RIO - Dezembro marca o bicentenário de uma figura esquecida na história de nossa cidade, personagem marcante na cena carioca de meados do século 19. Poeta, tipógrafo, livreiro, editor, jornalista e dono de jornal, comerciante, impressor, tradutor, compositor, dramaturgo, Paula Brito marcou seu tempo não só por tudo isso, mas principalmente por criar em seu estabelecimento um espaço de sociabilidade que o transformou num dos mais importantes agentes de mediação cultural da sociedade de então.
Nascido no dia 2, em 1809, na então Rua do Piolho (atual Carioca), Francisco de Paula Brito passou a infância no interior da província na cidade de Suruí, região de Magé. Retornou à cidade em 1824 junto com seu avô materno Martinho, que seria desde sempre uma de suas maiores influências. Também não era para menos. Embora pouco se saiba da biografia de Martinho Pereira de Brito, esse pouco nos permite afirmar que é preciso buscar conhecer melhor sua trajetória. Discípulo de Mestre Valentim e um dos maiores toreutas (arte de esculpir em metal, madeira ou marfim) do seu tempo, foi também comandante do 4º Regimento de Milicianos, o famoso Regimento dos Pardos, onde foi reformado como sargento-mor. Não se sabe exatamente onde nem quando nasceu, mas sabe-se que morreu com aproximadamente 100 anos em 1830, deixando o neto em profunda tristeza.
Apesar do golpe, foi mais ou menos nessa época que adquiriu de um primo uma pequena loja de miudezas conhecida como “loja de chá do melhor que há” e, nos fundos dela, instalou sua tipografia, onde iria botar em prática os ensinamentos adquiridos em seu primeiro emprego como aprendiz na Tipografia Nacional. Surgia ali a famosa Loja do Canto, como era conhecida sua livraria no Largo do Rossio, atual Praça Tiradentes. Ao longo dos anos foi se expandindo e teve vários endereços onde funcionaram tipografias, editoras e livrarias.
Paula Brito foi o responsável pela criação de vários jornais, como A Mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada e A Marmota na Corte (depois A Marmota Fluminense, depois só A Marmota). Pioneiro em tudo que fez – basta lembrar que a impressão no Brasil data de um ano antes de seu nascimento – foi também o primeiro a editar um jornal inteiro dedicado a temas, digamos, pouco recomendáveis para a época, tais como: O Limão de Cheiro (1833), alusivo ao carnaval, e O Homem de Cor (1833), tido como um dos primeiros periódicos a discutir questões raciais.
Como se não bastasse, foi na sua casa que Machado de Assis teve seu primeiro emprego como revisor de provas, além de ter sido na Marmota Fluminense que publicou seu primeiro artigo. Foi Paula Brito também o editor do primeiro livro de Machado, bem como da primeira edição de As primaveras, de Casimiro de Abreu. Será pouco para um filho de carpinteiro, negro e autodidata que nasceu há 200 anos?
Para Paula Brito parece que sim. Sua loja virou ponto de encontro de toda gente, políticos, professores, poetas, músicos populares... Era amigo até do imperador Pedro II. Gonçalves de Magalhães, Joaquim Manuel de Macedo, Laurindo Rabelo (o poeta Lagartixa), Mello Moraes Filho, Casimiro de Abreu, Araújo Porto Alegre, Machado de Assis, Manuel Antonio de Almeida.
Nesse ambiente surgiu a Sociedade Petalógica, entidade um tanto anárquica (não admitia estatutos ou normas) que pretendia apenas ser uma reunião descompromissada para discutir qualquer assunto que seus associados julgassem pertinente. Seu nome vinha de peta, pequena mentira ou lorota. Machado de Assis deixou algumas impressões sobre essas reuniões em suas crônicas, tema que a historiadora Mônica Pimenta Velloso tem trabalhado em artigo ainda inédito em livro.
De temperamento romântico e espírito conciliador, acolhia em sua residência quem estivesse precisando. Teixeira e Souza, autor de O filho do pescador, tido como o primeiro romance brasileiro (um doce para adivinhar quem editou) teve nele um grande amigo e protetor. Chegou a ser um dos tantos agregados da casa de Paula Brito quando veio pobre de Cabo Frio justamente para trabalhar na livraria.
Apesar de tudo isso e também de ser reconhecidamente um estabelecido homem de negócios, em 1853 um sócio do recém-fundado Clube Fluminense, de nome José Silveira do Pillar, escreveu longa carta aos diretores da dita sociedade protestando contra a exclusão do nome de Paula Brito da lista de sócios sob a alegação de ser ele “um homem de cor”. O Jornal do Commercio repercutiu o fato na época, comentando que o referido sócio retirou-se da agremiação junto com outros indignados.
Foi nesse ano mesmo de 1853 que Paula Brito compôs os versos de um lundum que seria cantado aos quatro ventos não só na cidade do Rio, mas também no interior da província e arredores. Tratava-se de A marrequinha de iaiá, buliçosa composição propositadamente libidinosa e matreira, parceria com Francisco Manuel da Silva, autor de um hino destinado a festas da independência que mais tarde se transformaria em nosso Hino Nacional.
Isso tudo fez José Ramos Tinhorão escrever um belo artigo na Revista Cultura, número 28 de 1978, onde afirma textualmente que foi na loja de Paula Brito que surgiu a canção popular de parceria, isso entendido como letra e música sendo produzidas conjuntamente. Isso só foi possível pelo encontro que ali se dava dos poetas da geração romântica com os músicos populares frequentadores da casa. Para Tinhorão, Paula Brito assumiu brilhantemente o papel de mediador entre a cultura popular e a da elite nos anos de transição para o Segundo Império.
Por mais que haja espaço sempre faltará dizer alguma coisa sobre o homenageado. Não falei ainda que Paula Brito foi o responsável pela vinda em 1853 do litógrafo francês Louis Thérier para desenvolver novos ramos de impressão em seus estabelecimentos: a impressão de imagens em cores e também em larga escala a partir da prensa litográfica rotativa, novidade da época.
Segundo o historiador da arte Rafael Cardoso, no livro A arte brasileira em 25 quadros, uma das primeiras imagens reproduzidas nesse sistema foi o retrato do marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana que em 1853 naufragou tragicamente, num desastre onde 28 pessoas morreram. Das 42 que se salvaram, 13 ficaram devendo a vida ao marinheiro, que arriscando a própria sorte, transpôs 13 vezes as ondas e resgatou da morte, entre outros, um cego e um militar amputado. Nas palavras de Rafael, percebendo o prato cheio que a ação heróica do marinheiro seria para quem quisesse atacar o preconceito racial, Paula Brito mandou fazer seu retrato e distribuiu encartado na Marmota Fluminense, produzindo possivelmente o primeiro panfleto abolicionista de que se tem notícia.
Rafael destaca Paula Brito como um dos mais importantes nomes da nossa história editorial, lembrando inclusive que foi ele o idealizador da primeira revista cultural brasileira, a Guanabara (que tinha como redatores nomes como Araújo Porto Alegre, Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves Dias) e também da primeira versão da Revista Brasileira.
A historiadora Renata Santos, autora do livro A gravura no Brasil, é outra a destacar nosso amigo, dedicando várias páginas do seu trabalho a ele e sempre que possível lembrando sua existência. Pois é incrível perceber que, apesar de todas essas atividades que aqui listamos, pouca gente sabe da existência de tão importante brasileiro.
Como lembra Sergio Caldieri em artigo publicado na Revista da Academia Fluminense de Letras, em 2005, foi fatídico o fim do ano de 1861, tendo levado em fins de novembro Manuel Antonio de Almeida (aos 30 anos num naufrágio no litoral de Macaé), logo depois Teixeira e Souza e uns dias mais, o nosso Paula Brito. Segundo Mello Moraes Filho, seu préstito fúnebre teve mais de 200 carros, tendo sido o coche escoltado por sege do Paço, do Campo de Sant'Anna ao cemitério de São Francisco Xavier. Foi-se assim o iniciador do movimento editorial brasileiro.
Fonte : Rodrigo Ferrari, Jornal do Brasil
Enviado por Verçosa
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