RIO - Dia 29 de agosto, aniversário de 70 anos do cantor, compositor e instrumentista Edu Lobo. Para celebrar, Edu fez um show no Teatro Municipal, onde recebeu no palco convidados como Chico Buarque e Maria Bethânia. Na última música, antes do bis, fez uma homenagem a Vinicius de Moraes com uma versão emocionada de “Canto triste”.
Foi um dos momentos mais marcantes do espetáculo. Era de se esperar que tão refinada plateia — que tirou joias da gaveta, vestiu terno e pagou R$ 160 para estar ali — estivesse entretida, concentrada. Mas, como diria o próprio convidado Chico Buarque, “qual o quê”. Só na primeira fileira, onde 16 pessoas ocupavam os assentos centrais, nove empunharam seus celulares para registrar Edu. Os feixes de luz dos aparelhos enfileirados podiam ser notados de todos os outros 2.345 lugares do teatro. Que também viram a cena através de uma telinha de smartphone, tantos eram os aparelhos em riste.
— Fiquei impressionada, principalmente por ser no Teatro Municipal. Está acontecendo em todo tipo de show. As pessoas estão mudando a relação delas com a arte. Não há mais uma entrega à emoção do espetáculo, a preocupação maior é em “deixar o rastro” nas redes sociais — observa a diretora Gabriela Gastal, que dirigia o DVD do show que Edu Lobo fazia naquela noite.
Qualquer pessoa que tenha assistido a um espetáculo nos últimos tempos deve ter percebido: está cada vez mais difícil não ter a experiência prejudicada por usuários de smartphones. Obcecados em registrar tudo o que veem para guardar ou compartilhar em redes sociais, eles não se furtam em empunhar nem seus tablets, muito maiores do que os telefones convencionais, em meio à plateia.
É um problema mundial. No último show que fez no Circo Voador, em fevereiro deste ano, o músico americano Mayer Hawthorne pediu encarecidamente que a plateia carioca desligasse os telefones e prestasse atenção à apresentação. Em abril, em Nova York, a banda americana Yeah Yeah Yeahs colou um cartaz na entrada de uma sala de concertos: “Por favor não assista ao show através da tela do seu smartphone. Larguem esta m..., como um gesto de cortesia com a pessoa que está atrás e conosco. Muito amor e muito obrigado.” Mês passado, a cantora americana Fiona Apple deu um piti em Tóquio e chamou a plateia de “mal-educada”, pela mesma razão. Os organizadores do festival de música Unsound, que acontecerá entre os dias 13 e 20 de outubro em Cracóvia, na Polônia, optaram por uma decisão radical: proibiram o público de registrar os shows. Diz a justificativa oficial : “As pessoas estão cada vez mais interessadas em exteriorizar a experiência, não em interiorizá-la.”
— As fotos e vídeos ficam ruins, a luz da câmera incomoda quem está em volta, o flash perturba o artista no palco. Além disso, as pessoas vão apagar as imagens na primeira oportunidade, ao perceber que a memória do telefone está cheia. Muitas nem olham as fotos depois. E ainda atrapalha quem está fazendo os registros profissionalmente — defende o fotógrafo carioca Rafael Lopes, de 27 anos, especializado em espetáculos.
Colecão de histórias de excessos
De tão incomodado com os exageros da plateia, ele gravou um vídeo para o seu blog listando seus argumentos. Com o imperativo título “não fotografe shows com seu celular”, o post de 18 de agosto repercutiu na internet. A maioria dos comentários concordava com o ponto de vista do autor, e acrescentava novas histórias de excessos à coleção de Rafael. Como uma que ocorreu no mês passado, durante o show da cantora Mariene de Castro, na Miranda.
— A Beth Carvalho estava na plateia, de cadeira de rodas, ainda se recuperando do período que passou internada. Para que ela desse uma canja, a Mariene desceu do palco e foi até ela. Pronto: todo mundo voou com seus celulares para cima da Beth, um desrespeito completo. Não consegui fazer uma foto oficial daquele momento — lamenta Rafael.
A documentarista Clara Cavour, de 30 anos, especializada em registros mais intimistas de músicos para clipes e vídeos — ela dirigiu o DVD “O micróbio do samba”, de Adriana Calcanhotto — frequenta muitos shows na cidade por razões de trabalho. Ela tem observado que as pessoas não se contentam apenas em fotografar, mas passam o tempo todo com o braço estendido, filmando, num esforço físico admirável.
— No primeiro show da volta Baby do Brasil, eu estava filmando o palco quando entrou uma fã na minha frente com duas câmeras. Até fiz uma foto daquela situação inacreditável: uma câmera virada para o show, outra virada para ela mesma. Com as duas mãos, ela fazia o plano e o contraplano. Fico pensando o que ela deve ter feito com as imagens simultâneas... — espanta-se Clara, que cedeu a foto para ilustrar esta reportagem.
Guitarrista da banda Cidadão Instigado, além das bandas de Otto, Karina Buhr e Arnaldo Antunes, o que o coloca na estrada pelo Brasil diante de plateias diversas, Fernando Catatau se incomoda com a mania dos fãs — mas não se vê, no palco, pedindo para ninguém parar:
— Não dá para fugir do futuro. Muitas pessoas vivem em função desses aparelhos multifuncionais e os amam, e os que não entendem ficam perdidos. Eu acho chato. O que se vê e se escuta em um show é algo que o olhar e a memória captam melhor que qualquer câmera. Seria melhor se as pessoas largassem suas câmeras? Talvez... Mas dizer que sou contra eu não posso.
É um debate complexo: se, por um lado, os registros excessivos da plateia incomodam, por outro, há toda uma discussão acerca da importância de criação dessa memória. Muitos artistas só contam com as imagens feitas pelos fãs. E muitos fãs só veem seus shows preferidos porque alguém filmou e disponibilizou nas redes sociais.
— É importante ter um registro dos shows, mesmo que de forma amadora — defende o blogueiro Otaner, do La Cumbuca, blog musical que desde 2007 divulga, registra e resenha apresentações no Rio. — Há shows que aconteceram em 2000, 2001, por exemplo, que eu assisti e não acho nenhuma informação na internet. É importante não atrapalhar o público, procuramos ser discretos. Já gravamos (Otaner conta com a ajuda do amigo Fabio Fernandes) os shows inteiros do Mulheres Negras, Marcelo Jeneci, Gambito Budapeste, Do Amor e Jards Macalé, que só têm o registro que fizemos.
É com trechos dessas imagens amadoras que muitos artistas costuram seus vídeos, clipes, e até DVDs inteiros. A banda Capital Inicial foi a primeira no Brasil, em 2008, a usar imagens de celulares de fãs para um videoclipe. Em seu mais recente DVD, o cantor e compositor Moska aproveita registros do público. Criolo vai usar, no próximo clipe a ser lançado este ano. Gabi Amarantos também estimula a prática. A diretora de seus vídeos e shows, Priscilla Brasil, é uma entusiasta:
— Quando alguém puxa o celular para filmar o show é porque algo o moveu. Vejo como um ato de amor com o artista. Quando você vê as pessoas empunhando várias câmeras ao mesmo tempo, é porque aquele momento está funcionando pra algo. É engraçado pensar que elas simplesmente não estão prestando atenção como deveriam. Eu acho exatamente o contrário.
No último dia 28 de agosto, no Espaço Cultural Sergio Porto, no Humaitá, o cantor e compositor Domenico Lancelotti também brincou com a plateia, assim que entrou no palco, sugerindo que todos filmassem e pusessem no YouTube.
— Acho que algumas imagens e ângulos gerados são bacanas, nos dão outro ponto de vista do espetáculo. Só acho complicado fazer isso em apresentações intimistas. Conheço músicos que já evitam apresentar versões inéditas em shows com medo daquilo virar um registro malfeito na internet no dia seguinte, sem qualidade técnica — observa Domenico, que percebe mais esse afã na plateia carioca.
Não foi difícil provar a tese do músico: numa ronda em espetáculos de estilos distintos que ocorreram na cidade nas últimas semanas, a euforia eletrônica era generalizada. No show da Velha Guarda da Portela, no Circo Voador, um fã puxou um tablet. Nos da banda Suicidal Tendencies e da cantora Clarice Falcão, na mesma lona, punks e adolescentes fofas se comportaram da mesma maneira. No show da banda francesa Nouvelle Vague, no Imperator, idem. No musical infantil “Galinha Pintadinha”, no Oi Casagrande, pais entediados lançavam mão dos seus gadgets. Nem no jogo de futebol Fluminense x Bahia, domingo passado, no Maracanã, a plateia se furtou a registrar cada lance.
— É um problema que se agravou com a popularização dos smartphones. A gente não pode frear a tecnologia, mas ela também traz novas demandas de comportamento — analisa a soprano e educadora musical Clarice Martins, criadora do Curso de Formação de Plateias oferecido por centros culturais de todo país. —Em concertos e óperas, que exigem completo silêncio, o problema é ainda mais grave, porque, além do barulho, os flashes desconcentram os músicos. No final do século XIX, Richard Wagner foi o primeiro a escurecer a plateia para que toda a atenção do espetáculo ficasse sobre o palco. O que está acontecendo hoje é o contrário.
Fonte: oglobo.globo.com
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