sexta-feira, 3 de maio de 2013

Poesia: As palmeiras de Copacabana - Gustavo Ferreira Rossi

Samuel não gostava de futebol


Nunca tinha ido a estádio algum

Era negro, filho de Ogum,

escravo de empreiteira, saturado de sol

Sol que se derramava em tudo o que sentia:

nos filhos educados para acordar quando o sol nascesse,

no café com leite esquentado pelos primeiros raios da manhã,

quando da falta do gás

Do seu jeito de não ter paz, sempre morrer e renascer a cada dia

para a mesma locomotiva diurna, demorada no apito do fim do dia,

máquina enferrujada e vespertina

E à noite, quando a luz se ia como um milagre que desaparecia depois de tanto falar, sem vestígios, o trabalho redobrado sem hora extra de ser pai de família,

ser exemplo de força quando suas forças se iam

e o sexo compulsório e natural com a patroa desgastada,

máquina sem óleo, enferrujada, sem alegria

Os filhos queriam ir ao estádio de futebol:

Samuel lembrou-se do pai flamenguista

e sentiu saudades do velho punguista

Por causa do avô, os netos eram flamenguistas

E ser a maior torcida do mundo

era a única grandeza desejada por aqueles meninos,

pois quando se é pobre não se vê grandeza na vida,

por maior seja a revolta, a ignorância que se aprende e é meio de vida,

por mais difícil seja fugir da polícia quando se é inocente,

pois quando se é culpado, não há polícia que consiga prender,

pois o crime inunda a mente, o coração, o momento presente

e se sai da cadeia para ser mestre na criminalidade

Cadeia não corrige: ensina, domestica a revolta explosiva para só explodi-la

quando não mais se aguentar a vida dos homens decentes

O pai, que se sabia pequeno, não queria tirar o único motivo de grandeza dos filhos

e levou-os ao Maracanã, no dia do Flamengo X Palmeiras

Era um dia de muito calor, e o pai, anti-futebolista convicto, foi sem camisa,

foi sem espírito de briga e sem o gosto amargo da pinga

Foi para relembrar o velho pai, enterrado no cemitério de São João Batista

Seria seu batismo nos estádios, batismo de água fria,

pois em campo os meninos pobres do morro, da favela, eram batizados em carros importados:

teriam sido batizados com água santa, seria?

E ele com o resto da água suja de uma pia?

Os filhos torciam com fervor para o Flamengo

Mas nem toda a grandeza da camisa dos descamisados do Flamengo evitou a derrota: 2X1 para o Palmeiras, com gol do craque do time

As duas torcidas começaram a brigar

O pai, contrariado ante tanta besteira, foi todo intenção de ir embora,

mas antes que partisse, o pai sentiu cair em suas mãos

a camisa do craque do Palmeiras, atirada pelo próprio, por provocação

O pai descamisado não teve opção: escondeu no short a camisa do Palmeiras

Mas alguns torcedores irados viram tudo e o marcaram para a morte certa

Traição sempre é motivo de morte, pensam torcedores e patriotas intelectuais

Numa rua deserta, o pai despiu-se do medo e vestiu a camisa do Palmeiras

Os torcedores que o perseguiam, empurraram seus filhos

( vestidos com a camisa do Flamengo ) e enfiaram Samuel

dentro de uma velha perua Kombi

Samuel implorou, ajoelhou-se, disse ser filho de Ogum,

desapaixonado da vida e do futebol,

disse ser escravo de uma empreiteira,

xingou o Presidente da República, mas nada adiantou:

foi levado a um terreno baldio, morto e enterrado debaixo de umas bananeiras

Os filhos desesperados correram para casa e choraram toda a estória para a mãe,

que mesmo enferrujada, cansada, foi à delegacia:

_ Filhos, torcida é assim mesmo, teu pai vai levar uma surra e logo volta

Mas o pai não voltava, depois da noite não voltou, nem depois de cinco dias

A mãe não pôde chorar:

arranjou um amante para poder os filhos sustentar

_ O pai de vocês fugiu com outra, não esperem, ele não vai voltar

Os filhos procuraram o repórter policial e contaram a estória

À noite na televisão, contaram a estória do homem desaparecido

com a camisa do Palmeiras

O apresentador falava com os olhos e a boca:

com a boca dizia que era um absurdo, uma coisa injusta e violenta,

mas na pátria de chuteiras e dos traidores,

os olhos falavam mais alto que sua boca suja:

“ Quem não gosta de futebol tem de ser morto mesmo

e nenhuma traição pode ser tolerada, muito menos contra o Flamengo

Morte aos traidores, enforquem os traidores, dilacerem os traidores!”

A cidade inteira soube da estória do falso palmeirense desaparecido

e alguns até choraram, inclusive os espíritas, crentes na reencarnação

e na lei imutável do retorno

Samuel, saturado agora de terra, pensava que sua vida era uma saturação

Não podia ter paz, não podia ser sombra e água e fresca,

não podia respirar com a terra e nem com o sol

Sempre alguma coisa estava a oprimi-lo

Deus, que é craque no futebol, mas não é fanático, fez um aguaceiro danado

e o corpo de Samuel, já no puro osso, mas vestido ainda com a camisa do Palmeiras

foi descendo o morro para espanto geral

Sua mulher virou doida e desandou a chorar e se entregar aos soldados do quartel

Muitos aquela noite não dormiram, ficaram rezando até que o dia amanhecesse

Ogum naquela noite não baixou nos terreiros e foi pedir perdão a Deus

Seus filhos estavam orgulhosos do pai, e muito mais ficaram,

quando o corpo do pai desapareceu debaixo das palmeiras de Copacabana

Ninguém teve coragem de recolher o corpo, nem padre, nem freira,

nem a Prefeitura Municipal

Todos precisavam de um mártir, de alguém parecido com Deus

E hoje, debaixo das palmeiras de Copacabana,

a torcida do Rio de Janeiro vem chorar arrependida

a morte daquele que talvez tivesse alguma grandeza

maior que as camisas de Flamengos, Vascos, Botafogos e Fluminenses



Gustavo Ferreira Rossi

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