Sou uma mulher que não pode ser amada.
Uma mulher que aprendeu desde pequena que o amor não poderia ser para mim.
Entendam que isso não é culpa minha, no sentido de que não tenho controle sobre quem criou essa situação. Mas, sim, este é mais um texto sobre a solidão da mulher negra.
Tudo começou quando eu tinha 3 anos. Meu pai abandonou a minha mãe e a mim. No auge do seu privilégio enquanto homem, ele partiu, me ensinando desde pequena a dor da solidão. Tive que viver com a suposta culpa por ter causado aquele abandono e, ao transitar entre momentos de muita dor e muita raiva, tive também que conviver com uma ferida que nunca vai se fechar.
São inúmeros os casos de mulheres negras como eu que crescem em lares “incompletos”: nunca me faltou amor da minha mãe, avós e tias, mas eu lidei com ausência desde muito cedo. Na verdade, posso dizer que foi pior do que a ausência, como seria no caso da morte, pois esta foi a opção dele — a saída da minha vida. Meu pai me negou seu amor.
Por mais que diariamente eu me esforce em me ver como alguém especial e vista essa personagem para o mundo, quando é preciso lidar com a situação da negação afetiva, fica difícil superar as marcas do abandono.
No contexto de mulheres negras, grupo ao qual eu pertenço, tenho que lidar todos os dias com novas formas de violência emocional, já que vivemos em uma sociedade racista e machista. Paira na maioria absoluta dos imaginários a concepção de que somos “quentes” e, por outro lado, constrói-se um padrão de beleza que nos exclui. Por fim, a sociedade se nega a acreditar no “gosto pessoal” como construção, sendo assim altamente influenciável por todas as opressões existentes. Apenas se aceita a ideia romântica de amor, o que facilita que se acredite que não estamos também escolhendo alguém para amar baseado no que a pessoa pode lhe oferecer afetivamente e socialmente, e você a ela.
No meu primeiro relacionamento, percebi como funcionava este “amor”, e que se envolver comigo era diferente de se envolver com mulheres brancas. Ele achava que meu medo de confiar fosse, na verdade, falta de sentimento, quando era uma defesa construída depois de anos sendo magoada. A armadura que me dá forças é a mesma que esconde a minha tristeza e a minha fragilidade. Ser negra significa: ter sofrido racismo desde que nasci, ser preterida ao longo da sua vida e, ao mesmo tempo, ser constantemente assediada e hiperssexualizada.
Histórias de negros num país como o nosso não são geralmente felizes. Histórias de mulheres num país como o nosso não são geralmente felizes. Histórias de mulheres negras podem ser duplamente trágicas.
O papel social que eu ocupo é o de quem está à margem e, nessa leitura, mesmo que alguém diga que me ama, se não tiver desconstruído essa primeira ideia de que a negra é símbolo de força e por isso aguenta tudo, vai me machucar, como machucou na minha primeira relação. Ele me chantageava emocionalmente, mostrando que era capaz de ficar com outras mulheres se eu não cedesse ao seus pedidos — comportamento abusivo que se repetiu nos meus relacionamentos posteriores. Só depois de alguma experiência de vida, comecei a perceber o quão agressivas têm sido as minhas relações — afinal não sou a mulher para um relacionamento sério, a mulher que sente e é capaz de receber amor. Sendo assim, sou supostamente a mulher exata para algo puramente sexual.
Portanto, as minhas relações geralmente se baseavam na performance sexual e manutenção desta; eu me cobro para ser ótima na cama, afinal, mesmo lendo todos os textos feministas do mundo, sei que aquele é o papel que esperam de mim e que o único afeto que um homem poderia me dar seria ali.
Ao mesmo tempo, a sociedade animaliza a mulher negra e, assim, as relações sexuais que deveriam ser momentos de trocas, tornam-se agressivas e dolorosas, assunto pouco debatido porque se mantém a ideia da naturalização da negação do afeto, já que ela é tão comum em nossas trajetórias.
Nas minhas leituras sobre solidão da mulher negra — mulheres negras são maioria em celibato definitivo — eu entendi que provavelmente não viveria o amor. E isso me deu medo. A nossa cabeça é tão condicionada a acreditar que “não vamos viver o amor”, ao mesmo tempo em que somos educados a acreditar no amor romântico como solução para tudo, aquele que vence qualquer desafio. Então quando algo que se parece com amor surge em nossas vidas, mesmo que de forma controladora, abusiva e possessiva, a nossa primeira reação é agarrar a chance. O medo de ser só não é um medo de não realizar histórias de contos de fadas. É a realidade das nossas mães, avós, primas. Ser solteira por opção não é nem seria um problema — mas sentir-se sempre preterida dói muito.
E sim, eu sei lidar com a dor, porque é só isso que o mundo costuma nos dar, mas estou cansada. Acredito que todas nós, mulheres negras, estamos cansadas.
Eu poderia englobar homens negros no quesito dor — eu realmente não acredito que eles estejam intactos às mágoas afetivas da sociedade racista, como hiperssexualização — menor do que a que eu enquanto mulher negra sofro, mas também real — violência sistêmica e construção social de exclusão, onde o padrão de beleza é o da mulher branca e a representação da ascensão social também. Então, eles se tornaram incapazes, na maioria das vezes, de aceitar que eu sou sua semelhante. Percebo aqui um agravante: o medo de se identificar na dor, assunto que nem entre eles costumam falar. Assim, muitos homens negros repetem as ações dos senhores brancos, “usando” as mulheres negras para o sexo enquanto são casados ou pleiteiam se casar com mulheres brancas.
Ser semelhante não é ser igual, e para mim muitos homens negros não são capazes de dar amor a quem lutou e luta do lado deles desde sempre.
O privilégio de ser homem nessa sociedade é também o de ter privilégio da escolha. Meu pai escolheu me abandonar e não foi julgado socialmente por isso Homens escolhem não se relacionar e/ou não me assumir — e fazem isso com as mulheres negras de maneira sistêmica.
Para um homem negro de classe social baixa, a única chance de demonstrar hierarquia seria nas suas relações amorosas. Neste cenário, o pacote fica completo quando se trata de mulheres negras.
Relacionar-se com uma mulher como eu implica em desconstruir tudo que a sociedade ensinou que é ser homem, mas ainda pouco se debate sobre que é construção social de gênero e poder — e a forma como esta construção afeta todos nós.
“É no campo da afetividade da sexualidade que o racismo consegue mais vitórias sobre os negros”, disse Lande Onawale.
E eu tenho a mais absoluta certeza de que a maior derrota recai sobre os nossos ombros — nós, mulheres negras — e, por isso, mesmo dentro da minha armadura, eu estou também sangrando.
Porém, prefiro me expor a me calar. Este foi o caminho que encontrei para que a dor não me supere.
* Imagem: Mark Demsteader
Por Stephanie Ribeiro, no Confeitaria
Entendam que isso não é culpa minha, no sentido de que não tenho controle sobre quem criou essa situação. Mas, sim, este é mais um texto sobre a solidão da mulher negra.
Tudo começou quando eu tinha 3 anos. Meu pai abandonou a minha mãe e a mim. No auge do seu privilégio enquanto homem, ele partiu, me ensinando desde pequena a dor da solidão. Tive que viver com a suposta culpa por ter causado aquele abandono e, ao transitar entre momentos de muita dor e muita raiva, tive também que conviver com uma ferida que nunca vai se fechar.
São inúmeros os casos de mulheres negras como eu que crescem em lares “incompletos”: nunca me faltou amor da minha mãe, avós e tias, mas eu lidei com ausência desde muito cedo. Na verdade, posso dizer que foi pior do que a ausência, como seria no caso da morte, pois esta foi a opção dele — a saída da minha vida. Meu pai me negou seu amor.
Por mais que diariamente eu me esforce em me ver como alguém especial e vista essa personagem para o mundo, quando é preciso lidar com a situação da negação afetiva, fica difícil superar as marcas do abandono.
No contexto de mulheres negras, grupo ao qual eu pertenço, tenho que lidar todos os dias com novas formas de violência emocional, já que vivemos em uma sociedade racista e machista. Paira na maioria absoluta dos imaginários a concepção de que somos “quentes” e, por outro lado, constrói-se um padrão de beleza que nos exclui. Por fim, a sociedade se nega a acreditar no “gosto pessoal” como construção, sendo assim altamente influenciável por todas as opressões existentes. Apenas se aceita a ideia romântica de amor, o que facilita que se acredite que não estamos também escolhendo alguém para amar baseado no que a pessoa pode lhe oferecer afetivamente e socialmente, e você a ela.
No meu primeiro relacionamento, percebi como funcionava este “amor”, e que se envolver comigo era diferente de se envolver com mulheres brancas. Ele achava que meu medo de confiar fosse, na verdade, falta de sentimento, quando era uma defesa construída depois de anos sendo magoada. A armadura que me dá forças é a mesma que esconde a minha tristeza e a minha fragilidade. Ser negra significa: ter sofrido racismo desde que nasci, ser preterida ao longo da sua vida e, ao mesmo tempo, ser constantemente assediada e hiperssexualizada.
Histórias de negros num país como o nosso não são geralmente felizes. Histórias de mulheres num país como o nosso não são geralmente felizes. Histórias de mulheres negras podem ser duplamente trágicas.
O papel social que eu ocupo é o de quem está à margem e, nessa leitura, mesmo que alguém diga que me ama, se não tiver desconstruído essa primeira ideia de que a negra é símbolo de força e por isso aguenta tudo, vai me machucar, como machucou na minha primeira relação. Ele me chantageava emocionalmente, mostrando que era capaz de ficar com outras mulheres se eu não cedesse ao seus pedidos — comportamento abusivo que se repetiu nos meus relacionamentos posteriores. Só depois de alguma experiência de vida, comecei a perceber o quão agressivas têm sido as minhas relações — afinal não sou a mulher para um relacionamento sério, a mulher que sente e é capaz de receber amor. Sendo assim, sou supostamente a mulher exata para algo puramente sexual.
Portanto, as minhas relações geralmente se baseavam na performance sexual e manutenção desta; eu me cobro para ser ótima na cama, afinal, mesmo lendo todos os textos feministas do mundo, sei que aquele é o papel que esperam de mim e que o único afeto que um homem poderia me dar seria ali.
Ao mesmo tempo, a sociedade animaliza a mulher negra e, assim, as relações sexuais que deveriam ser momentos de trocas, tornam-se agressivas e dolorosas, assunto pouco debatido porque se mantém a ideia da naturalização da negação do afeto, já que ela é tão comum em nossas trajetórias.
Nas minhas leituras sobre solidão da mulher negra — mulheres negras são maioria em celibato definitivo — eu entendi que provavelmente não viveria o amor. E isso me deu medo. A nossa cabeça é tão condicionada a acreditar que “não vamos viver o amor”, ao mesmo tempo em que somos educados a acreditar no amor romântico como solução para tudo, aquele que vence qualquer desafio. Então quando algo que se parece com amor surge em nossas vidas, mesmo que de forma controladora, abusiva e possessiva, a nossa primeira reação é agarrar a chance. O medo de ser só não é um medo de não realizar histórias de contos de fadas. É a realidade das nossas mães, avós, primas. Ser solteira por opção não é nem seria um problema — mas sentir-se sempre preterida dói muito.
E sim, eu sei lidar com a dor, porque é só isso que o mundo costuma nos dar, mas estou cansada. Acredito que todas nós, mulheres negras, estamos cansadas.
Eu poderia englobar homens negros no quesito dor — eu realmente não acredito que eles estejam intactos às mágoas afetivas da sociedade racista, como hiperssexualização — menor do que a que eu enquanto mulher negra sofro, mas também real — violência sistêmica e construção social de exclusão, onde o padrão de beleza é o da mulher branca e a representação da ascensão social também. Então, eles se tornaram incapazes, na maioria das vezes, de aceitar que eu sou sua semelhante. Percebo aqui um agravante: o medo de se identificar na dor, assunto que nem entre eles costumam falar. Assim, muitos homens negros repetem as ações dos senhores brancos, “usando” as mulheres negras para o sexo enquanto são casados ou pleiteiam se casar com mulheres brancas.
Ser semelhante não é ser igual, e para mim muitos homens negros não são capazes de dar amor a quem lutou e luta do lado deles desde sempre.
O privilégio de ser homem nessa sociedade é também o de ter privilégio da escolha. Meu pai escolheu me abandonar e não foi julgado socialmente por isso Homens escolhem não se relacionar e/ou não me assumir — e fazem isso com as mulheres negras de maneira sistêmica.
Para um homem negro de classe social baixa, a única chance de demonstrar hierarquia seria nas suas relações amorosas. Neste cenário, o pacote fica completo quando se trata de mulheres negras.
Relacionar-se com uma mulher como eu implica em desconstruir tudo que a sociedade ensinou que é ser homem, mas ainda pouco se debate sobre que é construção social de gênero e poder — e a forma como esta construção afeta todos nós.
“É no campo da afetividade da sexualidade que o racismo consegue mais vitórias sobre os negros”, disse Lande Onawale.
E eu tenho a mais absoluta certeza de que a maior derrota recai sobre os nossos ombros — nós, mulheres negras — e, por isso, mesmo dentro da minha armadura, eu estou também sangrando.
Porém, prefiro me expor a me calar. Este foi o caminho que encontrei para que a dor não me supere.
* Imagem: Mark Demsteader
Por Stephanie Ribeiro, no Confeitaria
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