sexta-feira, 10 de junho de 2016

Atlântico Negro – Na rota dos Orixás


“Quem deixar a África de lado não vai nunca conhecer o Brasil a fundo”



“Eu considero que esta história é a história de duas crianças que foram separadas. E que nunca mais se viram. Cada um deles teve filhos e esses filhos nunca se viram. Mas um dia, uma ocasião foi dada a seus descendentes para se encontrarem. Esse encontro seria algo inexplicável. Sua alegria seria inestimável e nós nem poderíamos qualificá-la. É alguma coisa extraordinária”. Com uma elocução visionária vindo de um pequeno quarto pintado de laranja na cidade de Abomey, no Benin, fala Adjahô Houmasse, sumo-sacerdote vodum, ao encontrar o símbolo do filme nos desenlaces: é preciso unir as nações.

Com intuito manifesto, o documentário “Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás” vai buscar em África o além do pouco que sabemos, desmistificando a imagem unilateral difundida de um continente bélico tomado por fome e pobreza. Pouco sabemos do cotidiano dos africanos, personalizados no filme em grupos e comunidades locais do litoral do Benin, de onde milhares de negros vieram escravizados para o Brasil.

O filme apresenta ao espectador personagens como Pai Euclides, babalorixá da Casa Fanti Ashanti, em São Luís do Maranhão, que inicia o enlace da narrativa enviando uma mensagem ao amigo vodunon Avimanjenon, chefe do Templo de Avimanje, em Ouidá, cidade de onde partiram incontáveis navios negreiros para Salvador. A mensagem maior, o filme, discorre por 53 minutos de tamanha riqueza plástica e documental, recriando ao espectador pequenas narrativas que vão completando lacunas, como ainda é a própria história africana contada a nós.

Somos apresentados então às religiões dos orixás, aos lugares sagrados a ambos os continentes e aos resquícios protuberantes da influência de um povo sobre o outro, dando relevância à inversão de vieses: o documentário volta à África e encontra no Benin uma população que tem como referência sociocultural o Brasil, que ainda se reconhecem como brasileiros, os agudás. Uma comunidade de descendentes de negros libertos e de traficantes de escravos que fizeram o caminho inverso ao do navio negreiro. No Benin e na Nigéria, entrelaçando a história e por consequência o enredo do filme, encontram-se as principais raízes da religiosidade do Candomblé, da Bahia, o Xangô, de Pernambuco, e o Tambor de Mina, do Maranhão.

Viajamos a Abomey, cidade do Benin, país litorâneo da África Ocidental. Como tantas outras narrativas que chegam de nossos antepassados africanos, Abomey é rodeada de histórias tão extraordinárias que até parece inventada por Tolkien. Era contornada por uma muralha de argila com circunferência estimada em nove quilômetros, e seis grandes portões a atravessavam, sendo a capital do Reino de Daomé. No entorno de toda a aglomeração, uma vala com cinco pés de profundidade, onde cresciam plantações de acácia (planta espinhosa), mantinha a cidade segura de ataques externos. Já Ouidá, a outra cidade para onde viaja a produção cinematográfica documental brasileira, localiza-se no porto e servira durante séculos à exportação de negros vindos de variadas regiões que hoje compreendem Togo, Benin e Nigéria.

“Brasil! Brasil! Os escravos destinados às Américas eram trocados por bugigangas”, diz um moço de rosto franzido. Em Ouidá, antes de embarcarem, os negros eram obrigados a darem voltas em torno de uma árvore: a Árvore do Esquecimento. Como se fosse possível aniquilar a altivez de um povo ao redor de um caule. “Depois disso supunha-se que os escravos perdiam a memória e esqueciam seu passado, suas origens e sua identidade cultural para se tornarem seres sem nenhuma vontade de reagir ou se rebelar. Que aberração. Que contradição! Na história humana alguém já viu um nagô esquecer suas origens e sua identidade cultural se ela está tão marcada em seu rosto e tão incrustada em seu coração?”, questiona uma voz.

O filme conta que o tráfico negreiro trouxe quatro milhões de negros para o Brasil durante 350 anos, que assim fez surgir o sentimento de grandeza da autoridade negra no que hoje se comporta como cultura brasileira. Na Bahia, há passagens rápidas sobre a Casa Branca, o terreiro mas antigo do estado, que deu origem ao terreiro de Mãe Meninha do Gatois, e sobre o Terreiro do Axé Opô Afonjá, em Salvador, tombado em 2000 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Mas é na Casa das Minas, em São Luís, que a história se fixa em procurar fatos sobre a relação da fundação do terreiro com a vinda de uma escrava que poderia ser a Rainha Nan Agontime, viúva do Rei Agonglô, do Daomé. O filme, sem se afastar da simplicidade com a qual narra inteiramente tantos feitos, toma um formato épico ao ilustrar a suposta vinda de uma rainha para São Luís, a qual teria fundado o terreiro. Após a morte do pai, Agonglô, Ghezo destrona o irmão Adondozã, que depois toma o poder e procura se desfazer da família, vendendo a mãe do irmão Ghezo e toda sua comitiva aos traficantes. Ghezo chega a organizar, tempos depois, uma expedição às Américas para procurar a mãe, que não foi encontrada. Poderia ser ela Maria Jesuína, a primeira proprietária da casa?

Fundada por franceses, São Luís seria tomada por Portugal, que deu início à expansão econômica infligida que transformaria radicalmente o contexto social da cidade [e do país] em todos os âmbitos: o comércio de escravos negros africanos deixava os portos do Reino de Daomé em direção a São Luís do Maranhão e outros lugares do Brasil trazendo nos porões negreiros além do silêncio do medo, a riqueza da memória: “Esse fato é a história, porque hoje estamos vivendo essa história. Aqueles que partiram para o Brasil guardaram sua identidade. Isso é o que emocionou na mensagem de Euclides”, diz Avimanjenon. Da região, vieram os daomeanos e os iorubas, majoritariamente prisioneiros de guerra entre os dois povos vendidos aos traficantes negreiros.

O documentário busca por um dos poros de ligação entre os continentes, a relação direta de práticas culturais e religiosas de moradores de Abomey com um passado trazido por seus descendentes, onde a religiosidade, a dança, os ritos e a arquitetura apresentados causam espanto em quem pouco sabe sobre o retorno de negros ao continente de origem. Durante uma passagem jocosa, o documentário traz a história da construção de uma mesquita, solicitada pelas autoridades da época para que fosse construída pelos negros brasileiros, exímios construtores. A fachada do prédio islâmico em plena cidade africana vale por si só a demonstração da influência dual entre os povos.

“A África faz parte do imaginário brasileiro e é um dos nossos mais ricos e misteriosos mitos”, diz o narrador nos primeiros minutos. O documentário, como sugere o titulo, faz a viagem entre os continentes unidos pelo Atlântico, mas opostamente à maioria das obras documentais que buscam estudar a ligação entre África e Brasil, Atlântico Negro faz o caminho inverso, através do conceito e da prática. Com especial atenção para aspectos das religiões dos orixás, o filme busca o continente africano a partir de um novo conceito de visão sobre o passado e as relações atuais entre os continentes, fruto do conceito trazido junto à expressão “Atlântico negro”, que surge com o livro de Paul Giroy.

Segundo o Professor Dr. Luis Nicolau Parés, da Universidade da Bahia, o livro de Giroy começa a ganhar aceitação no meio intelectual por seu caráter abrangente, “[que] resulta num paradigma conceitual que permite reformular muitas das dicotomias surgidas em torno da dualidade entre a África e suas diásporas transatlânticas. A noção de um Atlântico Negro, como uma área cultural única interligada, coloca a cultura afro-desecendente americana e europeia em igualdade com a cultura africana de origem, e lhes confere status de autonomia que se opõe àquela visão nostálgica de uma África idealizada como a terra-mãe. A noção do Atlântico Negro é, antes de tudo, uma reivindicação de diáspora, uma nova proposta de relacionamento com sua história. O conceito, originalmente elaborado em língua inglesa, não significa necessariamente a descontinuidade da diáspora com seu passado africano, como defenderia o modelo interpretativo creolizante, mas, ao contrário, pressupõe, sobretudo, a existência de uma rede de comunicação intensa entre as comunidades da diáspora e a África, aliás, entre elas próprias também. O Atlântico Negro não vê mais um só movimento histórico de leste a oeste, da África para as Américas, mas aponta também o sentido inverso, para as aportações da diáspora na África e para o contínuo fluxo e refluxo que sempre existiu entre as duas costas¹”.

Desta relação intrínseca e íntima entre pessoas e povos que jamais se viram, surge não só “Atlântico Negro”, o filme de Renato Barbieri, como um sentimento rompante que tenta desfazer a noção de um mar que afasta, mas que aproxima e que transforma. O filme faz o caminho inverso e navega até o Benin para frisar a necessidade de um diálogo mais estreito entre aqui e lá, lá e aqui, países que têm uma afinidade histórica com o Brasil, mas que séculos de tormentas fizeram calar-se sob a estupidez traiçoeira de traficantes e senhores, que levianos, acreditaram calar a alma de um povo que no silêncio escondia todo um continente de vivências.


Redação: www.revistaovies.com

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