repartições públicas da Alemanha Oriental e encontradas em estado de abandono pelas cidades. As composições reencenadas de Roggan revelam a atmosfera insólita de um mundo e um modo de vida que desapareceu após a queda do muro de Berlim. 
Esta espécie de arqueologia do presente ou do passado próximo, ganha um corpo ainda maior no projeto Intervallo do coletivo italiano Alterazioni Video, com a documentação de obras arquitetônicas colossais e inacabadas da região da Sicília, sul da Itália, edificadas entre os anos de 1960 e 1980. Certamente uma crítica à especulação imobiliária do pós-guerra que deixou as marcas de seus modos superlativos e de sua estética do inacabado. São ruínas como a do Stadio del Polo na cidade de Giarre, do orfanato em Enna, ou das casas populares de Adrano. 
Estas obras parecem alinhavar um chão comum. Exigem empregar um certo tempo, uma parada para desmecanizar o olhar e de fato ver os vestígios e ruínas da própria história humana recente, e em curso. 
Intervenções urbanas
A arte desta Bienal pode ser vista até mesmo para o público que não quer se deslocar até um dos espaços da mostra. Uma condição possível em virtude das interferências urbanas que ocorrem em praças, fachadas, becos e galerias subterrâneas. A exemplo do painel de 13 metros do jovem curitibano Rimon Guimarães, feito na fachada lateral de um prédio no Largo da Ordem. 
Se às cores se lança Rimon, à leveza do branco se propõe Fernando Rosenbaum - outro artista radicado em Curitiba. Instalando diversas de suas obras, chamadas de Baiúca(literalmente abrigos) em situações urbanas diversas, Rosenbaum cria espaços de convivência e respiro em meio ao caos individualizante da cidade. Como a que se alocou no hall da Biblioteca Pública do Paraná, suas Baiúcas são delicadas obras feitas em papel de seda que convidam o visitante a entrar e experienciar um outro pensamento urbano.  
Também a passagem subterrânea da galeria Julio Moreira, localizada no centro histórico da cidade, foi o espaço para o site specific (obra feita no próprio lugar) Cómo llegar a las masas, do uruguaio Ricardo Lanzarini. A obra criou polêmica pelo modo que o artista representou as estruturas de poder e foi interditada já na inauguração da Bienal. Desde então, vem sendo discutida sua reabertura ao público. 
Eixo Sul
Com esta polifonia de fatos e expressões artísticas, esta Bienal “Além da Crise” agrega à aguda experiência com a atualidade do mundo, algum desconforto. Em seu estado de pensar no além do estado das coisas, encontra variados questionamentos sobre si própria. Especialmente de qual seria sua vocação em meio à disputa acirrada na cartografia das grandes mostras de arte contemporânea mundo afora. Por certo, a descentralização do circuito de arte nacional é uma de suas contribuições como bem pondera o crítico e historiador Artur Freitas, “Creio que, com o passar do tempo, ela terá condições de, somada à Bienal do Mercosul, estabelecer uma nova rota cultural no sul do Brasil”, reflete. 
Resta saber se esta Bienal conseguirá ao longo dos anos, se firmar como um laboratório instigante, com experiências ligeiramente deslocadas do sistema da arte mais afeito às práticas de valores do mercado. Ou se fará parte do coro dos mesmos.  

Serviço
6ª Vento Sul – Bienal de Curitiba
Quando: Até 20 de novembro de 2011
Local: Diversos espaços da cidade de Curitiba, PR
Mais informações: (041) 3223-8424 
Quem são os curadores
Curadoria Geral: Alfons Hug e Ticio Escobar Co-curadoria: Adriana Almada e Paz Guevara
Curadores convidados: Alberto Saraiva, Artur Freitas, Eliane Polik e Simone Landal Curadoria educativa: Denise Bandeira e Sonia Tramujas
Mais informações sobre os artistas:
CAMILO RESTREPO ZAPATA, Colômbia www.camilorestrepoz.com
ALTERAZIONI VIDEO, Itália www.alterazionivideo.com
MICHEL DE BROIN, Canadá www.micheldebroin.org

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