Como você deve saber, eu sou militar, e em 2012 fui transferido contra minha vontade do Rio de Janeiro para Rio Grande -RS. Veja bem, eu gosto de Rio Grande, mas na época, ficar longe da minha família e de meus amigos por SEIS ANOS não parecia uma boa ideia. Na ocasião, muitos dos meus amigos cariocas vieram me consolar: “pelo menos está indo pra uma terra boa” seguido de um “lá é quase uma Europa, dizem” ou um “vai encontrar uma linda loira de olhos azuis pra casar”.
É no mínimo curioso perceber que em toda nossa vida fomos educados para assimilar a cultura e os valores europeus como algo essencialmente mais elevado e mais excelente que as outras culturas e valores.
Para minha total surpresa os palpites dos meus amigos estavam errados. Errados não, mas no mínimo incompletos. Porque aqui em Rio Grande, assim como em sua vizinha Pelotas, há uma notável presença de gaúchos de ascendência Africana. E não só isso, é possível ver de forma clara o quanto a cultura negra contribuiu para a construção da identidade dos gaúchos que vivem nas mais diversas regiões do estado.
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Já na primeira metade do século 17 os portugueses eram presença hegemônica no trafico de pessoas negras no Rio do Prata. E mais negros continuaram chegando no Rio Grande do Sul durante todo o século 18, trazidos à força junto das primeiras frotas de ocupação que visavam conter o avanço Castelhano e controlar o fluxo de gado que saia dessa região pra São Paulo.
Até 1850, a chegada da maioria massiva de negros escravizados na Província vão se dar pelo porto de Rio Grande. É difícil calcular com exatidão o número de escravos que chegaram durante todos esses anos, pois não há censos demográficos ou listagens precisas. Isso seria melhor quantificado através da documentação da Alfândega do Rio Grande, mas a maior parte da papelada foi destruída por volta de 1970.
Com base em diversas fontes documentais e censos podemos apenas nos aproximar do que realmente foi o número demográfico da população negra no Rio Grande do Sul. Estima-se que o Rio Grande do Sul tinha 70.000 habitantes em 1814, desses, 37% eram negros. Em Rio Grande,por exemplo, a porcentagem de negros pro mesmo período é de 35%. Mas os números realmente impressionantes são os de Pelotas. Calcula-se que em 1833, Pelotas tinha 51% da sua população composta por escravos. CINQUENTA E UM POR CENTO DA POPULAÇÃO.
Em costas negras
Pelotas cresceu de maneira acelerada no século 19, e por conta das charqueadas se tornou uma das cidades mais ricas do estado. A indústria do charque fez crescer exponencialmente o numero de habitantes da região e exigiu uma demanda colossal de mão de obra escravizada. Relatos como os de Auguste de Saint-Hilaire em sua obra Viagens ao Rio Grande do Sul, nos dá a dimensão do tratamento dado aos escravos:
Nas charqueadas os negros são tratados com rudeza. O senhor Chaves, tido como um dos charqueadores mais humanos, só fala aos seus escravos com exagerada severidade, no que é imitado pela sua mulher.
Há sempre na sala um pequeno negro de dez ou doze anos, cuja função é de ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca. Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. Não é esta casa a única que usa este impiedoso sistema: ele é comum em outras.
Ainda hoje é possível ver os resquícios da glória passada conservada nos casarões tombados pelo IPHAN, e também, a factível presença da cultura negra em toda cidade, seja no Carnaval; no clássico bar O Liberdade; nos terreiros de religiões de matriz africana; ou até mesmo nos mais diversos Clubes Socias Negros espalhados por toda cidade.
Antes da glória do charque os negros escravizados também eram usados nas estâncias. Folcloristas e historiadores do inicio do século 20 buscaram minimizar o impacto da mão de obra escrava na economia campeira, no esforço de afastar das tradições gaúchas as marcas profundas da escravidão. Pesquisas mais recentes baseadas em inventários post morten indicam que nas mais diversas regiões os escravos montavam cavalos, estavam integrados à lida do campo e eram fator significativo no que diz respeito a economia pecuária.
História é memoria (ou a falta dela)
O trecho do Hino à Proclamação da República, escrito em 1890, apenas dois anos após a abolição da escravidão, é um exemplo claro do pensamento dominante na virada do século.
Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre País…
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis.
Somos todos iguais! Ao futuro
Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro,
Brilha, ovante, da Pátria no altar!
Buscava-se um caminho para construir uma identidade nacional baseada na ideia da mistura das “três raças” ao mesmo tempo em que se esforçavam para que os horrores da escravidão e do genocídio de nações indígenas fossem esquecidos.
No Rio Grande do Sul, negros gaúchos ouvem desde criança no Hino do Estado que:
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo
Houve uma abundância de autores que trataram de mostrar que o Rio Grande do Sul seria uma região composta majoritariamente por europeus — principalmente por portugueses, e posteriormente, com a massiva onda migratória, por alemãs, italianos, pomeranos, poloneses etc. Apagar a herança africana da memoria coletiva durante a construção da identidade gaúcha era de suma importância, pois um povo tão virtuoso não poderia ter em sua linhagem histórica pessoas que passara tanto tempo escravizada.
Depois de três séculos de escravidão, não havia jeito de esconder a presença da cultura negra debaixo do tapete. Para tanto foi disseminada a ideia de que a escravidão tivera pouca ou nenhuma importância na economia estancieira.
O processo de esquecimento da memória negra em solo gaúcho foi sistêmico e proposital. Encontrou nas políticas de embranquecimento, que se baseava na ideia de supremacia branca, as condições perfeitas para que pudesse pouco a pouco esquecer de seu passado negro.
Apesar de tudo e de todos, a cultura negra sobreviveu nos pampas e nas regiões urbanizadas, mas não foi sem custo. No pré-abolição os negros forros se reuniram em irmandades religiosas e juntos desenvolveram maneiras de conseguir fundos para comprar a liberdade de negros ainda escravizados. No pós-abolição, a comunidade articulou diversas maneiras para aumentar seus espaços de autonomia e se afirmar na sociedade como sujeitos negros. Se reuniram em torno de terreiros, clubes sociais, clubes esportivos e em diversas regiões do estado havia uma imprensa negra consolidada.
Se a memória negra não foi apagada no Rio Grande do Sul o motivo é claro, houveram negros e negras que resistiram EM TODO O TEMPO.
E ainda resistem. Tem negros resistindo na academia, produzindo ciência, pesquisando a trajetória de seus ancestrais. Tem negros resistindo nas vilas, desenvolvendo projetos sociais que fortalece e empodera a comunidade negra. Tem negros resistindo nos espaços de fé, mantendo viva sua religiosidade e memória. Tem negros resistindo nos poderes políticos. Tem negros resistindo nos CTGs (Centro de Tradições Gaúchas) . Tem negros resistindo nas colônias. Tem negros resistindo. Tem negros.
Tem negros no Rio Grande do Sul.
Referências bibliográficas
FARINATTI, Luís Augusto E. Escravos nas estâncias e nos campos: escravidão e trabalho na Campanha Rio-grandense (1831- 1870). Conservatória: Anais do VI Congresso Brasileiro de História Econômica, 2005b.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. São Paulo: Itatiaia, 1999. 216 p
SILVA, Fernanda Oliveira da. Os negros, a constituição de espaços para os seus e o entrelaçamento desses espaços:associações e identidades negras em Pelotas (1820–1943). 2011. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2015.
TORRES, L. H. A cidade do Rio Grande: escravidão e presença negra. Biblos, Rio Grande, v. 22, n. , p.101–117, 2008. Disponível em:. Acesso em: 13 nov. 2015
ZARTH, Paulo A. Escravidão nas estâncias pastoris das estâncias da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. In: MAESTRI, Mario; LIMA, Solimar (Org.).Peões, vaqueiros e cativos campeiros: Estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: Upf, 2010. p. 181–211.
Por Thiago André Do Medium
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