quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Chimamanda Ngozi Adichie: ‘É impossível falar sobre racismo sem causar desconforto’

A escritora nigeriana Chimamanda 
Ngozi Adichie - Divulgação
Escritora nigeriana cria trama de amor e preconceito que percorre três continentes no premiado romance ‘Americanah’

POR GUILHERME FREITAS

O título do terceiro romance de Chimamanda Ngozi Adichie, “Americanah” (Companhia das Letras, tradução de Julia Romeu), é uma expressão usada na Nigéria para se referir a quem volta dos Estados Unidos deslumbrado e passa a desdenhar de tudo em sua terra natal. Mas a protagonista do livro, Ifemelu, não se encaixa nessa descrição. Uma jovem nigeriana de classe média que estuda em Princeton, ela consegue dupla cidadania mas nunca se sente integrada ao novo país, onde passa 13 anos. O “h” na palavra do título marca a diferença e o estranhamento vividos pela imigrante que não chega a se tornar americana.

Experiência compartilhada pelos principais personagens de “Americanah”, sobretudo Ifemelu e Obinze, namorados de faculdade na Nigéria que se separam quando ela decide emigrar. Nos Estados Unidos, Ifemelu se confronta pela primeira vez com o racismo e precisa aprender a manejar os complexos códigos sociais do país. Enquanto isso, Obinze, filho de uma respeitada professora universitária, arrisca-se em Londres como imigrante ilegal e, deportado, faz de tudo para reconstruir a vida em Lagos, a megalópole nigeriana. Partindo da decisão de Ifemelu de voltar para Lagos, o romance narra idas e vindas do casal por três continentes e mais de uma década.

Em 2013, “Americanah” recebeu o National Book Critics Circle Award, concedido pela associação de críticos dos Estados Unidos. Foi o primeiro grande prêmio internacional para a escritora de 36 anos, que já havia recebido boas críticas pelos romances “Hibisco roxo” (2003) e “Meio sol amarelo” (2006), ambos lançados no Brasil pela Companhia das Letras. Enquanto os livros anteriores eram ambientados na Nigéria, “Americanah” é fruto das reflexões de Chimamanda sobre o trânsito cultural: ela nasceu em Enugu, no sudeste nigeriano, foi estudar nos Estados Unidos aos 19 anos e hoje vive entre Lagos e Baltimore.

BLOG SOBRE RACISMO NOS EUA

A maior descoberta de Ifemelu nos Estados Unidos é o racismo. Nascida no país com a maior população negra do mundo, ela compreende aos poucos os “tribalismos de raça, ideologia e religião” dos americanos, escreve Chimamanda. Ifemelu despeja suas inquietações e protestos num blog batizado como “Raceteenth ou Observações diversas sobre negros americanos (antigamente conhecidos como crioulos) feitas por uma negra não americana”. Num dos posts, resume assim suas impressões: “Querido Negro Não Americano, quando você escolhe vir para os Estados Unidos, vira negro. Pare de argumentar. Pare de dizer que é jamaicano ou ganense. A América não liga. E daí se você não era negro no seu país? Está nos Estados Unidos agora”.

— Os nigerianos não se preocupam com a questão da raça. Na Nigéria, muitos leitores me dizem que não entendem o debate sobre esse tema nos Estados Unidos. Quando as pessoas me abordam em Lagos, o que querem saber é se Ifemelu e Obinze vão ficar juntos — diz Chimamanda, em entrevista por telefone, de Baltimore. — Mesmo na África existem percepções diferentes sobre isso, claro. É impossível ser da África do Sul e não ter consciência de raça. Mas na Nigéria e na África Ocidental, simplesmente não é um tema tão presente. Temos muitos problemas, mas esse não é um deles. Então, quando cheguei aos Estados Unidos, eu não pensava em mim mesma em termos de uma “identidade negra”. Aos poucos fui entendendo as dificuldades vividas aqui pelos negros.

Os textos ácidos do blog de Ifemelu expõem vários ângulos desse problema, do preconceito enfrentado por mulheres negras que se recusam a alisar o cabelo à hipocrisia no debate público sobre desigualdade racial: “Nos Estados Unidos o racismo existe, mas os racistas desapareceram”, ela escreve. Em outro post, alerta os leitores: “Se estiver falando com uma pessoa que não for negra de alguma coisa racista que aconteceu com você, tome cuidado para não ser amargo. Não reclame. Diga que perdoou. (...) Nem se incomode em falar de alguma coisa racista que aconteceu com você para um conservador branco. Porque esse conservador vai dizer que VOCÊ é o verdadeiro racista e sua boca vai ficar ainda mais aberta”.

OBAMA: ESPERANÇA E DECEPÇÃO

O racismo também atravessa a trajetória de outros personagens. Dike, primo de Ifemelu que nasce na Nigéria e se muda ainda criança com a mãe para os Estados Unidos, é visto como um alien na escola: “Eu me sinto como se tivesse legumes no lugar das orelhas, imensos brócolis saindo da cabeça”, diz. Em Londres, Obinze entra no circuito clandestino de trabalhos degradantes, casamentos arranjados e documentos falsos, ao lado de outros africanos, asiáticos e sul-americanos. Um dia, lê nos jornais que um ministro britânico quer que imigrantes falem inglês em casa: “Esses artigos eram escritos e lidos, de forma simples e histérica, como se seus autores vivessem num mundo onde o presente não tinha ligação com o passado e nunca tivessem considerado que esse era o curso normal da história: a chegada em massa à Inglaterra de negros vindos de países criados pelo Reino Unido”, escreve Chimamanda.

Outro político retratado em “Americanah” é Barack Obama. A primeira eleição dele, em 2008, tem lugar de destaque na narrativa. A princípio descrente, Ifemelu se encanta por Obama ao ler seu livro de memórias, “A origem dos meus sonhos”. Ela e os amigos se engajam na campanha, mas se decepcionam com suas evasivas sobre racismo. Ainda assim, a descrição da vitória de Obama capta a sensação de esperança daquele momento: “Meu presidente é negro como eu”, diz Dike a Ifemelu.

— Eu não esperava que a eleição de Obama fosse acabar com o racismo nos Estados Unidos, nem mesmo melhorar a relação entre as raças. Em certo sentido, o problema até ficou mais escancarado. Muita gente rejeita o governo de Obama não por discordar de suas políticas, mas por ele ser negro — diz Chimamanda.

Ela não se inclui entre os eleitores de Obama que se desapontaram com seu governo. Mas critica a postura do presidente nos debates sobre racismo no país, como o que acontece desde o assassinato do jovem negro Michael Brown por um policial em Ferguson, Missouri, em agosto.

— Eu gostaria que Obama falasse sobre racismo sem apenas tentar fazer com que as pessoas se sintam bem consigo mesmas. É impossível tocar nesse tema a sério sem causar desconforto.

NOVA PERSPECTIVA SOBRE LITERATURA AFRICANA

Chimamanda diz ter se surpreendido com a boa acolhida de “Americanah” nos Estados Unidos, mesmo discutindo o racismo no país e ridicularizando o “multiculturalismo” das elites liberais: uma personagem branca é descrita como alguém que pensa que “cultura é uma propriedade estranha e pitoresca de pessoas pitorescas, uma palavra sempre acompanhada do adjetivo rica. Ela jamais acharia que a Noruega tinha uma cultura rica”. Na Nigéria, o livro fez barulho pela ironia com os migrantes que retornam: algumas das cenas mais cômicas se passam no Clube dos Nigerpolitas, cujos frequentadores passam o tempo reclamando da falta de restaurantes vegetarianos e cafés refinados em Lagos.

— No fundo, é uma brincadeira com meus amigos e comigo mesma. Eu amo Lagos. Não é uma cidade bela, no sentido mais óbvio da palavra, nem quer ser. Mas é uma cidade com uma energia única — diz Chimamanda, que acaba de criar o blog “As pequenas redenções de Lagos”, no qual escreve sobre a vida na cidade, assinando como a personagem Ifemelu.

Chimamanda faz parte de uma geração de jovens escritores que transitam entre África, Europa e Estados Unidos, assim como o também nigeriano Teju Cole, o etíope Dinaw Mengetsu e o serra-leonês Ismael Beah, entre outros. Em seus livros, artigos e entrevistas, ela faz alusões à tradição literária do continente, citando com frequência escritores de seu país como Chinua Achebe e Esiaba Irobi, célebres na África mas ainda não tão conhecidos no resto do mundo.

— Muita gente pensa na literatura como um remédio: “Tome isso, é ruim mas vai te fazer bem”. Isso é bobagem. A literatura feita na África precisa ser mais conhecida não porque vai “fazer bem” aos leitores, e sim porque é boa. A maior parte dos livros sobre a África que os leitores do resto do mundo conhecem foi escrita por autores de fora da África. É preciso mudar essa perspectiva.

Fonte: O Globo

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