terça-feira, 25 de setembro de 2012

Liberdade de expressão e respeito ao próximo

Crianças na bienal do livro Brasilia
A literatura é a voz do entendimento de uma época, de sua sociedade e dos seus costumes e pensamentos
Está em trâmite no Supremo Tribunal Federal um mandado de segurança (MS 30.952, relator Ministro Luiz Fux) impetrado contra ato do governo federal que liberou a circulação de um livro de Monteiro Lobato (Caçadas de Pedrinho) no qual, alega o impetrante, traz inadmissíveis ofensas raciais e apresenta o negro carregado de estereótipos racistas. A questão é muito interessante, pois coloca em posição de confronto dois direitos fundamentais: de um lado a liberdade de expressão; do outro, a proibição da prática do racismo. 

A liberdade de expressão é protegida pela Constituição Federal: é livre a manifestação do pensamento e da atividade intelectual (arts. 5º, IV e IX, e 220, º2º, CF). No entanto, a prática do racismo é considerada crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, CF). Como ponderar esse conflito? Em primeiro lugar, não é proibindo uma obra, cujas frases devem ser lidas num contexto, é que se vai combater a odiosa prática do racismo. Não se pode comparar, em nenhum grau, qualquer obra de Monteiro Lobato com o abjeto Minha Luta, do abominável Adolf Hitler. Neste, Hitler propalava uma ideologia como triunfo da sua verdade. Pregava o ódio como lição. 

O Supremo Tribunal já se deparou com um caso deveras semelhante no HC 82.424. No julgamento deste habeas corpus a Corte Suprema entendeu que a liberdade de expressão não é um direito fundamental absoluto e que deveria prevalecer - como sempre - o princípio da dignidade da pessoa humana, acabando por condenar por racismo o editor da obra malquista. Pudera: no caso julgado, a obra propalava ideias anti-semitas e chegava até a negar o Holocausto! O livro de Monteiro Lobato é vazado na forma romanceada, e não em forma ideológica. Lobato insere as traquinagens e as falas das personagens em contextos de um tempo em que muitos tabus e práticas sociais, hoje consideradas absurdas, eram tidas como normais, corriqueiras. Mas não ensinava ao estudante ou ao leitor que aquilo que as suas personagens falavam ou faziam era o correto. Não.

A par daquelas situações sempre tínhamos as justas admoestações morais de Dona Benta, que surgia como o contraponto racional e sensato daquelas histórias. Tudo deve ser sopesado em um contexto cultural e educacional. Não é simplesmente censurando que se ensina, mas com educação. Muitas vezes temos que retratar uma época, suas personagens e os seus erros para não tornarmos a repeti-los. Ademais, deve servir de lição para o presente e para o futuro: não repetir os erros do passado. A Comissão Nacional da Verdade está aí para isso. Cabe aos pais e aos educadores mostrar o caminho errado e o caminho certo. O filósofo George Canguilhem demonstrou que para saber o que é normal eu devo conhecer o anormal patológico. A literatura é a voz do entendimento de uma época, de sua sociedade e dos seus costumes e pensamentos. E Lobato nada mais faz do que retratar a época em que viveu e o pensamento de então, decerto carregado de preconceitos e segmentações sociais. Barrar a obra seria negar, ao público, o conhecimento do pensamento passado, até para se dizer: não faça o mesmo, respeite o próximo. 
Acredito que o STF, pautado nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, decidirá com justiça o caso. Isto porque, há de se perguntar: seria razoável e proporcional vetar a circulação de um livro que traz frases de outrora e que devem ser entendidas dentro de um contexto, mas não propalam, nem incitam, como filosofia ou ideologia, o ódio racial? Seria bom, concordo, que a obra em debate viesse, daqui para frente, acompanhada de comentários de especialistas (educadores, advogados, sociólogos) que explicassem ao leitor, principalmente ao leitor jovem, o que se passava à época e trazê-lo à realidade e mostrar-lhe como as questões raciais são hoje tratadas, o que o sistema jurídico tem como arma contra manifestações racistas, e quais são as sanções para a pessoa que ofender ao próximo com expressões e atitudes preconceituosas. 

Diga-se de passagem, a questão do preconceito racial é um câncer social e cultural que, até nos dias atuais, infecta nossa sociedade. Aqui em Sorocaba, há poucos dias, foi noticiado pela imprensa local um suposto caso de injúria racial. Lamentável. No entanto, barrar uma obra, sem a devida relação de proporcionalidade e razoabilidade, é cultivar precedentes para se barrar todo o tipo de forma de expressão cultural; todo: desde jornais a livros. Isso possibilitaria a que, por exemplo, governos censurassem opiniões contrárias às suas atitudes pelo simples fato de lhe serem contrárias. Isso se chama autoritarismo, totalitarismo, ditadura. A liberdade de expressão é, ainda, o melhor remédio contra tudo o que é obscuro. Por isso, liberdade de expressão já e sempre, mas com as cautelas de respeito à dignidade da pessoa humana, sem esquecer o amor e o respeito ao próximo. E esse respeito deve ser germinado desde cedo em casa, pelos pais.

Por * Marco Antonio Hatem Beneton é advogado - vicepresidencia@oabsorocaba.org.br

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