segunda-feira, 8 de junho de 2015

Movido a música

Produção do baiano passa por jazz, reggae, forró, country, salsa, pop, eletrônico e bossa nova - Marcos Alberte / Divulgação
RIO - Entre palestras sobre estatística, uma mesa-redonda sobre ecologia e um debate sobre o mercado de trabalho para arquivistas, a programação especial de abertura do ano letivo na Universidade Federal da Bahia (UFBA), realizada em março, teve espaço também para o fricote. Ao ministrar uma “aula-show” sobre os 30 anos da axé music, o cantor e multi-instrumentista Luiz Caldas, reverenciado como pai do gênero que explodiu no estado e depois no Brasil a partir dos anos 1980, falou dos mesmos temas acima, mas à sua maneira. Frente a uma plateia formada por alunos, funcionários e pelo próprio reitor, João Carlos Salles, ele discorreu sobre números (seu disco “Magia”, de 1985, vendeu cem mil cópias), sobrevivência das espécies (enquanto muitos dos seus contemporâneos foram engolidos pelo mercado, ele continua ativo e independente, aos 52 anos) e documentação (sua produção recente está toda catalogada em seu site, disponível para ouvir e baixar). Depois, cantou hits como “Ajayô”, “O beijo” e, claro, “Fricote”.
— Eu me senti muitíssimo honrado pelo convite da UFBA, mas não fui lá para falar de teoria e sim de prática, que é o que conheço — diz ele, um dos indicados ao 26º Prêmio da Música Brasileira, cuja cerimônia será quarta-feira, no Teatro Municipal. — Comecei em bailes e no circo aos 7 anos e vivo disso desde então. Essa foi minha faculdade, esse foi o meu aprendizado. Foi o que tentei mostrar. Sou movido pela música. Ela não me deixa parar.
490 CANÇÕES EM DOIS ANOS
De fato, Luiz Caldas não para. Seu mais recente trabalho é o álbum “Forró daquele”, com a participação de Gilberto Gil, parte do inusitado projeto, iniciado há cerca de dois anos, de lançar um disco por mês, sempre pelo seu site (www.luizcaldas.com.br), sempre de forma gratuita. Desde então, o artista contabiliza mais de 490 canções dos mais variados estilos — salsa, metal, clássico, valsa, pop, country, sertanejo, eletrônico e até canções de Natal — e dez milhões de downloads. “Além da porta”, de MPB, rendeu-lhe uma indicação ao prêmio como “Melhor cantor popular”. Por fora, ainda prepara uma ópera, ao lado do maestro Carlos Prazeres.
ADVERTISEMENT— Eu levei um susto porque fechamos as indicações para o prêmio há alguns meses e os discos do Luiz Caldas não pararam de chegar — brinca José Maurício Machline, criador e idealizador do evento. — São impressionantes a vitalidade e a musicalidade dele, gravando com essa intensidade, já sendo um artista consagrado, sem se prender a rótulos ou recomendações do mercado.
A versatilidade vem da época dos bailes, principal diversão do garoto que seguiu uma estrada diferente do pai, um patrulheiro da Polícia Rodoviária Federal (a mãe era dona de casa).
— Nunca vi “O vigilante rodoviário” (seriado brasileiro de aventura dos anos 1960, estrelado pelo vigilante Carlos e seu cão, Lobo). A minha diversão sempre foi cantar e tocar, desde pequeno — garante.
ELOGIOS DE PIANISTA AMERICANO
Depois de passar por bandas amadoras e trabalhar em um estúdio de jingles (WR), Luiz Caldas sofreu para conseguir gravar o primeiro álbum, ouvindo uma dolorosa sequência de “nãos”. O tom preconceituoso da maioria acabou fortalecendo aquela que se tornaria uma das suas principais características: ser um artista local, endêmico, mas de alcance nacional.
— Diziam que eu era mais um baiano e me dispensavam sempre. Então decidi que seria isso mesmo, um artista baiano de sucesso, e não mais um que tenta fazer sucesso no Sudeste — orgulha-se. — Hoje faço toda a minha vida em Salvador. Foi onde cresci, encontrei o sucesso (estima-se que só nos anos 1980 tenha vendido cerca de três milhões de cópias) e eduquei meus três filhos, um arquiteto, um cineasta e um músico, que hoje me acompanha.
Seus hits ainda hoje ecoam em festas — sejam de flashback ou de tons transgressores (como o bloco Viemos do Egyto) — e shows, revistos, por exemplo, por bandas como Moinho e Móveis Coloniais de Acaju. A letra de “Fricote” (“Nega do cabelo duro/Que não gosta de pentear/Quando passa na baixa do tubo/O negão começa a gritar”), porém, ainda deixa muita gente com os cabelos em pé, no arrepio do que consideram racismo. Como aconteceu em abril num evento do coletivo Quermesse, no Morro da Conceição, noticiado pela coluna “Gente Boa” — o DJ chegou a interromper a execução da música diante das reclamações de um grupo de pessoas.
— Sei muito bem como são dolorosos o preconceito e o racismo, e respeito qualquer manifestação contra isso, mas “Fricote” é uma música de festa, de carnaval — defende-se ele. — Vamos parar também de cantar “A cabeleira do Zezé”? É preciso contextualizar as coisas e, acima de tudo, ter um pouco de humor. Gosto de brincar, mas sei também quando é preciso ser sério. Driblei a censura, no auge do axé, com versos aparentemente bobos. Complicado é quando somos sérios na hora de brincar.
O Luiz Caldas “sério” está, por exemplo, no álbum “Be my guest”, de 2013, gravado ao lado do pianista americano de jazz Bill Anschell (através da troca de arquivos pela internet). Radicado em Seattle, Anschell não poupa notas de elogio ao improvável parceiro.
— Não é fácil mergulhar nas harmonias de jazz, vindo de outros gêneros musicais, mas Luiz não teve problema algum com isso. Ele é um grande cantor, guitarrista e compositor — declara. — Eu me impressionei tanto com ele que estou usando algumas das canções do disco com o meu grupo. E espero ter a chance de tocar ao vivo com ele em breve.
GUIADO POR NIETZSCHE
Pouco carnavalesca também vai ser a ópera que prepara, para 2016, ao lado do maestro carioca Carlos dos Prazeres, filho do regente Armando Prazeres (idealizador da Orquestra Petrobras Sinfônica e morto em 1999). Radicado em Salvador, Prazeres, de 41 anos, comanda a Orquestra Sinfônica da Bahia, responsável por popularizar a música clássica na capital baiana, com concertos lotados no Teatro Castro Alves (capacidade de 1.600 lugares).
— Pouca gente sabe, mas o violão clássico é o meu instrumento principal. A partir dele, criei uma ópera sobre a independência da Bahia, tendo como personagens três grandes mulheres, Joana Angélica, Maria Felipa de Oliveira e Maria Quitéria. Como sou apenas um curioso no mundo da ópera, o Carlos está sendo um grande professor, mostrando os defeitos e dando dicas importantes — conta ele, citando Nietzsche para explicar sua errática trajetória. — Ele tem uma frase que eu amo: “Somente aquele que constrói o futuro tem o direito de julgar o passado”. Acho que as pessoas vão ter que se distanciar da minha imagem para me entender um dia. Andei muito descalço, mas sempre prestei atenção onde pisava.

Nenhum comentário:

AS MAIS ACESSADAS

Da onde estão acessando a Maria Preta