terça-feira, 8 de agosto de 2017

Entrevista: escritor Edimilson de Almeida fala sobre a Flip e os cânones literários

Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora é autor de ‘O primeiro menino’, livro de perguntas e respostas que convida leitor ao uso da imaginação


Na sua primeira mesa, você situou a discussão sobre os cânones na literatura, apontando a necessidade de ampliar as margens dessa convenção.
Um dos nomes importantes que tratam dessa questão é Antonio Risério, autor de livro extraordinário no qual contesta a lógica de cânone ocidental, que se instituiu como referência para a literatura brasileira. Esse cânone ocidental excluiu o que ele chama das poéticas extraocidentais – a literatura indígena e literatura de base afrodescendente. O cânone dá conta de determinada experiência histórica, mas essas experiências mudam com o próprio tempo, com a própria dinâmica da sociedade. De período em período, é necessário que haja revisão desses autores e obras que são considerados canônicos. Essa alteração de parâmetros não é algo que se dá de maneira natural. Muito pelo contrário, é fruto de série de disputas, de natureza ideológica e estética.

Alargar o que se convencionou como cânone é uma maneira de ampliar o número de leitores?
Quando você abre a lógica de um cânone para outras possibilidades identitárias, para novas formas de representatividade de identidade, você inclui no campo de interesse de vários leitores temas que não eram colocados até então com realce. Alguns autores não são representados em determinada literatura, porque não se falava sobre ele ou se falava mal. No entanto, a partir de novo espaço literário, o leitor pode ser cativado. É o caso que a gente tem falado. Há uma gradativa e lenta percepção de que temos mais leitores afrodescendentes interessados em obras de autores afrodescendentes. Há processo – em curso – de “visibilização” dessas literaturas. Vou ler porque, em princípio, me interessa a temática. O leitor pode até abandonar, mas há chamariz de uma identificação por encontrá-la nessas produções artísticas.

Você falou em entrevista ao EM numa “epistemologia afrodiaspórica”. Como poderia definir esse conceito?
Não se trata de uma definição de uma epistemologia afrodiaspórica. Estou na fase de descrição do que seria uma série de procedimentos e valores que nos permitem falar de modos de vida, modos de ação e modos de pensar que têm como base as matrizes africanas, que se espalharam pelo mundo em decorrência do tráfico de escravos. Aparentemente, é uma proposta difusa que encontra eco com texto Atlântico negro, de Paul Gilroy, nas investigações sobre identidade do Stuart Hall, no caso brasileiro, nas indagações teóricas sobre os conceitos de brasilidade que estão em Antonio Risério, nos debates historiográficos que Eduardo Duarte levanta. É todo um campo de discussão sobre os lugares dos afrodescendentes no mundo que criam lógica, que é possível encontrar formas de vida e pensamento que estão conectados através daquela tragédia do tráfico.

E como isso se dá?
Por exemplo, na hora de você criar uma maneira de se relacionar com o mundo. Temos uma herança cartesiana muito forte no Ocidente. Você pega uma lógica que seria dessa epistemologia, aquilo que chamo de visão do mundo tensionada, que vou buscar a partir da mitopoética de exu, que é uma figura de trânsito. Ela não está num lugar. O fato de exu estar num lugar já pressupõe ele estar em outro. Ele é uma figura tensionada. O que seria uma experiência de vida tensionada? Se você procurar uma certa lógica que ordena a vida das periferias no Brasil, esse tensionamento está lá. Quando a lógica cartesiana olha para esse mundo, ela o interpreta como desordem, incapacidade de ser obediente. Como o Estado trata isso? Com repressão. É uma lógica que pede, sobretudo, aproximação e diálogo. As periferias estão gritando isso. Elas querem que o Estado se predisponha ao diálogo. Mas, ao contrário de dialogar, o Estado reprime. Se você tem a compreensão de que há uma visão de mundo que ela se constrói nos pontos de tensão, acredito que teria um modo muito particular de lidar com as populações periféricas. (MMC)


por Márcia Maria Cruz Do Uai / Portal Geledés

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