terça-feira, 29 de setembro de 2009

VALEU ZUMBI

Ubiratan Castro de Araújo
Presidente da Fundação Cultural Palmares

Quando, há muitos anos atrás, uma grande caravana do movimento negro baiano, tendo à frente Mãe Hilda do Jitolu e Vovô do Ilê Aiyê, subiu a Serra da Barriga, em Alagoas, o 20 de novembro estava consagrado como data de celebração da consciência negra. Em 1695, o Quilombo dos Palmares fora destruído e o seu líder, Zumbi, morto e decapitado. Passava para a história o símbolo maior de um dirigente político negro que lutou até o último suspiro contra a escravidão. Ganga Zumba, seu antecessor, acreditou na possibilidade de uma negociação justa com as autoridades coloniais. A paz de Ganga era a derrota do quilombo. Ele desceu a serra com os seus seguidores, colocou-se na beira da praia sob a tutela dos senhores de escravos, e renunciou à luta contra a escravidão, entregando aos senhores os escravos recentemente liberados no quilombo e recusando-se a aceitar qualquer outro fugitivo. Seu destino foi triste. Faminto, re-escravizado, traído, Ganga Zumba morreu.

Zumbi disse não! Reuniu todos os mocambos, fortificou a sede de Palmares e preparou a resistência ao governo da Capitania de Pernambuco. Alguns militantes e historiadores como Joel Rufino dos Santos, se perguntam porque Zumbi e o povo de Palmares resolveram abandonar a velha tática de guerrilhas, pela qual há cem anos- desde 1595 ?circularam em uma rede de mocambos precários que, uma vez destruídos por ataques dos escravistas, rapidamente se refaziam adiante e continuavam a luta? Porque Zumbi preferiu a guerra de posição: fincou pé na Serra da Barriga, fortificou-se e resolveu enfrentar cara a cara o inimigo? Os palmarinos tinham clareza da superioridade militar do inimigo, reunificados após a expulsão dos holandeses, vitoriosos na reconquista de Angola aos holandeses e na destruição do reino cristão do Congo na batalha de Ambuíla. Se assim era, fincar pé em Palmares era morte certa, era suicídio. Hoje, mais de trezentos anos depois a resposta é evidente: naquele tempo era possível ter esperança. Ousar luta,ousar vencer, porque não?

O que cabe a nós, cidadãos e historiadores de hoje, é a pergunta: o que havia de tão valioso que justificava a ousadia temerária daqueles palmarinos? A mesma pergunta pode ser feita em relação aos Malês da Bahia. Porque, ao invés de fazerem mais um levante para sair da escravidão, como os mais de dez que o precederam na Cidade do Salvador, resolveram fazer uma revolução escrava ? A leitura atenta da obra de João José Reis mostra que os Malês tinham consciência que era preciso conquistar a Cidade do Salvador, abolir a escravidão, inverter as hierarquias sociais, para enfim poderem viver plenamente o Islã em liberdade. No caso de Palmares, há evidências que os quilombolas entenderam que era o momento de parar de fugir e assegurar a consolidação de uma cidade-estado em que fosse possível a vida em liberdade.

Para melhor compreendermos essa opção política, é preciso ver em Palmares muito mais do que um refúgio de escravos. Ao longo de cem anos de resistência, os palmarinos construíram um território amplo, formado por vários mocambos ligados em rede. Várias foram as gerações nascidas em Palmares, fora da escravidão. Eles formaram um povo palmarino, sem o trauma da derrota originária da escravização em África e sem a vivência da escravidão no Brasil. Desenvolveram ao longo dos anos a capacidade de absorção e de re-culturação dos fugitivos da escravidão, negros e índios, além dos brancos excluídos da sociedade açucareira. A guerra permanente contra a escravidão soldava a solidariedade do povo em torno de uma identidade quilombola.

Além de território, povo e identidade, desenvolveu-se em Palmares um modelo de economia auto-sustentável, regulada por instituições sociais de justiça e de governo. Portanto, estava em curso um processo de formação de um estado nacional multi-étnico, fundado na cooperação do trabalho livre e organizado a partir das referências culturais africanas. Esta foi a primeira formulação de um projeto de estado nacional brasileiro, em um momento em que a sociedade colonial portuguesa, mesmo após a vitória de Guararapes contra os holandeses, estava inteiramente empenhada na reconquista da África e na reconstrução do Império Atlântico Português.

Zumbi fincou pé em Palmares e aceitou a guerra de posição para defender a possibilidade de um Brasil livre, liderado pelos africanos. Este foi o verdadeiro sonho de Zumbi, que valia o sacrifício e valeu a experiência como legado histórico para as lutas contemporâneas do povo brasileiro. O exemplo de Zumbi é vivo, hoje, não pelo aspecto guerreiro, mas pelo aspecto político. Afinal sabemos todos que a guerra é uma dimensão terminal da política. Os milhares de quilombos que se organizaram nos duzentos anos seguintes, resistiram e enfraqueceram a escravidão, mas nenhum deles conseguiu formular um projeto de estado e de sociedade alternativos à monarquia escravista. O movimento abolicionista, a partir dos anos sessenta do século XIX, conseguiu mobilizar a mais ampla frente popular contra a escravidão, mas não produziu nenhum projeto político, social e econômico para o pós-escravidão. Isto se demonstra em nossa História pela inteira desarticulação do negro brasileiro no dia seguinte ao Treze de Maio. Sem projeto de sociedade, ficou dilacerado entre o projeto do Terceiro Reinado da gratidão à princesa e o projeto da República dos grandes fazendeiros. O negro brasileiro foi esmagado pelo imigracionismo e pela exclusão política e social, perdeu todos os aliados da véspera, virou um sub-cidadão.

Hoje, no momento em que o movimento negro brasileiro alcança vitórias importantes e o governo da República incorpora de uma maneira sincera o compromisso com a igualdade racial, não podemos esquecer o exemplo de Zumbi. Não basta lutar contra o racismo e contra a exclusão social através de múltiplas políticas de ações afirmativas. É preciso construir um modelo político e econômico para o Brasil, que consagre e igualdade racial como componente central da democracia. Como em Palmares, não basta lutar contra a desigualdade. Devemos construir o sonho da liberdade, o estado feliz do não abatimento, segundo os revolucionários negros da Bahia em 1798. Este é o sonho palmarino de um país de todos os brasileiros.

Valeu Zumbi !

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