segunda-feira, 11 de maio de 2015

Ó paí ó!

Para a diretora Chica Carelli, a ascensão dos
 negros expôs um racismo que estava escondido
"Tenho muito orgulho da trajetória do Bando"

É uma sexta-feira de abril e o Cabaré dos Novos, anexo ao Teatro Vila Velha, no Passeio Público, ferve com a montagem e desmontagem de cenários. Chica Carelli, 58, surge entre atores e ajudantes de palco, de branco e sorrindo. Desde os 23 anos, quando optou, quase a um só tempo, pelo teatro, pelo Brasil e pela Bahia, ela vive intensamente aquele universo, marcado por projetos, sonhos, desafios e uma boa dose de ousadia. "Sem coragem", ela diz, "nada se faz". Foi de coragem que se fez o Bando de Teatro Olodum ao longo dos últimos 25 anos. Hoje, às 13h, no Largo Tereza Batista, no Pelourinho, serão abertos oficialmente os festejos, com shows das bandas do Ilê Aiyê e Negro de Fé, e participação do Olodum e Juliana Ribeiro (R$ 20). A programação é extensa - com o retorno a cartaz das peças Bença e Áfricas - e segue até novembro, quando o Bando estreia um espetáculo inédito com texto da escritora Ana Maria Gonçalves (Um Defeito de Cor) e direção do ator Lázaro Ramos. Antes disso, conta Chica, pretendem remontar um de seus maiores sucessos, Ó paí, Ó, com um elenco de atores jovens e a direção de atores formados no grupo, que cada vez mais assumem funções de coordenação no Bando. Nesta entrevista, Carelli fala sobre sua trajetória pessoal, entre a França e a Bahia, a relação com os atores e o racismo. 

Você nasceu na França e cresceu em São Paulo. O que a trouxe a Salvador?
Salvador veio para mim a partir do contato com a capoeira, todos os meus mestres eram baianos. Quando decidi fazer o curso de teatro, aos 23 anos, praticamente só havia em Salvador, porque o da ECA era mais teórico e na USP só havia EAD. Então resolvi vir para a Bahia, inicialmente só para estudar mesmo. Mas foi tudo dando tão certo. A aprovação no vestibular, a acolhida na Escola de Teatro, um emprego como professora na Aliança Francesa... havia uma força. Em determinado momento, tive que optar entre trabalhar com Marcio Meirelles ou um diretor francês, que havia me convidado a seguir com ele em uma turnê pela Europa. Escolhi o Brasil.

E o que influenciou essa decisão?
Acho que é uma coisa familiar. Meu pai é brasileiro e minha mãe, francesa. Desde pequena, os irmãos ficavam divididos entre brasileiros e franceses. Havia uma identificação. Sempre tive uma atração muito grande pela cultura brasileira.

Seu irmão, o antropólogo Vincent Carelli, criou o projeto Vídeo nas Aldeias, que forma cineastas indígenas. Como vocês dialogam em seus trabalhos?
Tenho grande admiração pelo trabalho dele. Fomos atraídos por aspectos particulares da cultura brasileira. O que aprendo com ele - e acho que todos devem aprender - é a questão da autoria. Vincent instrumentaliza autores e cineastas indígenas, para que possam falar por si e por seu povo. De certo modo, isso é o que tentamos fazer também no Bando de Teatro Olodum, formar novos autores, atores e diretores.

Nesse sentido, integrar-se ao Bando foi quase natural em sua trajetória?
Sim, e veio justamente a partir da parceria com Marcio, com quem eu já trabalhava no Avelãs e Avestruz, que fazia um teatro mais europeu. A ideia surgiu mais na cabeça dele do que na minha, embora eu já trabalhasse com a banda Ilú Batá, de música afro-brasileira. Havia uma sintonia ali. Estávamos interessados nas mesmas coisas. O primeiro espetáculo que fizemos juntos, nesse sentido, foi Gregório de Mattos e Guerras, que tinha uma influência africana forte, na dança e na música, com a direção musical de Bira Reis. João Jorge viu esse movimento e convidou Marcio a criar uma companhia de teatro no Olodum, que estava ganhando importância e queria diversificar as ações. Fizemos uma primeira audição e a oficina que deu origem ao Bando. 

Havia alguma diretriz específica ditada pelo Olodum?
Não, nós tivemos total liberdade. No final, ficou quase um franchising. Embora quisesse diversificar, o Olodum não possuía estrutura para, por exemplo, correr atrás de patrocínio. Isso ficou por nossa conta. Apenas na parte musical, no início, contávamos com a banda mirim e com o apoio de Neguinho do Samba. Mas tudo era tão complexo e difícil que, num certo momento, decidimos que os nossos atores deveriam aprender a tocar os instrumentos. Quando viemos para o Vila Velha, essa autonomia se consolidou.

O Bando de Teatro Olodum foi assumidamente a tentativa de criação de um teatro com linguagem baiana. Em que medida essa proposta foi bem-sucedida?
Acho que foi uma proposta totalmente bem-sucedida (risos). Tenho muito orgulho da nossa trajetória, do fato de termos conseguido criar um estilo de interpretação que conecta-se ao contemporâneo e, ao mesmo tempo, agrega elementos da cultura afro-brasileira, questões sociais e referências às músicas e ao modo de falar do baiano, sem restringir-se ao folclórico ou ao folclorizante. E sem ser panfletário, embora o Bando tenha sido acusado diversas vezes de ser panfletário. 

Havia uma cobrança em relação ao fato de vocês não serem negros?
Sim, havia uma cobrança que se estendia também aos atores. Eles eram questionados o tempo inteiro: "Mas como é que você aceita ser dirigido por um branco?". E olhe que Marcio nem se vê assim. A presença dele, aliás, foi essencial para a afirmação do Bando, tanto como encenador (para mim, um dos melhores do Brasil), mas por ter conseguido dar visibilidade a um teatro, muitas vezes, relegado ao subúrbio e a atores que não conseguiam ter acesso aos palcos oficiais da cidade, como o TCA e o Vila Velha. Marcio os colocou em cena e emprestou a eles sua credibilidade como artista.

Em 2007, o Bando chegou aos cinemas, com Ó Paí, Ó, dirigido por Monique Gardenberg. Como foi essa experiência? 
O caso de Ó Paí, Ó é bem interessante. Só tínhamos três anos de grupo e fomos, na cara e na coragem, para o Rio de Janeiro. Viajamos com 37 pessoas! E com as sete crianças da Banda Mirim do Olodum... Quase fiquei maluca (risos). Fomos convidados por Aderbal Freire Filho para apresentações no Teatro Glaucio Gill, que ele dirigia na época. A produtora conhecia Caetano e ele foi assistir. Grande Otelo também. Então, a ousadia de ir na loucura, sem recursos, pagando tudo com bilheteria, permitiu esses intercâmbios. Caetano amou o Bando e foi o primeiro a criar um roteiro baseado na peça, mas não conseguiu captar recursos. Isso, indiretamente, levou a Monique Gardenberg, que fez o filme. E havia ainda Lazinho, Lázaro Ramos, que estava na Globo e sonhava com o projeto. O filme, nesse sentido, premiou a nossa ousadia.

Como série de televisão, no entanto, me parece que Ó Paí, Ó não funcionou muito bem. O que deu errado ali?
Talvez a série não tenha sido o que esperávamos. Ainda assim, ela foi de uma importância incrível. Não é que tenha dado exatamente errado. Apenas não correspondia à exigência política que o Bando traz em si. A televisão brasileira, talvez, ainda não comporte isso. É um mistério. Recentemente, eu, Lázaro e Elísio Lopes Jr. tentamos fazer uma adaptação de Áfricas para a TV e não conseguimos vender a ideia, sequer obter um retorno, talvez porque não haja respostas.

Você citou Lázaro. Ainda há uma ligação forte entre os atores formados pelo Bando. A que você atribui essa relação?
Ah, eu acho que isso é superimportante. Só ter Lázaro na posição que ele ocupa hoje, por exemplo... E não falo do Lázaro ator global, mas do Lázaro que é produtor e diretor do programa Espelho, do Canal Brasil. O Lázaro que escreve e que dirige seus espetáculos e que se considera ainda como um integrante do Bando de Teatro Olodum. Atores como ele e Érico Braz, entre tantos outros, levam a responsabilidade do seu trabalho não de um modo individual, mas ligados a um teatro negro. São atores que se sentem responsáveis pela trajetória de outros atores negros e mesmo pelo reconhecimento de uma cultura negra.

Não é paradoxal que ao fato de os artistas negros alcançarem maior visibilidade corresponda, em lugar de maior aceitação, um racismo ainda mais ostensivo?
Estava conversando sobre isso recentemente com Zebrinha (coreógrafo do Bando) e chegamos à conclusão de que é justamente a visibilidade que incomoda. Os negros estão ganhando novos espaços, houve uma ascensão dentro da sociedade brasileira, e isso expôs um racismo que já existia, mas que estava escondido. O que tem nos chocado mais, nesse processo, é a agressão tanto ao candomblé quanto à cultura afro-brasileira. Trabalho com Áfricas nas escolas e a reação de alguns professores é muito forte. A demonização da África é uma loucura.

Hoje começam as comemorações dos 25 anos do Bando. Além da festa, no Pelourinho, e do retorno a cartaz de duas peças, o que está programado?
Ao longo do ano, pretendemos remontar Ó Paí, Ó, com um elenco de novos atores e a direção dos veteranos. Mas o ponto alto será uma nova montagem do Bando, que será dirigida por Lázaro Ramos e terá texto inédito de Ana Maria Gonçalves. Esse espetáculo estreia em novembro e será uma experiência única. Pela primeira vez, trabalharemos com um autor de fora do Bando.


Portal A Tarde

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