domingo, 12 de março de 2017

“É baboseira querer isolar comunidades”, diz Antonio Risério

Brancos, como a estudante paranaense que usou um turbante, são criticados por adotar tradições de grupos negros. A crítica ajuda a combater o racismo ou a aprofundá-lo?



Parte da atual cultura universitária, entrincheirada nas “humanidades” e produzindo efeitos na esfera do “ativismo”, resolveu fazer uma dupla abolição. De uma parte, aboliu as classes sociais: agora, só existem sexo e etnia. De outra, no rastro de uma velha fantasia racista, aboliu os mestiços. E estes “abolicionistas” são autoritários, “fascistas de esquerda”: quem discorda da tese merece o fogo do inferno.

Isso aconteceu nos Estados Unidos, claro. Mas, graças ao capachismo mental de nosso sistema universitário, vai se reproduzindo no Brasil. Como se fosse possível substituir nossa experiência histórica e social pela experiência histórica e social dos americanos. É o ménage à trois do escapismo, da ignorância e da alienação colonizada.

>> Apropriação cultural é racismo?

A jovem filósofa Bruna Frascolla, tradutora de David Hume, foi direto ao assunto: “Tenho colegas que já andavam problematizando turbante porque nos Estados Unidos se problematiza turbante. A fórmula é a seguinte: sempre que vocês virem um jovem que se pretenda progressista afirmando alguma coisa digna do kkk (risada-padrão de deboche na internet) ou das mulheres de Aristófanes, isso vem de modismos acadêmicos dos Estados Unidos. São os estudos de questões sociais feitos em departamentos de literatura (sim!), sem qualquer compromisso com análise concreta e rigorosa de dados. Os ‘gender studies’, os ‘postcolonial studies’ e a caçula ‘queer theory’. Tudo consiste em pegar o antagonismo de classes do marxismo, a dinâmica opressor-oprimido, e transferir para etnia e sexo”.

No campo racial, eles dividem o mundo drasticamente entre brancos e pretos. (Os Estados Unidos são uma anomalia planetária: o único país do mundo que não reconhece a existência de mestiços.) Misturas são miragens, ilusões de ótica. Nesse apartheid, branco usa coisa de branco; preto, coisa de preto. “Brancos e negros, assim como homens e mulheres, são fundamentalmente diferentes e cabe ouvir o oprimido sem questioná-lo.” Todos no reino da filantropia ideológica, portanto.

Os Estados Unidos são uma nação de fraca capacidade integradora e alto poder destrutivo. Em sua obra Fenomenologia do brasileiro, Vilém Flusser, judeu nascido na Praga de Kafka, já falava da insularização local das etnias, que viria a produzir uma série compartimentada de nipo, ítalo ou afrodescendentes. Ao lado disso, o poder destrutivo. O exemplo clássico está no assassinato espiritual do africano nos Estados Unidos.

Sob a pressão do poder puritano branco, as religiões negras foram destruídas naquele país. Por isso, Martin Luther (Martinho Lutero, note-se) King foi um pastor protestante e não um babalaô, senhor das práticas divinatórias de Ifá. Se tivesse acontecido aqui e em Cuba o que aconteceu nos Estados Unidos e na Argentina, não teríamos um só orixá vivo, hoje, em toda a extensão continental das Américas.

Para dar outro exemplo, os sintagmas “black religious music” e “música religiosa negra” são linguisticamente equivalentes, mas culturalmente dessemelhantes. No primeiro caso, o que temos é o hinário protestante preto, recriação de salmos brancos. No segundo, a música sacra africana executada em nossos terreiros de candomblé, com alabês e atabaques. Lá, a destruição; entre nós, a sobrevivência. Com orixás celebrados com grande sucesso na cultura de massa. Por quê?

Porque aqui a mescla foi total. Não houve apenas o fato biológico da miscigenação, mas o reconhecimento social e cultural das misturas, que é o que define a mestiçagem. Durante séculos, nos Estados Unidos, a miscigenação foi uma prática fora da lei, inclusive com a proibição legal de casamentos interétnicos. E a mestiçagem nunca existiu. Nunca foi reconhecida como tal.

Outra coisa: mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Tem uma forte carga de conflitos. Não se trata de idealizar nada. Mas é preciso entendê-la, ou não nos entenderemos jamais. Hoje, ao contrário, o que se quer é abolir o fenômeno. Tentar exorcizar as ambiguidades brasileiras e transformar o país num campo racial polarizado, à maneira dos Estados Unidos.

Além da mestiçagem, o sincretismo. Em horizonte histórico e em plano mais recente. As formas culturais de origem africana, por exemplo, se enraizaram em todas as instâncias da configuração cultural brasileira. É por isso que podemos dizer que, regra quase geral, mesmo os brancos brasileiros são mais africanos do que os negros americanos. E nossa mulataria é incontornável.

Cito o exemplo de Carlos Marighella, filho de uma preta malê e um branco italiano, que, na fase mais violenta de sua militância, apareceu como um anarcomilitarista que tinha fechado o corpo num terreiro de candomblé. A verdade é que nada do que chegou ao Brasil permaneceu “puro”. E essa baboseira de “apropriação cultural” é coisa de quem quer implantar apartheids em nossos trópicos, em vez de se lançar às marés das misturas e de seus signos nômades.

O Brasil não é um país multicultural. E nem tem como adotar a ideologia multiculturalista, com sua fantasia de isolar cada “comunidade” numa espécie qualquer de autismo antropológico. Em consequência de nossos processos histórico-culturais, o sincretismo é o traço central da dimensão simbólica de nossa existência. Temos, sim, a mestiçagem e o sincretismo, para além dos que querem agora nos obrigar a olhar o povo brasileiro pelas lentes americanas, com o horror puritano às misturas, a mixofobia anglo-
saxônica, que sempre teve nojo de negro.

Combater a mestiçagem é uma tolice. Combater o sincretismo é combater o que há de mais rico na vida, que são as trocas de experiências e de signos. Mais: toda crítica que tivermos, ao processo brasileiro, deve ser feita para enriquecê-lo. Mas agora vem a PPC – a Polícia do Politicamente Correto – para empobrecer tudo, na base do fascismo travestido de progressismo? Não dá. Não queiram nos convencer de que apartheid é sinônimo de democracia. Temos de deixar esses modismos de lado – e tratar de pensar o Brasil por nossa conta e risco.

Antonio Risério é antropólogo, poeta e romancista, autor de livros como A utopia brasileira e os movimentos negros e A cidade no Brasil


Via Portal da Revista Época

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