Antropólogo procura pavimentar o espaço vazio entre os rebeldes do sem-preservativo e os ‘carimbadores’ que passam de propósito a aids
Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
Clube do carimbo acendeu todas as luzes da saúde públicaREUTERS/Chaiwat Subprasom
O blog, sintomaticamente, está fora do ar. Chamava-se NovinhoBareback e ensinava estratégias para transmitir o vírus da aids sem o consentimento do outro. Era, imagina-se, o embrião do “clube do carimbo”, que nessa semana veio à luz com uma reportagem do Estado e a pronta manifestação da Polícia Civil de São Paulo, disposta a abrir inquérito para investigar esses grupos de homossexuais que transmitem o HIV propositalmente.
Jovens seriam o principal alvo do clube, daí o “novinho”. E a ausência de camisinha seria o must, daí o bareback, que em inglês significa montar em pelo, cavalgar sem sela nem estribos. A prática do bareback ou barebacking, explica o antropólogo americano Richard Parker, nasceu nos anos 1990, na esteira dos tratamentos que, aos poucos, davam à aids feição menos devastadora. “Antes disso, o sexo seguro tinha uma dimensão de solidariedade, de cuidar de si e dos pares”, diz o antropólogo. “Com o tempo, alguns passaram a entender o preservativo como uma ditadura.”
Da rebeldia ao “clube do carimbo” vai um chão que Parker busca pavimentar na entrevista abaixo, feita de Nova York, onde ele dá aulas até abril na Universidade Colúmbia. A partir de maio e até dezembro seu endereço anual é o Rio. Ali leciona como professor visitante no Instituto de Medicina Social da Uerj e exerce in loco a presidência da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), fundada, entre outros, por Betinho. No site da Associação, no ar e em voga, há destaque para o barebacking. A Abia enfatiza ser a favor do preservativo, mas lamenta a criminalização da prática, que pode acarretar até 4 anos de prisão a quem transmitir o vírus intencionalmente. Parker, autor de Abaixo do Equador e estudioso do pecado da discriminação, complementa: “Julgar sem compreender cria uma cortina de fumaça e, pior, gera o risco do pânico moral”.
Você tem enfatizado que barebacking e “clube do carimbo” são coisas distintas. Qual a diferença entre eles?
Barebacking é mais amplo. Não implica necessariamente a intenção de infectar outra pessoa nem a intenção de se infectar. É o não uso da camisinha na prática do sexo anal. Vale a pena recuperar a história disso para contextualizar a questão e chegar até o “clube do carimbo”. Quando a aids surgiu, há 35 anos, as pessoas não tinham certeza do que causava a doença, mas já dava para saber que se tratava de algum agente transmissível. Então muito cedo, na epidemia, foi inventado o sexo seguro, que não se resumia ao uso do preservativo. Dizia-se para evitar o sexo anal, tentava-se erotizar outras partes do corpo, trabalhar a sexualidade de uma maneira ampla, porque, justamente no momento em que o movimento gay estava mais mobilizado, os homossexuais eram a população mais afetada pela epidemia. As pessoas queriam achar maneiras de continuar uma vida sexual prazerosa, satisfatória, valorizando o gozo, mas de uma maneira positiva, apesar da doença devastadora. O sexo seguro, portanto, não era uma coisa de especialistas em saúde pública nem cientistas. Como dizia Simon Watney, crítico de arte e ativista inglês, o sexo seguro era uma prática comunitária. Tinha a lógica de cuidar de si mesmo e dos pares. Isso acabou se perdendo ao longo do tempo.
Por que se perdeu?
À medida que o sexo seguro e a educação sobre o HIV foram apropriados pelos especialistas e autoridades, valorizou-se a autoproteção, e não a proteção dos parceiros. Eu me lembro, no final dos anos 1980, de uma conversa que tive com um diretor do programa de aids de São Francisco. Ele disse que “90% da mudança de comportamento dentro da comunidade gay para reduzir o risco de HIV ocorreu antes que se gastasse 1 dólar com prevenção”. Depois que os governos entraram na história as coisas não andaram tão bem, para ser honesto.
O surgimento de tratamentos contribuiu para essa mentalidade mais individualista?
Sim, sem dúvida. Na primeira década não havia nada. Na segunda a ciência avançou, a ponto de a aids se transformar cada vez mais numa doença crônica administrável. Deixou de ser tão drástica, tão sem esperança, era possível ter uma melhor qualidade de vida, independentemente da infecção com o HIV. A partir de então começou a haver um questionamento, especialmente nos grupos de maior risco como os gays, sobre o sexo seguro. Lá para o final dos anos 1990, alguns jovens passaram a ver o uso do preservativo como uma ditadura. Foi nessa época que surgiu o barebacking, primeiro nas comunidades gays dos EUA e da Europa, logo depois na comunidade gay brasileira. Como muitas pessoas, talvez a maioria, não gostavam - nem gostam - de usar camisinha, começaram a questionar se ela era necessária nesse novo momento da história.
Então não é uma questão de falta de conhecimento dos riscos.
Há várias pesquisas sobre barebacking, uma delas com 22 razões distintas para o uso da prática. A primeira: alguns homens não têm mais medo do HIV. Entendem que, se tomam certos medicamentos todos os dias, o vírus não será um problema tão grande. Obviamente muitas pessoas que têm aids dirão não ser tão tranquilo assim... Outra razão: esses homens querem viver o hoje, não querem pensar no futuro. Mais uma: a baixa autoestima. Pela maneira como a sociedade trata os gays, acham desimportante se proteger. Já alguns homens acreditam que nunca vão ser infectados pelo vírus. E por aí vai.
Existe barebacking seguro?
100% seguro não, mas surgiram estratégias para não correr tanto risco. A que tem recebido mais atenção é a segurança negociada. O acordo é o casal transar sem camisinha, mas usar o preservativo caso um ou outro tenha relação com uma terceira pessoa. Há também o serosorting, que é escolher em cima da sorologia do parceiro. Uma pessoa soropositiva só vai transar com outra soropositiva, o mesmo entre soronegativos. É muito importante reconhecer que nem todo mundo consegue usar o preservativo, casais heterossexuais inclusive. Aliás, algumas pesquisas sobre segurança negociada foram primeiro elaboradas com casais hétero. Dependendo da tolerância ao risco, todos buscam estratégicas. A ciência tem procurado outras opções, para ter não apenas uma arma contra a epidemia, mas sim uma caixa de ferramentas maior.
O que tem parecido mais eficaz?
Algumas dessas tecnologias, como a vacina anti-HIV e principalmente o microbicida, ainda são esperanças. Mas já é bastante usada a profilaxia pré e pós-exposição. O pós é relativamente comum no Brasil, o pré é arma central do governo americano, especialmente com os homossexuais. Falo em especial do Truvada, o mais comum, que foi criado para tratar pessoas infectadas, mas as não infectadas fizeram uso antes da relação sexual e ele bloqueou a entrada do vírus. Ainda está em fase de testes no Brasil por razões que não entendo completamente, talvez por ser muito caro, talvez por ser uma pílula que precisa ser tomada todos os dias. A adesão para uma pílula regular é difícil, assim como a adesão à camisinha. Por isso já pesquisam um pré injetável. A pessoa tomaria uma injeção de seis em seis meses. Enfim, precisamos evoluir, em vez de repetir o mantra “use camisinha, use camisinha, use camisinha” e embarcar numa teoria de avestruz, negando as dificuldades das pessoas com o preservativo. A realidade é mais complexa.
Consegue explicar o que leva uma pessoa a infectar a outra propositalmente, como no ‘clube do carimbo’?
Isso também é muito complexo. É a antítese daquela sensação dos anos 1980, da solidariedade, de proteger os parceiros. Para todos nós que valorizamos o cuidado com os outros, parece algo extremamente agressivo e difícil de compreender. Não sei explicar as motivações, acho que temos de pesquisar. Agora, criminalizar essas pessoas não vai ter um efeito positivo. Primeiro porque você pode ter tanto uma pessoa infectada que transe e não passe o vírus, como uma outra infectada que transe e transmita o HIV. Não tem como detectar o ato exato. Se insistir em fazer dessas pessoas criminosos, colocá-las na cadeia, o resultado disso é afastá-las, o que inviabiliza uma intervenção para mudar esse comportamento.
Que intervenção seria essa?
Tem que dialogar, tem que entender. Sem isso, não há chance de mudar nada. É a mesma lógica do começo da epidemia, quando a saúde pública queria fechar as saunas. Fizeram isso em Nova York, o que gerou uma crítica muito grande, na minha opinião, com razão. Os opositores diziam “não vamos fechar as saunas porque as pessoas vão procurar outro lugar para fazer o que querem fazer”. É melhor usar isso como oportunidade de intervir. No Rio dos anos 1990, trabalhamos com os donos de sauna para colocar camisinhas em todas as salas, para fazer disso um espaço onde distribuir informação, e deu certo. Seja com o clube do carimbo ou não, se fechamos a possibilidade de usar aquilo como oportunidade de entender, compreender e conscientizar, condenamos a coisa a se esconder mais e mudar para uma situação inalcançável.
Pressente uma nova epidemia da doença?
Não há dúvida de que uma nova epidemia está acontecendo já. No Brasil, ao longo especialmente dos últimos cinco anos, há um crescimento muito grande do número de casos na comunidade homossexual, acima de tudo entre os jovens gays e jovens trans. No nível governamental, destaco a censura de diversas campanhas e iniciativas. Quer chamar alguma coisa de criminosa? Certamente é a bancada religiosa conservadora pressionando o governo a acabar com projetos como aquele contra a homofobia nas escolas ou censurando a campanha de carnaval dirigida aos jovens gays. Mas nós da sociedade civil também baixamos a guarda. Quase não se fala mais da sexualidade, que está sendo marginalizada. A prevenção é cada vez mais uma higienização. Nos anos 1980 e 90, a prevenção da aids nos obrigava a falar diretamente sobre a importância da troca de fluidos corporais, por exemplo, que tem uma importância muito grande para as pessoas. É com o gozo que você reproduz, é com o gozo que você se conecta com a outra pessoa. Qualquer um de nós que tenha usado ou esteja usando preservativo sabe que isso não é uma coisa simples, meramente mecânica. Tem dimensões práticas, sim, mas também dimensões simbólicas e emocionais profundas.
A joalheria Tiffany usou um casal gay pela primeira vez na sua campanha publicitária. Acha que o apoio à causa gay é tendência?
Claro que as empresas compreendem hoje que o público gay dá lucro e, portanto, uma publicidade gay friendly é vista como positiva. Acho também que, ao mesmo tempo que a epidemia foge a nosso controle, temos uma aceitação crescente dos gays e de outros de vida alternativa, digamos assim. Mas me preocupa uma certa heteronormatividade nesse espaço. É cada vez mais fácil falar sobre o casamento gay, mas ele está fundamentalmente modelado no casamento heterossexual. Enquanto os gays casados e monogâmicos podem estar sendo vistos na sociedade de forma mais positiva, os gays “promíscuos” ou que não adotam um comportamento mais normativo continuam estigmatizados - talvez mais do que nunca. Não é nenhuma surpresa para mim que esse pânico moral sobre o “clube do carimbo” coexista com o mundo em que o casamento gay seja cada vez mais aceito. São os dois lados da moeda. O aumento do julgamento do desvio acaba sendo o outro lado da aceitação de um determinado tipo de homossexualidade formatado.
RICHARD PARKER É ANTROPÓLOGO, SOCIÓLOGO E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE COLÚMBIA (EUA)
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