Escutando Tom Zé chegou de forma inesperada já que eu estava há anos muito envolvido com outros projetos (“A Morte e a Morte de ACM”, “Párvulos”, “Avant Garde na Bahia”), ainda sem conseguir viabilizá-los, e não passava pela minha cabeça rodar um outro filme ainda em 2009 e em janeiro de 2010 estar com o filme já montado, entrando na fase de pós-produção. Ao mesmo tempo, Escutando Tom Zé era um filme em construção desde que conheci pessoalmente, em 1979, essa figura ilustre da música popular brasileira; Nessa época, eu escrevia para O Diário de São Paulo, e fui até a casa de Tom Zé entrevistá-lo. Era um ano difícil profissionalmente pra ele, que lançando o disco “Correio da Estação do Brás” encontrava muita dificuldade para divulgar sua música, ocupar um espaço nos meios de comunicação e no show business. (Isso, antes de David Byrne achar num sebo o LP “Estudando o Samba” e desencadear o redescobrimento desse outro cavalheiro do após calipso tropicalista.) Foi um encontro inesquecível pra mim.
Vinte e três anos depois voltamos a nos encontrar, em 2001, em Salvador, onde ele deu um depoimento marcante para “Samba Riachão”. Verborrágico, como de costume, mas com um jeito mais doce, mais tranquilo, mas nem por isso menos conturbado, que da primeira vez. De uma forma ou de outra, eu sempre saí dos encontros com Tom Zé impressionado com sua verve oratória e com a musicalidade das suas histórias. Tenho uma grande admiração por Tom Zé; acompanho sua carreira desde os anos 60 e tenho todos os seus discos. Anos atrás, li prazerosa-e-atentamente o seu livro (“Tropicalista Lenta Luta”) e tive uma impressão nítida que algumas pérolas ali impressas eram pura cena de cinema. Mas ficava relutando um pouco; “pô, mas tem tanta gente documentando a carreira de Tom Zé!” Parecia não ser o momento adequado para mais um filme sobre Tom Zé. Ele, na última década, lançou muitos discos e relançou remasterizada toda sua discografia, teve sua obra e vida retratadas no cinema em dois longa metragens recentes(“Fabricando Tom Zé” de Décio Matos e “Astronauta Libertado” de Ígor Iglesias – Espanha) além de inúmeras outras participações em filmes, sem falar nos muitos especiais de televisão tanto no Brasil como no exterior (Beyond Ipanema, de Béco Dranoff e Guto Barra). Tom Zé havia se tornado “a bola da vez” de um certo segmento social, cultural, enfim, o queridinho de gente jovem, inquieta, rebelde, algo a ver com comportamento, postura…
Mas, não teve jeito. Quando nos encontramos não deu outra; acabou em filme…
Mas, não teve jeito. Quando nos encontramos não deu outra; acabou em filme…
Eu e Pola Ribeiro, cineasta, atualmente no comando da TVE, a TV pública da Bahia, fomos até São Paulo bater um papo com Tom Zé, que estava com show marcado em Irará, sua terra natal e a emissora iria fazer uma cobertura especial do evento.
Tom Zé nos recebeu carinhosamente, na hora marcada, mas ficou surpreso quando viu o nosso equipamento; pois ele esperava apenas uma equipe da TVE pra gravar uma chamada do show. E logo percebeu que aquele equipamento não era de televisão. Mais; que nós fomos ao seu encontro querendo muito mais que uma simples chamada. Afinal, Tom Zé nunca se apresentara em Irará com banda completa, e tal; a única outra vez que cantou lá foi em 1991, num show de voz e violão. Pois bem, dia 21 de outubro de 2010, às 9.00 horas da manhã, estávamos nas Perdizes (SP), diante desse ilustre iraraense com uma câmera de cinema digital RED 4K e aparelhagem de som multipista levadas por Dica Bastos, outro baiano, que tem uma produtora em Alphaville, São Paulo, e se juntou a nós entrando com a direção de fotografia, equipamento e estrutura técnica de captação e edição do projeto.
Tom Zé, depois de conversamos um pouco sobre o que me motivava a querer um depoimento seu, aderiu generosamente à ideia e entrou no clima do documentário, nos brindando com sua presença avassaladora e extraordinariamente diferenciada e performática.
Saímos de lá entusiasmados com o material gravado e combinado que nós o acompanharíamos na sua estadia em Irará no mês seguinte. E assim foi feito.
Em Irará, continuamos contando com a cumplicidade e o talento desse grande contador de histórias. Ficamos de encontrá-lo no meio da estrada – quando ele já tivesse passado de Amélia Rodrigues – a caminho de Irará. A ideia era chegarmos, de fato, juntos com Tom Zé na nossa van.
Eu havia chegado em Irará na véspera com a minha equipe e já de manhãzinha estava filmando a Charanga que tocaria na recepção que seus conterrâneos haviam preparado. Outra van da produção do show foi buscar Tom Zé e Dona Neusa no aeroporto de Salvador (a banda só chegaria no dia seguinte). Conforme combinado, nos encontramos em Conceição – a 30 kms de Irará; Tom Zé trocou de van e veio com a gente rumo a Irará já gravando. A medida que nos aproximávamos de Irará, Tom Zé ia falando sobre o fato daquela região se situar numa zona de transição (“ali termina a bacia do Recôncavo e adiante é o sertão” como observa Nelson Araújo emPequenos Mundos); ele colocava essas questões por iniciativa própria e falava com um entusiasmo que me impressionava; bastava um mote e ele soltava o verbo. Precisei pedir para que ele ficasse um tempo contemplativo, em silêncio, olhando a paisagem, senão, eu não teria essa cena.
A recepção a Tom Zé foi calorosa por toda a Rua de Baixo até chegar a Praça da Purificação onde lhe aguardava aChegança da Loja, grupo de Marujada, folguedo popular que é um exemplo do intrigante fenômeno de saudade do mar. – “É uma dança dramática que acontece num navio, no mar, que vai procurar onde estão os infiéis para expulsá-los das terras cristãs. Imagine! Aqui não tem nem mar, como é que essa dança veio parar aqui? Veja como as coisas são curiosas! Nem mar, nem rio!” questiona Tom Zé, mas sem deixar de se entregar à dança com seus conterrâneos.
No outro dia, pela manhã, saímos pra fazer algumas tomadas da cidade e nos deparamos com o pessoal da Pisadinha do Pé Firme, autêntico samba de roda do recôncavo baiano. De tardezinha tivemos a primeira execução pública da música “Renato e Ceci” composta por Tom Zé para a Sociedade Litero-musical 25 de Dezembro, de Irará. E no show, Tom Zé cantou outra música inédita, composta especialmente pra aquele momento: Irará ira lá.
Foram quatro dias de intensa magia e muita produção. Em Irará contamos com a ajuda do Roçawood, que se juntou a nossa equipe e fez a assistência de produção. Com uma pequena ajuda dos amigos.
Foram quatro dias de intensa magia e muita produção. Em Irará contamos com a ajuda do Roçawood, que se juntou a nossa equipe e fez a assistência de produção. Com uma pequena ajuda dos amigos.
Dois momentos marcaram e deram o tom do documentário. Um, quando Tom Zé topou recontar suas histórias, sem palavras, de forma gestual, na locação e na hora escolhidas pela produção. Outro, quando, sem que se esperasse, ele me chamou durante o ensaio de palco e disse que era pra filmar, que ele queria falar, mas que daquela vez eu tinha que aparecer em cena também. Fiquei surpreso com isso, bem que pestanejei, mas obedeci prontamente as suas ordens. Os dados estavam lançados e até o nome do filme nasceu daí. Elcio Carriço estava presente e clicou. Dica Bastos não resistiu e me enquadrou. Eu disse pra mim; Let it be!
Quando voltamos pra Salvador, eu, apesar de muito familiarizado com o material bruto – já que à noite, em Irará, Dica Bastos ia pro meu quarto da pousada passar para o meu Macbook os takes em baixa resolução, e eu já ia dando ordem às cenas no final cut pro – ainda supunha precisar de outras externas para complementar o filme. Cheguei até pensar em ficcionar algumas cenas narradas por Tom Zé, mas acabei desistindo dessa idéia. Eu ria à toa de satisfação quando constatava a importância que tinha para esse filme a intensa pesquisa que eu fizera durante anos sobre as década de 50 e 60 na Bahia. Tudo se encaixava como uma luva e eu escapara do desafio da verossimilhança das cenas ficcionais…
E quando eu comecei a montar o filme, de verdade, fui descartando, a cada dia, cada vez mais, o uso das inúmeras ilustrações relacionadas ao período da avant garde baiana; ambiente cultural efervescente com personagens carismáticos (João Augusto e o Teatro dos Novos, Koellreutter, Smetak e Widmer e o Seminário de Música da UFBa, os shows iniciais no Teatro Vila Velha, de Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethania e Gal Costa -”Nós, por exemplo” e “Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova”, embrião do grupo tropicalista -, as intervenções culturais de Glauber Rocha e Orlando Senna e o cinema na província capitaneado pelo saudoso Walter da Silveira, o programa de auditório “Escada para o Sucesso”, da Tv Itapuã , o incêndio do Teatro Castro Alves, a estátua de Antonio Conselheiro de Mário Cravo… ) Num filme desse eu podia contar com muitos tantos outros depoimentos enriquecedores, tantas participações ilustres… Mas, não! A cada dia que a montagem crescia, tomava forma, eu ia ficando mais radical em relação ao conceito e linguagem do filme.
Escutando Tom Zé fala do processo criativo e da influência de Irará na música de Tom Zé. A sua verve oratória transborda e escorre pelo ralo. A lente apenas “escuta” e a montagem preserva, intactas, essas revelações. Eu optei pelo uso de longos planos que se encaixam entre si, criando histórias paralelas, num fôlego desafiador e de narrativa performática. As falas, ao mesmo tempo em que parecem datadas soam atemporais, por que subjetivas, filosóficas e reflexivas. É como se Tom Zé, aos 73 anos, no auge da carreira, depois de tantas releituras, fosse minimalista ao extremo, apurado, delicado e incisivo nas suas revelações/testamento. Escutando Tom Zé é um filme incomum, tanto no formato de produção quanto na proposta de montagem e talvez encontre certa dificuldade de aceitação e compreensão devido justamente a sua simplicidade, apesar do apuro tecnológico de captação de imagem e som. Sei da importância que se dá no documentário às imagens de arquivo e aos depoimentos de personalidades; afinal, estamos construindo a imagem de um país sem memória.
Só sei que é esse risco que me move e me incita a fazer cinema. Dois outros documentários me influenciaram e me ajudaram a encarar o desafio de Escutando Tom Zé; “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá”, de Sylvio Tendler, que assisti ainda numa versão rascunho no Cinema do Museu, na programação da Jornada da Bahia. Ali, nos foi apresentada uma versão que continha unicamente os depoimentos do geólogo, diferente da versão apresentada depois do Festival de Brasília. E “Fragmentos de conversas com Godard”, de Alain Fleisher, que vi no TCA durante o Semcine. Fiquei chapado com esses dois filmes. E fiquei muito a fim de tentar novos caminhos. Mesmo sabendo das dificuldades e riscos de ir atrás do novo, de novo…
Eu quis muito desnudar uma personalidade como a de Tom Zé e mostrá-la dessa forma crua, sem me utilizar dos muito milagrosos recursos de montagem. O som do show fica muito a desejar. E isso é um pecado num filme musical. Só que Escutando Tom Zé não é um filme musical. Eu fui pela contra mão e apostei todas as minhas fichas numa espécie de monólogo audiovisual, numa ode à oratória ou um ensaio/performance sobre a fala coloquial, o desempenho vociferado da voz de um homem. Como reagirão as pessoas? Como reagirá Tom Zé ao se ver tão exposto na tela grande?
Mesmo que a sua fala, às vezes, não seja tão inteligível para muitos, acredito que será absorvida por outras formas de compreensão. O filme não procura explicar Tom Zé, mas simplesmente escutá-lo.
alguns trechos do filme:
- No princípio, eu tentava cegar o ouvinte. A estratégia da música era um acordo tácito. Porque quando Zé Vermelho cantava. Zé Vermelho tinha uma voz espetacular, não era com Dante de Guga, que tinha uma voz mais delicada, Zé Vermelho tinha era… ÊEE… tinha uma voz que quebrava taça. Quando ele cantava, eu achava aquilo exagerado, mas aí eu olhava pras pessoas como tio Elísio, que era prefeito, Zé Valverde, amigos mais idosos, eles levavam em consideração aquela metamorfose que o cara fazia para cantar. Mas eu era incapaz de ter essa fibra. (cantando)
“amor, amor, amor, amor, nasceu de mim”
Eu não tinha coragem de fazer uma coisa dessa. E então, eu inventei o acordo tácito que era; cegar o cara com um personagem. Por que as músícas falavam de coisas muito distantes… Aí, para cegar o ouvinte, (ele não perceber que eu era um péssimo cantor), eu cantava uma coisa que ele conhecia. O prefeito de Irará prometeu calçar a praça da rua direita à rua grande e não calçou. Seo Zé, que era o prefeito, que era de Pedrão, (cantando)
“Seo Zé, cadê, o calçamento que o sr. não fez?” ou então; (cantando)
“Guilherme se requebra, Rufino bota pó.”
A pessoa vendo um personagem que ele conhecia, imediatamente ele ficava obilubilado por essa… Música era sempre um assunto distante, que não tinha nada a ver com Irará… Uma música que tinha Irará logo na tampa, a pessoa não observava que eu era péssimo cantor, péssimo compositor, e se distraia com o assunto da vida em si. Ora, a vida em si passou a ser de tal modo, sofisticadamente, objeto da minha atenção que acabou sendo um gênero de música. E eu acabei conquistando a própria Europa e Estados Unidos com esse tipo de preocupação.
- Orlando Senna me mandou um recado pra eu encontrar com ele na ladeira do Cinema Pax, onde estava se filmando Beijo no Asfalto, de Alex Viani. E então eu fui, eu, um caipira, um tabaréu como se fala na Bahia, fui pra lá todo acanhado num set de filmagem. Era uma coisa de Hollywood! (risos) Ai o Orlando Senna, que era assistente de direção, veio falar comigo que eu precisava conhecer o Gil, precisava conhecer Caetano (Veloso). E ele praticamente montou o grupo tropicalista. É engraçado isso! E realmente ele falava isso também com Gil e com Caetano. E um belo dia nós começamos a nos encontrar… E veja bem, Caetano e Gil me aceitaram pra ficar junto deles porque eu era muito diferente deles; me aceitaram pela diferença. Não éramos parecidos. Eu nunca fui um artista fino e sofisticado como eles sempre foram. Que podiam fazer bossa nova como eles faziam. Eu fazia aquela coisa bárbara! Que muita gente dizia; – O que é que você está fazendo junto deles?” Como quem diz; você não é digno de estar junto de artistas tão…Quando fizemos o “Nós Por Exemplo”, “Velha Bossa Nova, Nova Bossa Velha”.
- O incêndio do Teatro Castro Alves foi uma coisa impressionante! Eu morava ali com Nemésio Sales, ali na Gamboa; quando eu saí de manhã pra ir pra Escola de Música, eu vi uma fumaça atrás do Teatro. Aquele objeto novo lá, tiraram os taipames da véspera e tal, tinha uma fumaça no fundo do teatro. Eu perguntei; – “Tá tocando fogo.?” – “Tá, tá tocando fogo!” E tocou fogo, acabou com tudo! Um maquinário de bilhões e bilhões de cruzeiros que nunca mais foi substituido… Pouco tempo depois o Mário Cravo botou aquele Antonio Conselheiro com aquela cara xingando a mãe de todo o mundo… E tinha aquela igreja, Igreja do Sião. E ele como estava com uma mão assim do lado da igreja, e uma mão assim pro lado do teatro, o povo dizia que ele dizia assim; -Ïgreja uma banana eu vou é pro teatro! (risos)
Curiosamente, em frente dele estava o monumento aos heróis de Canudos. O Conselheiro. E logo alí o Quarto Exército, o Forte de São Pedro com o Monumento aos Heróis de Canudos, aos generais que venceram o Conselheiro e os brasileiros… estavam alí na Praça 2 de Julho, o Caboclo, o Corneteiro, os Encourados de Pedrão…
(cantando)
“Na Bahia de Nosso Senhor,
uma vez se construiu
um teatrão de imperador
que teve o nome do poeta.
Mas por ser coisa de impedador
e pra que isso se provasse
era preciso que o teatro
numa noite encendiasse.
E foi assim que o poeta um dia
sentiu o gênio borbulhar de novo.
Mas dessa vez não foi motivo de alegria,
pois era o teatro que então pegava fogo.
Mas o nosso imperador
mesmo abrindo as cortinas
nunca tirou versos
da eterna oficina.”
- Sempre citando Castro Alves… E quem me inspirou pra isso foi um chargista do Jornal da Bahia, francês, me esqueço o nome dele, todo mundo sabe (Lauzier) que fez uma charge com o governador Antonio Balbino, porque se dizia que as contas da construção do teatro nunca seriam aprovadas pelo Tribunal de Contas. Que aquele incêndio foi proposital. Ele então botou o Antonio Balbino no Palácio da Aclamação, que também é alí perto, vestido de Nero, vestido de Imperador Romano, escrevendo versos enquanto o Teatro tocava fogo. Aquela história de que Nero mandou tocar fogo em Roma pra fazer uma poesiazinha. (risos)
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