A Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos precisa, hoje, de um choque de realidade. Precisa urgente se fantasiar menos, parar de se mirar em falsos espelhos, de se contentar em mentir sobre si mesma, e se compenetrar da verdadeira situação que está atravessando, entre muitos trancos e não poucos barrancos. Porque o que estamos vivendo hoje é um momento menor da nossa história. E o pior: ninguém parece ter maior consciência do sentido desta cidade. Nem se preocupar em lançar olhares novos sobre seu destino.
Olhem em volta. A cidade está triste, travada. E tem se mostrado totalmente incapaz de gerar um novo projeto para si mesma. O problema maior talvez nem seja o desmantelamento físico. Mas a inércia ou a inanição mental. Mesmo os nossos melhores “recursos humanos” estão escanteados, condenados a não verem suas ideias se realizar. Não será perdoado, na tela maior da história, nenhum governo que, diante das propostas arquitetônicas e urbanísticas de um João Filgueiras Lima, não mova uma palha para que elas aconteçam. Pelo contrário, deixam Lelé pastando, como se não houvesse o que fazer na cidade. Como se não tivéssemos futuro.
Onde estão, afinal, as lideranças da Bahia? Antigamente, podíamos identificá-las. Houve a geração do Visconde de Cayru, levando a dom João VI as propostas da abertura dos portos e da criação da Faculdade de Medicina. Tempos depois, tivemos Edgard Santos fazendo a Universidade da Bahia. E hoje? Onde estão, repito, as lideranças baianas? Em que canto escuro ou escaninho burocrático elas esqueceram o seu compromisso com a cidade?
É uma coisa inacreditável. Tempos atrás, era possível até discordar de gente como Clemente Mariani, Rômulo Almeida ou Nestor Duarte. Mas eles estavam presentes. Vislumbravam caminhos. Propunham direções. Arregimentavam forças e recursos. Faziam obras. Hoje, não temos nada disso. A Bahia está à deriva. Não tem um norte. Nem sugestão de bússolas. Nossos políticos, militantes sociais e empresários parecem estranhamente surdos. E, mais estranhamente ainda, mudos.
Mas o quadro ainda é pior do que se pode pintar. Porque os mais novos parecem tão distantes quanto os mais velhos. Basta fazer a pergunta: onde está a nova geração? Satisfeita com ruas e vidas paradas, esburacadas? Com a degradação de tudo? Com Pituaçu devastado? Não é possível. O que se esperava é que ela de fato assumisse a cidade. Antes que assumir, a turma prefere sumir? Fazer de conta que não existe? É o que nos vemos a perguntar. Porque, no fim das contas, quem é o nosso novo Caetano Veloso? Quem é o nosso novo Tom Zé? Essa meninada vai se contentar em passar o seu tempo consumindo latinhas de cerveja em postos de gasolina?
Está mais do que na hora de reassumir esta bela e destroçada cidade. De reativar a nossa mais clara responsabilidade com relação a ela. De avivar nossos compromissos. De todos se inteirarem de que a destruição não pode prosseguir. De que herdamos uma coisa altamente preciosa, construída com esforço e brilho por todos os nossos antepassados, e não podemos simplesmente atirá-la na lata do lixo, como quem joga fora um resto imprestável de moqueca. Esta é uma cidade que exige – e merece – o nosso maior respeito. Esta é uma cidade que depende de nós, para ser realmente grande e linda.
Salvador nasceu como um projeto de vanguarda. Como um grande e surpreendente laboratório social e racial, situado estrategicamente no Atlântico Sul, fazendo a conexão entre a Península Ibérica e as terras do Oriente, com uma mensagem ensolarada e democrática para o mundo. Nós nascemos disso. De uma coisa maior, como bem souberam nossos melhores artistas e pensadores, de Antonio Vieira a Glauber Rocha. Mas onde andam os espíritos de Vieira e Glauber? Afugentados?
São eles que têm de nos inspirar. Mas os caminhos só são revelados a quem de fato quer fazer alguma coisa. Em primeiro lugar, portanto, temos de querer. Temos de querer fazer de nossas vidas aqui uma coisa que valha realmente a pena. Que nos encha de vitalidade e de alegria. Porque Salvador tem de ser digna de si mesma.
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