quinta-feira, 2 de abril de 2015

Coisa de cinema - Edgard Navarro

Na minha ilha

por Edgard Navarro

Já não sei o que fazer com esta minha vocação temerária pra o desatino! Rodopiando frenético em torno do eixo improvável de uma sombrinha de praia enferrujada, eu era o centro da festa, travestido com uma minissaia escandalosa, uma chouriça grandona pendurada você sabe aonde, descendo a Rua Chile ao som do trio. E todo mundo querendo gozar na minha ilha de sombra sob o sol causticante do meio dia. Porque, naquele calor de 50, qualquer pedaço de sombra vira alvo de muita cobiça. E eu crente que tava abafando: “Na minha ilha, iê, iê, iê, que maravilha, iê, iê, iê, eu transo todas sem perder o tom”. Lá pras tantas uma gatinha se insinuou, passei o braço, vieram mais duas, mais três, mais cinco. E buchos, bagulhos, armengues e mocorongas: “E a quadrilha toda grita, iê, iê, iê, viva a filha da Chiquita”… Quase que não consigo recuperar meu precioso adereço. Eu bem que intuía que não era pelos meus belos olhos. “Entrei pra o women´s liberation front”.

Ali em frente ao Sulamérica, na encruzilhada da Carlos Gomes com a Ladeira de São Bento, uma super cafungada na blusinha encharcada de lança perfume e eu sou catapultado pro espaço sideral e: “vamos passear no astral com o duplo etérico pirado”. Mais tarde talvez helicópteros vão me buscar cruzando o céu porque encanaram que eu sou perigoso pra a ordem pública, e os holofotes a la Panamérica vão de noite vasculhar os becos de mijo atrás de meu rastro. Eu já falei que não sou paranóico! O povão abre um grande círculo pro bichão pousar. Será que esses olhos…?

Quem me acode é Polanski, que vei conhecer o carnaval da Bahia, cês acreditam? Eu não acredito:
Mas você é Polanski!

Ele (quase sem sotaque):
Eu tava em Arembepe, vim naquele helicóptero com uma diva loura, sueca, acho que se perdeu de mim. Cê viu onde ela se meteu, a Greta?

Eu:
Vá saber, Roman!

Ele assume ares de mistério e me segreda:
Os home tão quereno sua cabeça.
Home!? Que home?

Ele já estava longe. Sem que eu me desse conta de como fui parar ali, já estava dançando com aquela deusa pagã no colo de orixás poderosos que lhe disputavam a carne de estrela enquanto do outro lado da rua Polanski me fuzilava com seus olhinhos infantis. “Vem me comer, me jantar, sarapatel, caruru, tucupi, tacacá, vê se me esgota, me bota na mesa que a tua holandesa…” Não era sueca? Mas o polaco já estava se distraindo com uma ninfeta dos Corujas.

Na verdade Polanski chegou de Arembepe no fim da tarde e perdeu a melhor parte. Um fulano ia passando entre os mortais, adulado e discretamente perseguido por um séqüito de fãs, eu entre eles. Em dado momento tomei coragem, aproximei-me e falei ousado em seu ouvido: eu te amo. Você pensa que ele considerou? Seu olhar estava horizontal-esfinge, tocando levemente a fímbria do mar; ele estava mais pra Cleópatra do que pra filha da Chiquita. E quer saber? Ali estavam todos: Cantinflas, Doris Day, Rita Hayworth, a belíssima Anita Ekberg, de braços com Mastroiani e Glauber que, aliás, estava se preparando pra começar a rodar seu próximo filme na Bahia; e, quem diria, Spínola, o imprudente, mortalha ensopada de suor, claudicante entre o delírio e a responsa da caça que ia lhe garantir o jantar. Aqui pra nós: anos mais tarde o lobo mau virou jantar justo de quem: daquela gostosa por nome Marilu que ele conheceu naquele carnaval de 76 e que gostava de tomar caldo de cana.

Me dêem um ponto de apoio e eu moverei o mundo? Eu tinha minha sombrinha azul e amarela. Feia, manchada de graxa e ferrugem, com algumas articulações quebradas, mas era um poderoso centro de ubiqüidade e capaz de…

Na subida da barroquinha paro pra descansar um pouco, encontro um beltrano que não me conhece, mas lança olhar de frete blasé. Devo ter entendido mal, porque ele me dá um chega pra lá:
Tá me estranhando, sua muquirana?

Me sinto deslocada, sem ambiente, me pico de volta à folia. Maldita hora. Uma roda de machões truculentos me avista bem defronte ao antigo prédio d’A Tarde e fecham o cerco e eu viro saco de porrada.
Viado descarado! Porra-louca de merda!
Havia um negão entre eles:
Amarelo bundão!

Eu já era. No fundo sempre tive vergonha de ser branco, por saber que somos os verdadeiros vilões da história. Invejo aqueles negões sarados, sem grilos nem grilhões, reis da rua e dos romances de Jorge. Arrancam a chouriça com um puxão violento.
Se era isso que cês queriam, não precisava me bater, eu dava de bom grado!
Filho da puta! Tá dizendo o quê? Que a gente gosta de chouriça? Tome!

Uma joelhada certeira me atinge bem no mei-das-perna e uma dor fina percorre toda a extensão de meu corpo enquanto penso: devo tá pagando algum carma, devo merecer esse ódio todo, devo ter feito muita merda lá atrás, Kardec explica. E desabo no chão. Um deles vê que eu tô mal, considera e alivia:
Deixa o porra-louca pra lá!

A dor foi passando e agora me deu uma fome! Eu me sentia transparente, ao som do passo doble de Armandinho, mas sabia que um cachorro quente no Beco Maria Paz com certeza ia resolver meu problema, pra lá de macrobiótico. Porque naquela altura se eu não comesse alguma coisa ia desmaiar no Clube de Engenharia. E a bexiga cheia… Eu sei, é só levantar a mortalha e todo mundo mija por ali.
Agora não, primeiro vamo ver os filhos de Gandhi; eles já vão passar.

Mas vocês vão querer saber toda a verdade, não é? Pois o fato é que eu tinha acabado de chegar na praça quando uma tamancada vinda não sei de onde me atingiu na têmpora com toda força, ali na porta do Cine Tamoio. Eu não estava pedindo pra desmaiar? O mel escorreu. Vi tudo escuro, e não era efeito de nenhum cheirinho da loló. Houve um fade out longuíííííííííííííssimo. Quando acordei estava nos braços do prefeito Mário Kertész. O resto é pura invenção.
Mas você não disse que isso foi em 76?
Cronologia, nessa hora? Cê não tá quereno demais não, heim, rapaz?

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