Alguns
dilemas sobre a Religião em sentido amplo
A religião integra a
ordem do público ou do privado? Os dois, respondemos nós. A humanidade foi
forjada por esta condição humana. Através da religião explicam-se vidas e
mortes que, ceifadas, resolveram interesses da ordem do público e do privado.
Este texto aborda se cabe um papel diretivo ao Estado brasileiro para instituir
uma normativa legal e garantir o direito de exercer a liberdade de crença e,
ainda, se deve o Estado promover ações e políticas públicas em nome do
interesse público e da multiculturalidade da sociedade brasileira.
A necessidade de
convivência social é uma condição da realidade humana. A religiosidade é uma
das expressões da cultura que dá sentido aos indivíduos á sua existência na
vida social. O diálogo entre as diversas expressões religiosas é um desafio
permanente entre os humanos. Podemos afirmar que as diversas tensões históricas
entre os povos encontram fundamentos na leitura religiosa que variavelmente
fazem do mundo e de sua origem seu desiderato. A tríade, mito de fundação,
sacerdócio e sistema de ritos caracteriza a materialização da ação religiosa,
configurando o que chamamos de Igreja.
A organização de leis
espirituais em preceitos normativos, conformando sistemas rígidos e
inquestionáveis de conduta social têm proporcionado construções de sólidas
instituições que muito tem significado para a história das civilizações.
Todavia, inversamente, propugnam-se valores que, subsidiam modelos políticos
totalitários impondo relações que fundamentam a associação entre a realização
material e a realização espiritual. A história da humanidade é forjada pela
história dessas tensões religiosas. Na antiga Grécia, na antiga Roma ou no
período medieval entre os judeus, ciganos e mulçumanos vivemos justificativas,
as mais inexplicáveis, para derrotar e construir governos.
O
Estado brasileiro e o arcabouço jurídico contra a intolerância religiosa
Hoje no Brasil, têm
aparecido de forma frequente queixas contra veículos de comunicação e
organizações religiosas que têm usado discursos de conteúdo
dogmático/religiosos para macular outras organizações religiosas e seus modos
peculiares de constituírem seus ritos e premonições. Estas queixas
invariavelmente estão associadas á negativações e inferiorizações, conformando
também a prática de um racismo difuso, como entende o artigo 20 da Lei nº
7.716/89 que assevera tal conduta como impeditiva na sociedade brasileira. A
legislação pátria pune a prática de "curandeirismo" prevista no
artigo 284 do Código Penal, mas que está associada ainda a certa intolerância
quanto ás religiões de matriz africana no Brasil.
A Confederação Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), a Comunidade Muçulmana, a Federação Israelita, os
evangélicos, os religiosos de matriz africana, os ciganos têm protagonizado um
intenso debate sobre o perigo destas práticas que podem resultar em conflitos
civis com forte repercussão na ordem pública, já que diversas organizações
vítimas dos ataques mencionados têm feito manifestações públicas contra tais
atos.
O Estado brasileiro vem
recentemente produzindo políticas públicas de promoção de igualdade e de
reconhecimento legal de populações vulneráveis á realização formal do princípio
da equidade, como por exemplo: o Decreto nº 6.872/2009, que aprova o Plano
Nacional de Programação da Igualdade Racial - Planapir, e institui o seu comitê
de articulação e monitoramento; O Decreto nº 6.040/2007 que institui a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; O
Decreto nº 4.886/2003, que institui a Política Nacional de Promoção da
Igualdade Racial - PNPIR e dá outras providências; O Decreto nº 4.887/2003 que
regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias; A Lei nº 10.639/2003, alterada pela Lei de nº 11. 645/2008 que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena; A Portaria do Ministério da Saúde nº 992/2009
que institui a Política Nacional de Saúde da População Negra com a valorização
do saber popular da medicina de matriz africana como política de equidade no
Sistema Único de Saúde; E por fim, a Lei nº 12.288/2010 que institui o Estatuto
da Igualdade Racial.
Neste sentido, com a
proposição deste conjunto de políticas públicas o Direito passa a ter como
fonte normativa também as características culturais e históricas de um povo
brasileiro permitindo uma mudança de paradigmas na compreensão do que venha ser
concretização da justiça social neste país. No que tange ao direito da
liberdade de manifestação religiosa, este é essencialmente um direito
subjetivo, mas que encontra dificuldades concretas quando a intolerância e o
desrespeito afetam as religiões dos grupos sociais minoritários, principalmente
os de matriz africana.
O Brasil já possui
normas jurídicas que visam punir a intolerância religiosa e normas jurídicas. A
Lei nº 7.716/1989, alterada pela Lei nº 9.459/1997, considera crime a prática
de discriminação ou preconceito contra religiões. Em tal Lei, são considerados
crimes de discriminação ou preconceito contra religiões as práticas prescritas
nos seguintes artigos: artigo 3º "Impedir
ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da
Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços
públicos", artigo 4º "Negar
ou obstar emprego em empresa privada", art. 5º "Recusar ou impedir
acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber
cliente ou comprador", artigo 6º "Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em
estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau", artigo
7º "Impedir o acesso ou recusar
hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar",
artigo 8º "Impedir o acesso ou
recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes
abertos ao público", artigo 9º "Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos,
casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público", artigo 10º
"Impedir o acesso ou recusar
atendimento em salões de cabelereiros, barbearias, termas ou casas de massagem
ou estabelecimento com as mesmas finalidades", artigo 11º "Impedir o acesso às entradas sociais em
edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos",
artigo 12 "Impedir o acesso ou uso
de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens,
metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido", artigo 13
"Impedir ou obstar o acesso de
alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas", artigo 14
"Impedir ou obstar, por qualquer
meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social", artigo
20 "Praticar, induzir ou incitar a
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional", e, artigo 20, §1º, "Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas,
ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada,
para fins de divulgação do nazismo".
Isso não significa que
estas sejam as únicas condutas criminosas previstas na legislação brasileira em
relação ao que se denomina intolerância e perseguição religiosa. Punição a
incitações à violência, como agressões ou até mesmo homicídios, por motivos
religiosos ou não, estão previstos no Código Penal brasileiro. Esta legislação
(Lei nº 7.716/89) também não retira o direito à crítica que os seguidores de
uma denominação religiosa podem fazer aos de outra. Isso está garantido na
Constituição Federal do Brasil de 1988, pela Cláusula democrática, presente no
art. 1º "A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito", pelo artigo
5º, IV "é livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato", pelo artigo 5º, VI, "é inviolável a liberdade de consciência e de
crença", pelo artigo 5º, VIII, "ninguém
será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a
todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei",
e pelo artigo 5º, IX, "é livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença".
Ademais, existe
atualmente no Senado Federal uma comissão de juristas notáveis discutindo um
ante projeto para realizar uma reforma no Código Penal brasileiro e com isto a
pergunta formulada pelos críticos de um sistema penal que criminaliza o modo de
vida das populações adaptas das religiões de matriz africana é: será que
aqueles delitos, tais como, o curandeirismo e o charlatanismo vão ser
revogados? A margem de subjetividade, descrita nas condutas criminosas destes
delitos acima citados, fica evidente no momento em que o julgador exerce o seu
poder discricionário de examinar a culpabilidade do acusado, verificável pelas
circunstâncias sociais de marginalização de certas religiões em detrimentos de
outras, com isto, o que ocorre é a afirmação dos estereótipos negativos que são
imputados, principalmente as religiões de matriz africana.
O
princípio da laicidade no Estado brasileiro
Ressalta-se como marco
legal para discutir Estado e Religião a vigente Constituição Federal de 1988
traz em seu texto o artigo 19 "é
vedado a União, aos Estados, ao Distrito Federal, e aos municípios: I -
Estabelecer cultos religiosos subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento
ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência, aliança,
ressalvada na forma da lei, a colaboração de interesse público." Desde
1890 o país deixou de ter uma religião oficial para expressar-se livremente no
contexto religioso, com a mais ampla liberdade de consciência e crença nos
ideais outorgados pelo ilustre jurista Rui Barbosa. A partir da separação
Igreja/Estado, o Brasil tornou-se laico, desamordaçando as demais religiões e
credos que, até então, viviam mudos.
O Brasil estabeleceu-se
sobre o princípio da laicidade, permitindo que expressões religiosas pudessem
ter vez e, por conseguinte, expressar seus princípios e fundamentos ao povo
brasileiro. Chantal Mouffe, cientista política inglesa, nos dá uma dica
importante: uma coisa é a Igreja atrelar-se ao Estado que deve permanecer
laico, isonômico e plural, outra, é a possibilidade dos religiosos exercerem o
direito de fazer política na esfera publica. O Estado Democrático de Direito
também permite esta compreensão da laicidade do Estado brasileiro e da isonomia
do tratamento que deve ser dispensado às religiões de diversas matrizes no
país, no entanto o Brasil ainda deixa transparecer as marcas de uma presença
secular colonizadora e autoritária, sobretudo, as religiões de origem cristã
sobre os povos indígenas e negros, principalmente, que afetam seu processo de
autoconhecimento com suas raízes históricas e identitárias.
Neste diapasão,
Tratados e Convenções Internacionais através de seus enunciados preceituam a
garantia do direito a liberdade de crença e culto religioso. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1978 prescreve em seu artigo 10 que "ninguém deve ser molestado por suas
opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem
pública estabelecida pela lei"; a Declaração Universal de Direitos Humanos,
de 1948 preceitua no artigo XVIII que "toda
pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este
direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e
pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular";
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, artigo 18.1 “Toda pessoa terá direito à liberdade de
pensamento, de consciência e de religião”. Esse direito implicará a
liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha e a liberdade
de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto publica
quanto privadamente, por meio de culto, da celebração de ritos, de práticas do
ensino; Ademais, ainda temos o Programa Nacional dos Direitos Humanos que
através de sua proposta 110 visa prevenir e combater a intolerância religiosa
no que diz respeito às religiões de cultos afro-brasileiros; o Pacto de São
José da Costa Rica cuja redação é idêntica àquela do Pacto Internacional dos
Direitos civis e Políticos, e a Declaração sobre a Eliminação de Todas as
formas de Intolerância e Discriminação baseadas em Religião ou Crença.
Importante registrar
ainda, o tratamento da legislação laboral brasileira à profissão de Ministro de
Culto Religioso. Esta profissão pertence à categoria de Teólogos, Missionários
e profissionais assemelhados, tendo o código específico na Classificação
Brasileira de Ocupações (CBO) para a profissão sob o número T2631-05. Com tais
prerrogativas os Ministros de Culto Religioso podem realizar liturgias,
celebrações, cultos e ritos; dirigem e administram comunidades; formam pessoas
segundo preceitos religiosos das diferentes tradições; orientam pessoas;
realizam ação social junto à comunidade; pesquisam a doutrina religiosa;
transmitem ensinamentos religiosos; praticam vida contemplativa e meditativa;
preservam a tradição e, para isso, é essencial o exercício contínuo de
competências pessoais específicas. Segundo o estudo do teólogo Rogério Adriano
Pinto possuem denominações, as mais diversas, o que compreende a natureza
plural do conteúdo normativo fortalecendo a tese da diversidade religiosa em
nosso país[1].
Alguns
casos de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana
A necessidade que se
tinha até a década de 70 de que os terreiros de candomblé, templos religiosos,
obtivessem autorização mediante as delegacias do Estado da Bahia para realizar
seus cultos religiosos demonstra a inconteste discriminação e criminalização do
modo de vida dos afro-descendentes que eram religiosos. O tratamento diferente
dispensado as religiões de matriz africana neste caso demonstra uma explícita
forma de discriminação negativa, e uma aplicação lesiva do princípio da
igualdade jurídica. Hoje, ainda permanecem as sequelas desta privação dos
direitos fundamentais, haja vista o preconceito advindo da opinião pública que
transparece um entendimento ignorante sobre as religiões de matriz africana.
Pode-se dizer que daí se multiplica os diversos casos de intolerância religiosa
pelo país.
Alguns casos são
emblemáticos na luta contra a tolerância religiosa em todo o país. No Estado da
Bahia - que possui 1.236 Terreiros de Candomblé catalogados pela Secretaria
Municipal da Reparação (SEMUR) - tem-se registrado pela imprensa local que em
Salvador/Ba no ano de 1999, Mãe Gilda, a Iyalorixá do Terreiro Ilê Axé Abassá
de Ogum, faleceu, ela tinha a saúde fragilizada e piorou quando viu a sua foto
publicada no jornal da Igreja Universal do Reino de Deus vinculada a uma
reportagem sobre charlatanismo que continha os seguintes dizeres "Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a
vida dos clientes". No intuito de obter justiça a sua filha e atual
Iyalorixá da casa, Jaciara Ribeiro dos Santos moveu uma ação fundada em danos
morais e no uso indevido da imagem. Neste caso, a justiça dos homens prevaleceu
na primeira e segunda instância na esfera do Poder Judiciário condenando a Igreja
Universal do Reino de Deus. Todavia, na segunda instância o valor da
indenização foi reduzido, por isso restou considerado para alguns que a marca
da injustiça foi impressa no processo judicial, haja vista que o valor inicial
da ação indenizatória não prevaleceu.
Ainda, relatando um
caso de intolerância religiosa em Salvador na Bahia, o terreiro Oyá Onipó Neto,
da Iyalorixá Rosalice do Amor Divino, em fevereiro de 2008 foi demolido por um
órgão municipal público, a Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do
Solo do Município de Salvador (SUCOM), por denúncias de moradores vizinhos do
templo religioso baseados no fato de que a casa fora construída de forma irregular.
Este fato mobilizou o Prefeito da cidade e autoridades municipais que
reconheceram em público ter cometido um ato administrativo ilegal, tendo-se em
consideração os princípios constitucionais de liberdade de culto religioso e a
Lei Municipal nº 7.216 de 16 de janeiro de 2007, que trata da preservação do
patrimônio histórico e cultural de origem africana e afro-brasileira no Município
de Salvador. Isto motivou a Câmara de Vereadores do Município de Salvador a
legislar sobre a regularização fundiária dos templos religiosos de matriz
africana.
O Estado do Rio de
Janeiro, assim como a cidade de Salvador, estabeleceram o dia 21 de janeiro -
dia de falecimento da Iyalorixá Gilda - como o Dia Municipal do Combate à
Intolerância Religiosa. Além de Salvador e do Rio de Janeiro, o município de
Vitória e o Estado de Alagoas também tem um dia contra a intolerância religiosa
e outras câmaras municipais possuem projetos de leis sobre o assunto em
tramitação. E em 2007, o então presidente Lula sancionou a Lei nº 11.635 que
institui o dia nacional de combate à intolerância religiosa, fruto da intensa
luta dos movimentos sociais para o reconhecimento nacional dos casos
denunciados.
Na cidade do Rio de
Janeiro no início do ano de 2000 o Babalorixá João foi retirado por traficantes
do Terreiro que tinha na Zona Oeste deixando o labor de sete anos de sacerdócio
dedicados a religião do candomblé, pois o território é um lugar considerado
sagrado para a manutenção do culto religioso. Neste caso comentado, o que
parece ser um caso de violência contra um cidadão comum, ultrapassa os limites
quando atinge o sacerdotizio de uma religião.
Já no Rio Grande do Sul
a existência de uma ação direta de inconstitucionalidade que contesta uma norma
da lei que prevê a permissão do sacrifício de animais causaria grandes lesões
às religiões de matriz africana caso fosse acolhida pelos desembargadores, pois
alguns animais fazem parte do culto religioso como algo sagrado, assim como, a
hóstia é sagrada para os cristãos, sem contar que culturalmente animais são
diariamente sacrificados para diversos fins alimentares [2].
As estatísticas de
crimes de intolerância religiosa vão além destes casos citados, elas estão
ocultas, justamente pela invisibilidade e opressão histórica que sofreu os
grupos étnicos sociais minoritários - negros, índios, povos ciganos,
quilombolas, etc. - no que diz respeito à ocupação dos espaços de poder e
decisão política, mas consideravelmente em grande número pela estatística
populacional, muito embora o IBGE ainda não possua a classificação religiões de
matriz africana nas pesquisas do CENSO.
A história da
intolerância religiosa no Brasil é marcada não só por estes fatos e relatos,
mas, também, por tantos outros tantos anônimos, basta citar alguns exemplos de
outras minorias como o povo cigano e mulçumano. Há um pensamento cigano que diz
"minha terra é o planeta, meu teto é
o universo, minha religião é a liberdade", a sua interpretação pode
configurar as diferenças abismais de concepções de mundo e do modo de vida
deste povo, também minoria, perseguida e discriminada pelo simples fato de
existir e resistir. E como manifestar-se religiosamente a partir de suas
crenças e cultos, se seu direito fundamental de ir e vir são lesados
diariamente?
A partir de uma
retrospectiva na história do Brasil, levantamos teorias racistas que tiveram
ampla aceitação pela sociedade, no que tange à comunidade judaica, e também a
população negra e indígena pelo fato de o país concentrar um grande contingente
destas populações. A perseguição aos judeus, as limitações da política
imigratória brasileira, as várias formas de manifestação do preconceito são
exaustivamente narradas no livro "Antissemitismo na Era Vargas
(1930-1945)" de Maria Luiza Tucci Carneiro (1988). Segundo a autora, parte
da classe política aproveitava o ensejo para pôr em prática seus preconceitos e
dessa maneira auxiliar o então presidente Getúlio Vargas na confecção de uma
legislação imigratória nitidamente racista em relação ao judeu e ao japonês.
Assim como ainda hoje, as religiões de matriz africana sofrem pala tarja de
cultuar "magia negra", o judaísmo era visto como um mal diabólico que
desce sobre a humanidade para seduzi-la e vencê-la.
Considerações
finais
O direito á liberdade
de consciência, de credo e o livre exercício dos cultos religiosos para que
sejam efetivamente assegurados, necessita de proteção legal e de uma atitude do
Estado ao reconhecer o caráter multicultural da sociedade brasileira. Não há
como conceber o mundo da religião restrito ao mundo do privado. Do mesmo modo,
não há como conceber o mundo da política sem as devidas unidades de interesses
próprios de cada manifestação religiosa e entendê-las como depositárias de
princípios, costumes e sistemas de crenças motivadores de sua condição
coletiva.
O famoso simpósio ocorrido
em 2004, em Munique, entre o então cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento
XVI e o filosofo Jurgen Habermas, trouxe-nos, uma contenda sobre a Igreja e a
ciência moderna e as bases morais pré-políticas de um Estado Liberal, onde a
dignidade humana pudesse ser preservada com ou sem a religião. Habermas e o
agora Bento XVI estavam apenas nos dizendo que, tanto a religião, como a
democracia procedimental, têm desafios para as próximas gerações: ambas
concordam que a fé na convivência entre os indivíduos de crenças distintas e a
possibilidade de convivência mútua, são tarefas universais da filosofia e da
religião.
A religião, segundo Habermas
teria um estatuto grandioso e deveria ser responsável por pensar a democracia
intercultural. A ciência, segundo Ratzinger poderia ser racionalmente
emancipatória e, nos dar arranjos institucionais com fortes resultados intersubjetivos.
Desse modo, a secularização e a religião são pressupostos universais para
pensar o mundo, são “irmãos separados” que devem buscar uma saída responsável
para o planeta que se encontra fragmentado e navegando entre individualidades
multiculturais e fanatismos essenciais. Um novo ecumenismo para além das
grandes narrativas teria que ser forjado, dessa vez, mais amplo e plural. Este
é o desafio da humanidade, este o desafio de todos os tempos. Este é o desafio
do nosso tempo.
Pensando assim, como o
Estado Brasileiro deve lidar com os conflitos sociais que tem a religiosidade
como pano de fundo? Através do debate inter-religioso e da luta pela
preservação da cultura da paz, consoante a ressalva do já citado artigo 19 da
Constituição Federal no momento que prevê a hipótese de legislar sobre religião
quando o assunto for colaborar com o interesse público.
A liberdade de
manifestação religiosa inclui aspectos sociais de convivência com a diferença e
com as normas que o Estado impõe para assegurar estas diferenças. Portanto,
faz-se necessário uma política pública que colabore para concretizar a
pluralidade de manifestações religiosas, a partir do princípio da isonomia e da
justiça social.
*Sérgio São
Bernardo, advogado, Mestre em Direito Público/UNB e professor da UNEB. Gabriele
Vieira, Bacharel em Direito, Mestranda em Ciências Humanas e Sociais da
UFABC-SP. Ambos coordenadores jurídicos do Instituto Pedra de Raio.
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